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A ABEM E A VISÃO À FRENTE: CARACTERÍSTICAS E LIMITES DE UM DISCURSO INSTITUCIONAL

Resumo:

O artigo apresenta e discute a capa­ cidade de antecipação e de perspectiva de longo prazo da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), explicitando, porém, seus limites a partir de uma caracterização do horizonte ideológico e dos vínculos sociais dos membros mais atuantes da instituição. Pelos exemplos, delineia-se uma visão geral dos principais problemas da educação médica no Brasil em anos recentes, a partir do modo como se refletiram na ABEM, como foram discutidos (ou omitidos) nas reuniões anuais da instituição.

Abstract:

This article introduces and discusses ABEM's (Brazilian Association of Medical Education) capacity of prescience and establishing long term perspectives, turning clear, however, its limitations through characterization of the ideological horizon as well as through the social entailment of its most active members.

A general view of the principal problems of medical education in Brazil in the recent years is being outlined on the basis of examples, by the way those problems became apparent at ABEM, by the way they were discussed (or omitted) in the institution's annual meetings.

A ABEM, sigla da Associação Brasileira de Escolas Médicas, hoje Associação Brasileira de Educação Médica - entidade que congrega a maioria das escolas médicas representadas por seus dirigentes (associados institucionais), setores de docentes e uma pequena parcela de alunos - teve sua fundação efetivada em 21 de agosto de 1962, na cidade de Belo Horizonte, em reuniões realizadas na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, com o comparecimento de representantes da quase totalidade das escolas médicas então existentes no País.

“Tudo começou com Versiani Caldeira e um grupo de educadores médicos: a idéia de criar uma associação na qual pudessem ser debatidos os problemas do ensino da medicina ao lado da realização de pesquisas, e onde todo o esforço fosse no sentido de aperfeiçoamento contínuo de professor e do aluno”.11. CASTRO, Célia Lúcia Monteiro de. Prefácio. In: REUNIÃO anual da Associação Brasileira de Escolas Médicas, 7. Niterói, 23-26 ago. 1969. Anais, Rio de Janeiro, ABEM, 1969. p.11.

O professor Caio Benjamin Dias, em sua conferência “Dezessete anos da Associação Brasileira de Educação Médica”22. DIAS, Caio Benjamin. Dezessete anos da Associação Brasileira de Educação Médica. Rev. Bras. de Educ. Méd, Rio de Janeiro, 6 (1):37-42, jan/abr. 1982., nos diz que a história do surgimento de organismos que congregam instituições e pessoas com interesse em assuntos relativos à educação médica no Brasil data do início da década de 1950. Já em 1951, foi realizado em Lima o Primeiro Congresso Pan-Americano de Educação Médica, no qual os representantes dos países presentes elaboraram um documento que ficou conhecido como Declaração de Lima sobre a educação médica. Dois anos depois, em 1953, realizava-se em Londres, a Primeira Conferência Mundial de Educação Médica, que, entre as suas principais recomendações, sugeriu a criação de corporações nacionais e regionais de educação médica. Outro momento importante em que se discutiu, em nível internacional, a educação médica foi o da realização, no ano de 1955, na cidade chilena de Vinã del Mar, do Primeiro Seminário sobre o Ensino de Medicina Preventiva.

No Brasil, já em 1956 a Associação Médica Brasileira (AMB) contava com uma Comissão de Ensino Médico que tinha como finalidade fazer avaliações da qualidade e dos objetivos do ensino médico em nosso país. A primeira iniciativa do Estado brasileiro em relação a educação médica se deu no governo do médico e estadista Juscelino Kubitschek que, através do seu ministro de Educação e Cultura, também médico, Dr. Clóvis Salgado, organizou em 1956 uma comissão ministerial de professores de medicina com a finalidade de avaliar o ensino médico brasileiro e de promover e coordenar consultas visando à elaboração de um projeto de lei adequado à nova realidade do ensino de medicina no Brasil. Em outubro daquele mesmo ano, com a presença de delegados de todas as faculdades de medicina do país, em Ribeirão Preto, foram discutidas e apresentadas inúmeras sugestões e o ante­projeto recomendado ao governo federal como uma aspiração da classe médica e dos professores de medicina. Em março de 1957, o governo Kubitschek enviava ao Congresso Nacional o projeto de lei n.o 2.046, que “dispõe sobre o Ensino Médico e dá outras providências”.33. ______. ibid. p.38. No entanto este projeto, que consubstanciava as aspirações dos educadores médicos da época, perdeu seu prazo de tramitação nas morosas comissões técnicas e nos cursos burocráticos do parlamento.

Em outubro de 1957, realizou-se, na cidade do México, a Primeira Conferência de Faculdades Latino-Americanas de Medicina, sob o patrocínio da Unión de Universidades Latino-Americanas, a UDUAL. Neste encontro, a Declaração de Lima foi ampliada e atualizada, propiciando o lançamento do documento que se intitulou Declaração do México sobre a educação médica na América Latina.

Em dezembro de 1960, reuniu-se em Montevidéu a Segunda Conferência de Faculdades de Medicina Latino-American as, onde se aprovou a Declaração do México e também se elaborou uma carta de recomendações, a Declaração de Montevidéu sobre educação médica, em que se propunha aos países da América Latina a criação de associações nacionais voltadas para o ensino de medicina.

Neste contexto internacional, paralelamente à idéia da criação da ABEM amadurecida no Brasil, e os primeiros passos da então Associação Brasileira de Escolas Médicas esboçaram-se, de maneira ainda oficiosa, na Primeira Conferência sobre o Ensino de Clínica Médica no Brasil, realizada na Bahia em 1961 sob o patrocínio da Fundação Kellog juntamente com a Universidade da Bahia, que tinha na época como reitor o professor Roberto Figueira dos Santos.

Assim, em 1962, era já patente a conveniência e a atualidade de fundar a ABEM que, segundo as palavras do professor Caio Benjamin Dias, deveria tornar-se um “instrumento capaz de coordenar e orientar, em nível não-governamental, as modificações que se faziam necessárias em assuntos de tal relevância quanto aos objetivos e à metodologia do ensino médico”.44. ______. ibid. p.39.

Com apenas três meses de existência, a ABEM já era convidada pelo ministro da Educação e Cultura do governo João Goulart, o professor Darcy Ribeiro, para organizar, em Brasília, um Simpósio sobre o Ensino de Medicina e o Atendimento às Populações Rurais. Durante a realização deste simpósio de Brasília teve lugar a primeira assembléia extraordinária da ABEM, que delegou ao seu primeiro presidente, o professor Oscar Versiani Caldeira, credenciais para votar a favor da criação da Federação Pan-Americana de Faculdades de Medicina (FEPAFEM), organização constituída durante a Terceira Conferência de Faculdades Latino-Americanas de Medicina que se reuniu em novembro de 1962, no Chile.

Foi assim que, a partir de 1962, um núcleo de educadores ligados a diferentes es­ colas médicas brasileiras passou a realizar múltiplas atividades: “publicação de trabalhos de pesquisa educacional, programação de cursos, diálogo aberto e franco entre docentes e discentes e, culminando todo este processo de intercâmbio de idéias e estudos, a realização de reuniões anuais”.55. CASTRO, Célia Lúcia Monteiro de. op. cit. p.11

Estas reuniões, que se vêm realizando anualmente desde 1963 até o momento presente, têm, com algumas exceções, uma estrutura geral semelhante: a abertura, com os discursos das personalidades convidadas; as exposições do(s) tema(s) básico(s), subdividido(s) ou não em subtemas, seguidas de discussões em grupos de trabalho; um espaço para temas livres; a apresentação do relatório final, que sintetiza as opiniões dos participantes e que é aprovado por todos; e, finalmente, a reunião do Conselho da ABEM. A organização do congresso ou reunião anual, a escolha dos temas, a indicação dos expositores e do relator-geral, responsável pela elaboração do relatório final e das conclusões da reunião, são prerrogativas exclusivas da diretoria da ABEM.

A partir da análise do conteúdo dos textos reunidos nos Anais da ABEM publicação em que se divulga o material discutido nos congressos anuais, foi possível, acompanhando a ordem cronológica, seguir a evolução do pensamento da ABEM66. VERAS, Renato Peixoto. A ABEM e as transformações da prática médica no Brasil. Rio de Janeiro, 1981. 417p. Monografia de mestrado apresentada ao Inst. Méd. Social da UERJ. e, ao mesmo tempo, identificar algum as características que talvez os ajudem a explicar o seu papel de expressão de uma determinada corrente ideológica na formação médica.

Dentre as muitas características significativas da ABEM que tivemos a oportunidade de estudar, destaca-se a sua extraordinária capacidade de, dentro de um certo horizonte ideológico, responder e até antecipar-se às variadas questões que, nas últimas duas décadas, se colocaram para a educação médica no Brasil. Os próprios associados mais atuantes mostram-se, inclusive, bastante conscientes dessas características: “a Associação Brasileira de Escolas Médicas hoje, embora orgulhosa se sua antecipação histórica na Educação Médica Nacional, permanece cada vez mais atuante”.77. CANTÍDIO, Walter de Moura. Sessão inaugural. In: CONGRESSO brasileiro de Educação Médica, 13. & REUNIÃO anual da ABEM, 13. Salvador, 1-4 out. 1975. Anais. Salvador, 1975. p. 35. E tanto isto é verdade que há 20 anos, em 1964, a ABEM já propunha que o último ano do curso médico fosse transformado em internato, recomendando a realização, em sistema de rodízio, de estágio em quatro áreas básicas: clínica médica, cirurgia, ginecologia/obstetrícia e pediatria. Esta proposta, porém, só nos últimos anos vem sendo implementada pelas escolas médicas.

Nesta mesma reunião de 1964, a residência médica foi definida como uma modalidade de treinamento intensivo em todas as atividades do Hospital. Para efeito do seu bom funcionamento, foi proposta a estruturação de um programa para a residência médica e a criação de uma comissão de nível nacional para regulamentá-la. As propostas apresentadas pelo professor Caio Benjamin Dias sobre residência médica e aprovadas no congresso eram também extremamente inovadoras, já que, em última análise, estava-se sugerindo a criação de uma Comissão Nacional de Residência Médica, que só viria de fato a tornar-se realidade em 1977, para normatizar e regulamentar a residência médica em nível nacional. A concretização de tais propostas quinze anos depois revela, particularmente nestes dois exemplos, o acurado sentido de atualidade e mesmo de antecipação de que, de um modo geral, a ABEM tem dado mostras no conjunto de sua atuação.

Outra significativa demonstração do aspecto de visão à frente, inovadora ou mesmo profética da ABEM, é dada pela exposição feita pelo professor Roberto Figueira Santos, em 1966, sobre a organização dos serviços de saúde e a integração da universidade neste sistema,88. SANTOS, Roberto Figueira. Planejamento didático nas faculdades de medicina do Brasil. In: REUNIÃO anual da Associação Brasileira de Escolas Médicas, 4. Salvador, 2-6 ago. 1966. Anais. Salvador, 1966, p.170 que se tornariam tema central em toda a década de 1970 e até mesmo da reunião da ABEM de Goiânia em 1980, em que se discutiu a proposta de cooperação entre os Ministérios da Previdência Social e de Saúde, denominada Prev-Saúde. Também não é por acaso que, na década de 1960, quando da ampliação do número de vagas nas faculdades de medicina, a ABEM tomou a iniciativa da proposta, não só apoiando a medida, como também participando efetivamente da criação de várias escolas.99. VERAS, Renato Peixoto. op. cit. p.382-94.

Do mesmo modo que a ABEM atuou decisivamente na implantação de novas escolas, anos mais tarde apoiou decisivamente a criação e a ampliação da pós-graduação em medicina. Estas duas iniciativas - aumento do número de vagas nas escolas médicas existentes e criação de novas faculdades; ampliação da pós-graduação - colocaram-se para a ABEM e nela foram discutidas e formuladas antes de surgirem como demanda que viesse de dentro das próprias escolas médicas. Ou seja, a ABEM captou na frente das escolas a “necessidade” do seu crescimento. Do mesmo modo, numa etapa posterior, a da pós-graduação, fato semelhante veio a ocorrer. É certo que o aumento do número de vagas registrado na segunda metade da década de 1960 reflete, de algum modo, uma antiga luta dos movimentos estudantis pelos direitos dos excedentes nos concursos de admissão. Mas nossa observação se refere apenas a uma eventual percepção interna às escolas médicas, que jamais existiu ou não se expressou com força. Esta necessidade de ampliação foi intuída pelos intelectuais da ABEM e não pelo conjunto das escolas médicas do país.

Do mesmo modo que se pode constar na ABEM uma capacidade inovadora e de visão à frente em relação à política de recursos humanos, também fica evidente a posição pouco crítica e, porque não dizer, tradicional da entidade no fato de esta não enfocar em profundidade certos aspectos relacionados com estas medidas. Pouco ou nada se falou de substancial, quando esteve em questão a ampliação do número de escolas médicas, sobre os motivos que levaram a esta decisão. Por exemplo, não foi preocupação na ABEM observar que, reforçada pela reforma universitária, a expansão das escolas superiores dá alento à demanda social pela escolarização, que vê reafirmado com particular intensidade seu caráter de requisito para a ascensão social. A ideologia da “democratização do ensino” e a valorização do título acadêmico fez com que os setores médios da sociedade, imbuídos do princípio de igualdade de chances, passassem a postular melhores posições sociais através do investimento na escolarização, o que levou a um aumento numérico de estudantes universitários, registrando-se um correlato rebaixamento do nível dos cursos, devido a duas características principais: a ampliação da desproporção entre corpos docente e discente e, o que é talvez mais importante , a degradação do ensino médio, que foi relegado a plano secundário. Igualmente não foi motivo de preocupação das autoridades brasileiras o fato de a ampliação das escolas médicas em particular e das universidades brasileiras em geral ter se produzido a partir e em favor do setor privado.1010. CUNHA, Luiz Antonio. A expansão do ensino superior: causas e conseqüências. Debates e Crítica, (5): 27-58, mar. 1975.) (1111. _____. O milagre brasileiro e a política educacional. Argumento, (2): 45-54 nov.1973.) (1212. SOUZA, Luiz Alberto Gomes de. Universidade brasileira: crescimento para que e para quem. Encontros com a Civilização Brasileira. (13): 175-93 jun. 1979) (1313. CAMPOS, Francisco Eduardo. Integração docente-assistencial como prática de educação médica. Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Medicina Social da UERJ. Nem essas questões foram tematizadas criticamente nas reuniões anuais da ABEM.

Anos mais tarde, por ocasião da consolidação da proposta de pós-graduação, o mesmo ocorreria. A ABEM não parou para refletir nos determinantes políticos que levaram a esta proposta, apenas conseguiu captar a conjuntura que indicava nesta direção e, mostrando seu dinamismo, assumiu a nova proposição.

Na discussão sobre a pós-graduação, jamais se cogitou publicamente, nas reuniões, da possibilidade de que esta pudesse representar uma recomposição dos mecanismos de discriminação social, ou seja, uma forma de repor uma hierarquia profissional que era anteriormente assegurada pela graduação ou ainda de que pudesse significar um modo de retardar o ingresso de um grande contingente de profissionais no mercado de trabalho, função social, aliás, de há muito exercida pela pós-graduação nos centros capitalistas avançados. Como vimos, é possível estabelecer as mais variadas hipóteses para tentar compreender estas tendências, propostas e movimentos. No entanto, a ABEM, talvez por pretender-se imbuída de algum tipo de “neutralidade”, apenas capta as demandas e procura, da forma a mais breve possível, encontrar soluções que atendam ao que encara como novas necessidades.

Assim, a análise das discussões travadas e dos documentos produzidos em seus sucessivos congressos sobre todas essas questões evidencia a mencionada capacidade da ABEM de se manter atenta às tendências e às transformações que se registram no campo da saúde, particularmente no tocante à educação médica, interpretadas à luz da ideologia dominante e freqüentemente em sintonia com objetivos governamentais. Isso revela uma certa flexibilidade da instituição, que lhe permite manter-se em permanente atualidade dentro de conjunturas sociais e de saúde em mudança. A freqüente sintonia com objetivos governamentais, reveladora de um certo “oficialismo” da instituição, não significa que a ABEM ande a reboque do Estado ou de governos, transformada em mera propagadora dos propósitos oficiais. Ao contrário, muitas vezes a ASEM se adianta e defende posições que somente depois se tornam realidade, e os objetivos do governo nem sempre expressam com fidelidade o complexo jogo de fato res sociais, econômicos e corporativos que conformam a prática institucional da ABEM.

Diante do surgimento de propostas inovadoras, como o movimento preventivo, o movimento de cuidados primários de saúde, a integração docente-assistencial, entre outros, novamente se apresentam tais características da entidade: sensibilidade para detectar os temas que serão, num futuro próximo, os mais relevantes, associada a uma posição acrítica e a-histórica sobre o processo que redundou de tais ou quais propostas.

A discussão sobre a participação da comunidade no processo de atendimento se fez inicialmente, na ABEM a partir da emergência da proposta de medicina preventiva, ganhando maior relevo com a de cuidados primários. No entanto, apenas o lado “técnico” do problema é enfrentado nos debates. O mesmo ocorre com a proposta da integração docente-assistencial. Discute-se o novo conjunto de proposições, esquecendo-se que muitos dos itens eram espólios de propostas já ultrapassadas que são reaproveitadas nos novos planos, e o sucesso ou fracasso das experiências associadas a tais propostas não são questionados: faz-se de conta que tudo é novo.

É comum que, nos congressos da ABEM, o enfoque incida apenas no todo das propostas em apreço, procurando, quase sempre, ressaltar os aspectos que permitam a sua consolidação. A preocupação coma comunidade e a constituição da equipe de saúde, por exemplo, ocuparam significativo espaço em algumas das reuniões anuais em que muito se pregou a necessidade de conhecer a comunidade na qual o futuro médico iria exercer sua prática profissional. Na maioria das vezes em que esta temática é abordada, fala-se em população ou comunidade, genericamente, como se tratasse de um objeto homogêneo, com isso escamoteando ideologicamente a questão da diferenciação social numa sociedade de classes. Outras vezes, quando a temática não aparece nesse nível de generalidade, a população-objeto é bem definida, propondo-se o trabalho com populações marginais como meio de ensino para os alunos e, ao mesmo tempo, campo de experiência para a aplicação dos novos postulados.

São estes os dois ângulos pelos quais, nas reuniões da ABEM, se concebe a integração da escola médica com a comunidade: ou se concebe a comunidade como um todo influenciado e, portanto, com as mesmas necessidades de saúde, ou se elegem populações marginais, como favelas, por exemplo, como campo de assistência e de ensino médico.

A noção de auto-ajuda, elemento central da proposta de cuidados primários, não é objeto de análise. Apesar de esta proposta estar calcada em três elementos centrais - os escassos recursos disponíveis para o setor saúde levando à incorporação da população no desenvolvimento das ações; uma maior racionalidade administrativa; e a utilização de tecnologia simplificada -, esta discussão não é enfrentada. Inexistem dúvidas entre os profissionais de Saúde Pública de que estes elementos formam o tripé desta proposta, que permite a sua execução a custos reduzidos, fazendo-a, por isso, supostamente adequada aos países do Terceiro Mundo. Assim, o esforço de fazer uma leitura das propostas que procure identificar o que existe de subjacente a elas em nenhum momento aparece como preocupação da ABEM. Neste sentido, é razoável supor que a ABEM desempenha um papel de contribuir para a manutenção, no plano das representações, das condições objetivas de dominação, favorecendo a criação de uma ideologia afim com a estrutura de poder existente e em consonância com os propósitos dos países centrais.

A participação do médico juntamente com outros profissionais de saúde na “equipe de saúde” é uma tese que apareceu com destaque em várias ocasiões e que também serve de exemplo para a demonstração da capacidade da ABEM de responder e de até antecipar algumas questões. Este tema apareceu com destaque na sexta reunião desta entidade, em 1968, quando se abordou a atenção que a universidade deveria dar às necessidades da comunidade, planificando sua integração no sistema assistencial de saúde. Voltou à discussão em várias outras reuniões, sempre no sentido de valorizar o papel da equipe de saúde multiprofissional, sem, no entanto, nunca deixar de frisar que esta deveria ser constituída e centrada em torno do médico.

Já em 1965, os participantes da terceira reunião anual da ABEM concordaram com o professor Rodolfo dos Santos Mascarenhas, que, em sua exposição, definiu os profissionais não-médicos da área da saúde como colaboradores, “sendo o trabalho do médico a razão da existência deste pessoal”.1414. MASCARENHAS, Rodolfo dos Santos. Formação do pessoal para-médico. In: REUNIÃO anual da Associação Brasileira de Escolas Médicas, 3. Porto Alegre, 23-30 out.1965. Porto Alegre, 1965. p.58. Deste modo, considera-se que a função dos profissionais denominados de para-médicos é a de permitir melhor aproveitar a capacidade do trabalho médico. No discurso institucional o caráter multiprofissional da equipe de saúde implica o problema da hierarquização profissional. Ao médico sempre é reservado o papel de liderança, planejamento e direção das ações e instituições de saúde, sendo o espaço de intervenção dos demais profissionais componentes da equipe de saúde definido a partir do trabalho médico.

Neste ponto mais uma vez é possível identificar uma enorme dificuldade da instituição para enfrentar e discutir os determinantes sociais, políticos, ideológicos que subjazem à difusão de uma dada proposta num dado momento. No exemplo em apreço, esta dificuldade se torna ainda maior já que se está falando da própria relação dos professores-médicos com uma proposta concreta por eles mesmos defendida. Aparece, de maneira insofismável, a visão “medico­cêntrica” e corporativista da entidade quando esta reafirma a centralização, na figura do médico, do comando de todas as ações de saúde.

Contudo, algumas análises da conjuntura política e mais particularmente do setor saúde, apesar de a ABEM ser constituída por professores preocupados com o ensino médico, não a impediu de em algumas situações, tomar posições totalmente equivocadas, parecendo desconhecer todo o complexo quadro que compõe a organização do sistema de saúde no país. Assim, o grupo dos fundadores da ASEM alimentou por muitos anos, a crença infundada de que as alterações no interior da escola médica, no perfil do médico, portanto, levariam a mudanças na estrutura da assistência médica. Na inversão que operavam, parecia-lhes que não eram a estrutura assistencial e o mercado de trabalho que determinavam o perfil do médico, mas que este determinava aqueles. Ora, a especificidade da prática médica não é dada pelo estágio de desenvolvimento da medicina, e sim pelas características próprias do modo de produção no qual ela se insere. Em outras palavras, a medicina não se “autodetermina”, mas é socialmente determinada.

Na verdade, é preciso ter em conta que a ABEM é uma entidade relativamente pequena, congregando pouco mais de mil sócios individuais,1515. SÓCIOS institucionais e individuais. Boletim da Associação Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, 14(6): nov. 1982. o que pode ser considerada quantitativamente pouco representativa em relação às setenta e seis escolas de medicina que funcionam no Brasil. No entanto, a importância da ABEM não pode ser analisada pelo número de seus sócios, pois ela é, sobretudo, uma espécie de clube de diretores de faculdades e de personalidades muito bem situadas com relação ao poder, seja este o poder de Estado, as associações profissionais médicas ou os organismos internacionais voltados para a assistência à saúde. Desse modo, constitui a ABEM um órgão com certo peso político no ensino médico, não pelo número de seus sócios, que são poucos, mas pela “qualidade” dos que dela participam cujo selecionado aval está na origem da força efetiva que possam ter as deliberações da ABEM. Este é certamente um dos motivos da vigência da norma institucional por força da qual a organização dos congressos fica tão centralizada nas mãos da direção.

Os eminentes professores que fizeram ou fazem parte da diretoria , e principalmente os seus presidentes, têm a sua representatividade avaliada não pela base que eventualmente possuem nas escolas médicas em que são docentes, mas antes pelo grau de respeitabilidade profissional e científica, bem como pelo seu poder de articulação política e - porque não dizer? - do trânsito e do acesso de que desfrutam junto aos organismos internacionais, o que possibilita inclusive o financiamento de alguns projetos da ABEM, como também junto aos órgãos de decisão do governo brasileiro.

Neste sentido, uma das hipóteses que podem ser levantada sé a de que, apesar de a ASEM ser formalmente uma entidade representativa das escolas médicas, seu esforço maior não é exatamente o de conseguir que suas propostas se façam ouvir, num primeiro momento, no interior das escolas de medicina. Tudo parece indicar que, a partir de uma deliberação a que se tenha chegado em um congresso, utiliza-se do canal político e do prestígio individual de alguns membros mais influentes para fazer com que as propostas referendadas pelas reuniões anuais da entidade sigam logo seu destino, que é o de serem apreciadas pelos órgãos governamentais, através da criação de comissões, ou mesmo sancionadas através de dispositivos legais.

Exemplos como este são vários. Não é mesmo incomum que algumas destas comissões fossem compostas, quase em sua totalidade, pelos próprios professores com destacada influência na ASEM, como foi o caso da Comissão de Ensino Médico do Ministério de Educação e Cultura, criada em junho de 1971. Dentre os oito membros que a compunham, cinco já haviam sido presidentes da ABEM (Roberto Figueira dos Santos; Clementina Fraga Filho; João Paulo do Valle Mendes; Horácio Kneese de Mello; Oscar Versiani Caldeira), apenas para citar um exemplo bastante significativo. Talvez o fato de a ABEM não ser um órgão oficial e de não ter nenhum poder administrativo permita aos professores que a dirigem - os quais, independente de qualquer restrição ou crítica que se lhes possa fazer por sua atuação política e ideológica, são homens de elevado nível intelectual e de leitura bastante atualizada nos assuntos pertinentes ao ensino médico principalmente no que dizer espeito à produção dos países desenvolvidos e mais especialmente os projetos norte-americanos - maior capacidade e desenvoltura nas articulações que desenvolvem, o que lhes possibilita, naturalmente dentro de certo horizonte ideológico, antever e dar balizamento às questões referentes ao ensino médico no Brasil.

Nesse sentido, é forçoso concluir que, esta capacidade de visão à frente tão característica da instituição se produz apenas dentro dos limites da proposta ideológica hegemônica na ABEM. Um exemplo significativo desta afirmação pode se observar pelos próprios temas definidos pela ABEM para os seus congressos. A questão do assalariamento médico praticamente não é tematizada. Não é demais lembrar que a imensa maioria dos professores com passagem pelos cargos de direção da ABEM, na sua atividade clínica, são médicos liberais bem sucedidos.

E omissões desta ordem ficam ainda mais expressivas quando se identifica, nos congressos anuais da ABEM, uma enorme preocupação com a questão salarial do médico-docente como na tese discutida em várias reuniões, denominada de “tempo integral geográfico”, que se constituiria no seguinte: o professor dedicaria um turno de seu trabalho às suas atribuições didáticas e, no outro turno, lhe seria facultado o uso das instalações do hospital-escola para a sua prática clínica privada. Esta proposta justifica-se como uma forma de complementar os ganhos do professorado e, ao mesmo tempo, “fixá-lo” o maior tempo possível nas circunvizinhanças do hospital-escola.1616. VERAS, Renato Peixoto. op. cit.

A residência médica, que foi um dos temas mais presentes ao longo das reuniões da ABEM, é um outro candente exemplo desta resistência da entidade diante dessa nova forma da organização da prática médica o assalariamento médico. No caso da residência médica, a relação é por demais evidente e, pelo menos a partir de 1978, havia duas greves, ocasionadas por reivindicações salariais, para desvelar aos olhos dos membros da ABEM este aspecto da questão. Além do mais, a Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR) é um dos sócios institucionais da ABEM. No entanto, mesmo assim, e apesar dos esforços dos professores mais jovens para colocar a questão na instituição, a ABEM permaneceu alheia ao problema.

Quando da discussão das propostas de tecnologia simplificada e da modernização e racionalização dos serviços de saúde, novamente se observa as mesmas características do exemplo anterior. Em relação à “simplificação da medicina”, sua generalização deveria colocar, pelo menos, a questão da socialização do trabalho médico, articulado e dividido com a equipe de saúde; ora, esta socialização é obviamente incompatível com a preservação da atividade autônoma, tanto mais que a “simplificação” impõe a institucionalização, o vínculo com o Estado, a atuação junto à populações pobres e periféricas etc... Na ABEM, as propostas de “simplificação” foram absorvidas e aprovadas, sem que se debatesse, sequer superficialmente, de que modo se poderia superar este impasse. Nem neste momento a questão do assalariamento foi enfrentada. Aliás, muitas das propostas aprovadas pela ABEM encontram seu limite no momento de serem colocadas em prática. No exemplo em pauta, da “simplificação da medicina”, a visão “medicocêntrica” da equipe de saúde de membros da ABEM traduz uma evidente resistência da ideologia liberal diante dessa nova forma de organização da prática médica. Certamente este foi um dos entraves para a implantação imediata desta proposta, nas escolas médicas, embora tenha sido aprovada unanimimente pela ABEM.

Assim, uma das características da ABEM mais enfatizadas nesse trabalho, qual seja, a sua capacidade de visão a longo prazo, de absorção da problemática discutida nos organismos internacionais ou nos países avançados, enfim, de antecipação, fracassa por completo diante das questões que transcendem o âmbito estrito da escola médica, uma vez que seus membros, imbuídos da “ideologia da neutralidade”, consideram ser seu papel discutir apenas os determinantes “técnicos”.

Configura-se assim, de modo evidente, que o discurso dominante na ABEM, que traduz o pensamento dos grandes intelectuais da escola médica brasileira, mostra o quanto a ideologia liberal define o horizonte possível da representação ideológica da prática médica pelos educadores médicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 3
    ______. ibid. p.38.
  • 4
    ______. ibid. p.39.
  • 5
    CASTRO, Célia Lúcia Monteiro de. op. cit. p.11
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  • 15
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  • 16
    VERAS, Renato Peixoto. op. cit.
  • 1
    * Trabalho baseado na dissertação de mestrado apresentada à UERJ, em 1981.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1984
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