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A AULA DE PORTUGUÊS: SOBRE VIVÊNCIAS (IN)FUNCIONAIS 1 1 Agradecimento à importante contribuição de Suziane da Silva Mossmann, Aílton Pereira Júnior, Natássia D. Alano, Aline Thessing e Glizauda Chaves, bolsistas Pibid e protagonistas das ações docentes das quais derivou o processo de geração de dados para este artigo.

Resumos

Este artigo tematiza a aula Português, discutindo a educação linguística escolar para os usos sociais da escrita. Trata-se de uma abordagem – fundada em reflexões sobre (in)funcionalidade de Ponzio (2008-2009) – que objetiva responder à seguinte questão-problema: ‘Em se tratando de aulas de Português em classes de Educação Básica situadas em entornos de vulnerabilidade social, é possível ensaiar um processo de elaboração didática – no ensino dos usos sociais da escrita – que não se limite à funcionalidade?’ A base teórica é a filosofia da linguagem bakhtiniana, a antropologia da linguagem dos estudos do letramento e a psicologia da linguagem de fundamentação vigotskiana. Trata-se de um estudo de caso cujos dados foram gerados por meio de pesquisa documental em vivências do Programa Institucional de Iniciação à Docência – Pibid/Capes – e cuja análise tem base interpretativista. Os resultados sinalizam possibilidades de uma ação didática que, valendo-se da funcionalidade que caracteriza o aparelho escolar e as novas tecnologias, abra espaços à educação para o infuncional, para os usos da escrita em que a palavra não se rende à lógica do mercado global.

Ensino e aprendizagem de língua materna; Usos sociais da escrita; (In)funcionalidade


This article broaches the Portuguese class, discussing school language education for social uses of writing. It is an approach - based on reflections on (non) functionality of Ponzio (2008-2009) – which aims to answer the following question – problem: ‘With regard to Portuguese classes in Basic Education classes located in vulnerable social environments, is it possible to test the elaboration of a didactic process – in the teaching of the social uses of writing - which is not limited to functionality? The theoretical basis is the philosophy of Bakhtin’s language, the language of anthropology of literacy studies and the psychology of language of Vigotskian substantiation. This is a case study whose data were generated by means of documentary research on experiences of the Institutional Program for Introduction to Teaching – Pibid/Capes –, whose analysis has an interpretive basis. The results indicate possibilities of a didactic action which, taking advantage of the functionality that characterizes the school system and the new technologies, open spaces to education for the non-functional, for the uses of writing in which the word does not yield to the logic of the global market .

Teaching and learning of native language; Social uses of writing; (Non) functionality


Introdução

Possivelmente um dos maiores desafios, hoje, na aula de Português – e seguramente nas aulas de outras tantas disciplinas escolares – seja empreender um processo de elaboração didática (HALTÉ, 2008HALTÉ, J. F. O espaço didático e a transposição. Fórum Linguístico, Florianópolis, v.5, n.2, p.117-139, 2008.) que conte com o engajamento dos alunos na interação proposta (MATÊNCIO, 2001MATÊNCIO, M. L. M. Estudo da língua falada e aula de língua materna: uma abordagem processual da interação professor/alunos. Campinas: Mercado de Letras, 2001.). Adicionalmente, impõe-se também o desafio de que esse mesmo processo convirja com a concepção de língua que nos é cara e com a concepção de sujeito inerente a ela (GERALDI, 1991GERALDI, J. W. Portos de passagem: São Paulo: Martins Fontes, 1991.; BRITTO, 1997BRITTO, L. P. L. A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 1997.); ou seja, uma concepção de língua como encontro2 2 Encontro, para Ponzio (2010; 2013), implica o que o autor chama de alteridade absoluta, fundamentada sobre o conceito, também seu, de diferença não-indiferente. Estamos seguras de que uma relação dessa natureza entre o eu e o outro dá-se apenas no âmbito da chamada alteridade absoluta e, portanto, do que o autor entende como infuncional, conceito este que será objeto de discussão neste artigo. Queremos, porém, arriscar estender o conceito de encontro em Ponzio também para relações que ele apontaria como de alteridade relativa – neste caso, relações entre professor e alunos –, e fazemos isso exatamente para propor que a aula de Português se institua sobre a diferença não-indiferente, ou seja, a diferença que considera as singularidades e não as individualidades. Essa discussão não será tematiza neste artigo na profundidade que requer em razão dos limites de um texto neste gênero do discurso, mas a topicalizamos brevemente em uma das seções para ancorar o eixo sobre o qual o artigo se constrói. entre a palavra outra e a outra palavra (PONZIO, 2010PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010.) e uma concepção de sujeito historicizado, que se constitui na relação com a alteridade (GERALDI, 2010bGERALDI, J. W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João, 2010b.). E desafia-nos, ainda, a compreensão de que, em nossa condição – como professoras – de interlocutoras mais experientes, incidimos sobre as representações de mundo de nossos alunos (VIGOTSKI, 2000VIGOTSKI. L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), em aulas de Português que se compõem de eventos de letramento (HEATH, 1982HEATH, S. B. What no bed time story means: narrative skill sat home and school. Language in Society, Cambridge, v.11, n.1, p.49-76, 1982.) diversos, nos quais nos compete, pela lógica da ética da profissão, horizontalizar (KALANTZIS; COPE, 2006KALANTZIS, M.; COPE, B. Multiliteracies. London: Routledge, 2006.) as práticas de letramento (STREET, 1988STRETT, B. Practices and Literacy Myths. In: SALJO, R. (Ed.). The Written World: Studies in Literate Thought and Action. Berlim; Nova Iorque: Springer-Verlag, 1988.) de nossos alunos.

Ao registrar esses desafios no parágrafo anterior, fazemos, concomitantemente a esse registro, remissão a autores que fundamentam nossas discussões. Trata-se de abordagens teóricas que temos proposto colocar em dialogia no que vimos chamando simpósio conceitual (CERUTTI-RIZZATTI; MOSSMANN; IRIGOITE, 2013CERUTTI-RIZZATTI, M. E.; PEREIRA, H. M.; PEDRALLI, R.. A escrita na escola: um estudo sobre conflitos e encontros. Revista do Gel, São Paulo, v.10, n.1, p.35-64, 2013.), abordagens que entendemos de base histórico-cultural e que vimos agenciando nos estudos que temos empreendido em nosso grupo de pesquisa, ‘Cultura escrita e escolarização’, no âmbito do ‘Núcleo de Estudos em Linguística Aplicada’ – Nela – na Universidade Federal de Santa Catarina. Essa proposta de dialogia se estabelece entre a filosofia da linguagem bakhtiniana, a psicologia da linguagem vigotskiana e a antropologia da linguagem dos estudos do letramento.

Assim, com base nos desafios apresentados e à luz do simpósio conceitual mencionado, é nosso propósito, neste artigo, tematizar a aula de Português, tendo como delimitação a natureza (in)funcional da ação docente. Para tanto, partimos dos conceitos de (in)funcionalidade propostos por Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41. e nos move a resposta à seguinte questão de pesquisa: Em se tratando de aulas de Português em classes de Educação Básica situadas em entornos de vulnerabilidade social,3 3 Com base em Érnica e Batista (2011), entendemos por entornos de vulnerabilidade social aqueles espaços em que tendem a se estabelecer relações de auto-regulação entre escolas públicas que atendem a uma mesma clientela desprivilegiada socioeconomicamente, processo em que um dos estabelecimentos cria filtros por meio de exigências burocráticas como apresentação de documentos, assinatura dos pais, entrega de fotografias e afins, o que redunda em um processo de seleção sub-reptícia de alunos, determinando que aqueles em situação de maior precariedade no que respeita à organização familiar e às condições econômicas terminem por serem decantados dali e recebidos por estabelecimentos com estruturação funcional menos rigorosa e, boa parte das vezes, com ação pedagógica mais frágil. é possível ensaiar um processo de elaboração didática4 4 Com base em Halté (2008), entendemos por elaboração didática o processo que, no agir docente, sincretiza saberes científicos, práticas de referência e conhecimentos especializados, não se limitando à mera transposição de saberes científicos para a esfera escolar. – no ensino dos usos sociais da escrita – que não se limite à funcionalidade? Nosso objetivo, em convergência com essa questão-problema, é descrever analiticamente possibilidades que vimos para tal, em duas dessas classes, fazendo-o sob um olhar interpretativista (MASON, 1996MASON, J. Qualitative researching. London: SAGE Publications, 1996.).

Para tanto, este artigo estrutura-se em três seções: na primeira delas, apresentamos as bases teóricas para esta discussão; na segunda, detalhamos procedimentos metodológicos; e, na última, apresentamos e analisamos dados empíricos de vivências de nosso grupo de pesquisa, na interface com a extensão, na busca por responder à questão-problema. Trata-se de uma abordagem comprometida, à luz de Ponzio (2011PONZIO, A. Revolução bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João, 2011.; 2010PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010.), com a Linguística da escuta;5 5 Por Linguística da escuta, para as finalidades deste artigo, entendemos a Linguística que tem como objeto de estudo a língua/linguagem tomada no encontro entre subjetividade e alteridade, o que requer a ausculta de que trata Ponzio (2010), com base na compreensão responsiva proposta pelo Círculo de Bakhtin. no caso de nosso grupo, comprometida com uma Linguística com esses contornos, mas na ênfase aos estratos de vulnerabilidade social, que tendem a se caracterizar por restrições de acesso à escolarização plena. Eis a dimensão política de nosso engajamento de pesquisa.

Ancoragem teórica em simpósio: em busca de olhar os usos da língua no encontroentre sujeitos historicizados

Alguns conceitos são fundamentais na discussão a que nos propomos neste artigo, e nos ocupamos deles ao longo desta seção, fazendo-o sob a lógica, reiteramos, de agenciamento do simpósio conceitual (CERUTTI-RIZZATTI; MOSSMANN; IRIGOITE, 2013CERUTTI-RIZZATTI, M. E.; PEREIRA, H. M.; PEDRALLI, R.. A escrita na escola: um estudo sobre conflitos e encontros. Revista do Gel, São Paulo, v.10, n.1, p.35-64, 2013.) anteriormente mencionado. Tecemos, a seguir, à luz desse simpósio, relações que entendemos relevantes para o foco desta discussão.

A aula de Português como encontro

Ponzio (2013)PONZIO, A. Fuori luogo. Milano: Mimesis, 2013. entende que relações entre o eu e o outro que se dão no âmbito do que ele chama alteridade absoluta são aquelas em que não pode haver substituição de nenhum dos interactantes: as relações amorosas são bons exemplos. Nesses casos, as singularidades se impõem – não há indivíduos, mas sujeitos singulares, insubstituíveis, não cambiáveis. Trata-se, aqui, do que o autor nomeia como diferença não-indiferente, ou seja, a diferença existe, mas não se pode ser indiferente a ela, porque estamos lidando com sujeitos singulares, historizados em suas vivências e idiossincrasias e não com indivíduos enquadráveis em grandes categorias macrossociológicas – para os fins deste artigo, idade, série, classe social, gênero antropológico e afins.

Assim, cientes de que as relações entre professores e alunos são da ordem da alteridade relativa – ou seja, em tese os interactantes podem ser substituídos, porque se trata de indivíduos –, queremos advogar aqui em favor do contrário: parece-nos que a aula de Português, bem como as aulas de modo geral, precisa converter-se em uma relação de outra ordem para de fato significar e ressignificar nas/as vivências dos sujeitos. E, se importa quem sejam os sujeitos, se importa que sejam diferentes, porque essas diferenças são relevantes e não apenas distintas entre eles, então nos parece que estamos tratando de alteridade absoluta e não mais relativa e de diferenças não-indiferentes; logo, estamos tratando de encontro.

Trata-se de colocar o enfoque na intersubjetividade, na singularidade e nas movências (GERALDI, 2010aGERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João, 2010a.) que o encontro traz consigo para os interactantes, porque entendemos que tais movências que se dão nas singularidades dos sujeitos são a razão de existência da aula de Português – ou de qualquer processo educacional –, o que decorre também de nossas leituras de Vigotski (2000)VIGOTSKI. L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000. sobre relações entre o que é interspsicológico e o que é intrapsicológico – que preferimos tratar como intersubjetivo e intrassubjetivo (com base em GERALDI; FICHTNER; BENITES, 2006GERALDI, J.; FICHTNER, B.; BENITES, M. Transgressões Convergentes: Vigotski, Bakhtin, Bateson. Campinas: Mercado das Letras, 2006.) – e sobre aprendizagem significativa. Fundamentamo-nos, ainda, para isso, nos conceitos vigotskianos de sociogênese e microgênese (VIGOTSKI, 1997VIGOTSKI. L. S. The Problem of Development of Higher Mental Functions.In: RIEBER, R. W. (Ed.). The collectd works of L.S. Vygotsky. New York: Plenun Press, 1997. p.1-28.), com o propósito de compreender a historicidade do desenvolvimento dos sujeitos no âmbito das relações intersubjetivas situadas que eles estabelecem ao longo de sua formação.

Quanto a essa noção de encontro, Ponzio (2010PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010., p.40) entende que “[...] não há primeira outra palavra de cada um e em seguida o encontro com a palavra outra à qual se dirige e da qual requer escuta”. E continua: “Não há antes o eu e o outro, cada um com o que tem a dizer, e, em seguida a relação entre eles”. E, o mais importante para as finalidades deste artigo: “A relação não é entre eles, mas é justamente aquilo que cada um é no encontro da outra palavra com a palavra outra, e como não teria sido e provavelmente não poderá ser fora daquele encontro”. Logo, o encontro não é ‘entre’ eles, mas ‘deles’.

E nessa relação nos transformamos, como sugere o autor, ao escrever: “O valor da palavra do singular é acrescentado e enriquecido pela compreensão participativa da palavra outra que adverte toda a sua precariedade, a limitação, a provisoriedade, a fugacidade; que adverte o seu sentido de falta, a sua possibilidade da ausência; a sua inseparabilidade [...]” (PONZIO, 2010PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010., p.45-46). Assim concebendo, propomos enfocar aqui a aula de Português como encontro entre professor e alunos, sujeitos que carreiam a sua historicidade, na já transcrita compreensão de Ponzio (2010)PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010., aquilo que cada um é; logo, as singularidades que os tornam insubstituíveis no encontro.

Reconhecemos, porém, que esse encontro delineia-se historicamente com propósitos definidos no âmbito da funcionalidade das relações do aparelho escolar: as relações intersubjetivas que se dão nele têm objetivos de formação institucional; no caso da aula de Português, objetivos de educação linguística.6 6 Não é nosso foco imergir no acalorado espectro de discussões do que seja educar linguisticamente falantes de uma língua materna; interessa-nos, aqui, discutir a aula de Português no delimitado âmbito da formação para os usos da escrita, mas registramos o reconhecimento explícito de que, nem a aula de Português, nem a educação linguística restringem-se ao enfoque da modalidade escrita. Ela nos ocupa por ser nosso objeto de pesquisa e, nas seções que seguem, tomaremos o encontro sob essa perspectiva. De todo modo, quando propomos usar encontro para uma interlocução reconhecidamente funcional o fazemos exatamente com o propósito de colocar em xeque a diferença indiferente sobre a qual essa interlocução historicamente tem se estabelecido.

A horizontalização das práticas de letramento dos alunos: retomando já-ditos

A compreensão que registramos nesta seção retoma linhas gerais de concepções que vimos delineamento no já mencionado grupo de pesquisa de que fazemos parte, no âmbito do qual tomamos o encontro aula de Português no que respeita à escrita, concebendo-o como um conjunto de eventos de letramento – com base em proposições de Heath (1982)HEATH, S. B. What no bed time story means: narrative skill sat home and school. Language in Society, Cambridge, v.11, n.1, p.49-76, 1982., Barton (1994)BARTON, D. Literacy: An Introduction to the Ecology of Written Language. 2.ed. Oxford: Blackwell, 1994. e Hamilton (2000)HAMILTON, M. Expanding the NewLiteracy Studies: Using Photographs to Explore Literacy as Social Practice. In: BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, R. (Org.). Situated literacies. London: Routledge, 2000. p.16-34. –, e entendendo tais eventos como aquelas situações em que a modalidade escrita é parte das relações intersubjetivas, desempenhando nelas um papel específico, seja esse papel prevalecente ou pontual. Trata-se, ainda, de um encontro em que cada evento tem finalidades historicamente consolidadas: à luz de Kalantzis e Cope (2006)KALANTZIS, M.; COPE, B. Multiliteracies. London: Routledge, 2006., horizontalizar as práticas de letramento dos alunos. E, entendendo práticas de letramento, com base em Street (1988; 2000), como o conjunto de vivências, valorações, experiências sobre/com a escrita que historicizam os sujeitos, essa finalidade da ação escolar implica conhecer e respeitar tais práticas no seu delineamento vernacular e agir no sentido de que elas se horizontalizem, para as quais os alunos devem vivenciar experiências outras que não lhe são dadas em sua inserção social imediata.

Para tanto, importa que, no encontro aula de Português, o professor exercite cotidianamente o ato de conhecer as práticas de letramento de seus alunos – suas singularidades –, depreendendo-as a partir de sua condição de interactantes (HAMILTON, 2000HAMILTON, M. Expanding the NewLiteracy Studies: Using Photographs to Explore Literacy as Social Practice. In: BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, R. (Org.). Situated literacies. London: Routledge, 2000. p.16-34.) nos eventos de letramento que historicizam cada um dos encontros. E, em as conhecendo paulatinamente com maior precisão, compete ao professor incidir sobre elas, na busca de horizontalizá-las. Eis, com base em Vigotski (2000)VIGOTSKI. L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000., a função docente de interlocução experiente a viabilizar a apropriação, por parte dos alunos, do ainda não vivenciado, não conhecido, não experienciado.

Assim, entendemos que a relação entre letramentos vernaculares e letramentos dominantes (BARTON; HAMILTON, 1998BARTON, D.; HAMILTON, M. Local Literacies: reading and writing in one community. Londres: Routledge, 1998.) é necessariamente objeto de atenção no encontro aula de Português, porque a ação funcional da escola, dentre outros enfoques, é facultar aos alunos apropriarem-se de usos da escrita que, evocando o pensamento bakhtiniano, historicizam-se no grande tempo, de modo a que lhes seja dado optar entre vivenciar esses usos tão somente no limite de suas manifestações na ‘imediatez’ do tempo e do espaço ou fazê-lo também na inter-relação com outros tempos e outros espaços, no grande tempo.

[...] uma obra não pode viver nos séculos futuros, se não reúne em si, de certo modo, os séculos passados. Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto é, em sua atualidade), não desse continuidade ao passado e não mantivesse com ele um vínculo substancial, não poderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele. (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p.363)

Não nos ocuparemos aqui de discussões sobre o que entendemos por letramentos vernaculares e dominantes, porque, em nosso grupo, fizemos isso em Cerutti-Rizzatti e Almeida (2013)CERUTTI-RIZZATTI, M. E.; ALMEIDA, K. C. Identidade, subjetividade e alteridade nas relações entre universos global/local e letramentos dominantes/vernaculares. SCRIPTA, Belo Horizonte, v.17, n.32, p.45-68, 1º sem. 2013.. Também não nos ocuparemos de discutir a complexidade de uma ação docente para lidar com a relação entre o que parece ser vernacular e o que se coloca como dominante, porque, também em nosso grupo, ocupamo-nos disso em Cerutti-Rizzati, Pereira e Pedralli (2013). Nosso propósito, neste artigo, é refletir sobre relações entre a apropriação dos usos da escrita tidos como dominantes e o direito dos sujeitos à infuncionalidade, porque entendemos que da apropriação dos usos da escrita que transcendem a ‘imediatez’ do tempo e do espaço depende em boa medida, no que concerne a tais usos, o exercício desse direito.

A apropriação dos letramentos dominantes e o direito à infuncionalidade

Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41., reconhecendo que o léxico da língua italiana não registra os vocábulos infunzionale e infunzionalità, entende que a vida não é vida sem o direito ao que chama de infuncionalidade. O autor concebe a infuncionalidade como aquilo que deriva da ausência de interesses, de utilidades, de propósitos definidos. Para tratar do conceito usa com frequência o exemplo das relações afetivas. Escreve:

Ciascuno di noi sa che è alla propria infunzionalità che vorrebbe che l’affetto altrui fosse diretto. In un rapporto che ci coinvolge fortemente, nel senso che è un rapporto decisivo per noi – non un rapporto di lavoro – un rapporto decisivo nel senso affetivo, nel senso del volere bene a qualcuno e del desiderare che anch’egli voglia bene a noi, sappiamo con certezza che il valore di questo rapporto consiste nel suo essere “desinteressato”. (PONZIO, 2008-2009PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41., p.32, grifos do autor)

Trata-se de um conceito que decorre de uma crítica do autor ao fato de que tudo, hoje, pode se tornar mercadoria, inclusive o chamado trabalho imaterial, a exemplo do que fazemos nas universidades. A crítica do autor incide sobre a forma como a universidade atua em favor da funcionalidade, com um sistema de créditos que redundam em cômputo de horas, tal qual a lógica do mercado de trabalho, que remunera por horas. As universidades, observa Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41., têm como propósito ‘formar para o mercado de trabalho’: o egresso deve poder ‘vender seu trabalho imaterial’. A crítica dá conta de que, hoje, tudo pode virar mercadoria.

Essa discussão nos leva para uma reflexão que surge com base em considerações de Silvestri (2013)SILVESTRI, F. Filosofia del linguaggio. Bari, 2013. Anotações de aula feitas por Mary Elizabeth Cerutti Rizzatti na Università degli Studi di Bari Aldo Moro. sobre os ‘modernos campos de concentração’. Segundo ele, dispositivos a exemplo do Facebook atuam como verdadeiros ‘estábulos’ de concentração de manadas humanas, as quais são dirigidas por caminhos previamente traçados para os fins de mercado, não sendo gratuito que os gestores de tais dispositivos hoje constituam as maiores fortunas do mundo e digladiem entre si na busca de propor novos ‘estábulos’ que façam as ‘manadas humanas’ migrarem em massa. Entendemos que a transição OrkutFacebook parece exemplar de uma já consolidada migração como essa, abrindo rastro para outras que se prenunciam. Ponzio (2013PONZIO, A. Fuori luogo. Milano: Mimesis, 2013., p.16) alerta para isso quando registra que, “[...] a livello mondiale, nella globalizzazione attuale, [...] a un mercato universale corriponde una comunicazione universale che veicola gli stessi bisogni, le stesse esigenze, gli stessi desideri, gli stessi immaginari”.

Trata-se, no entendimento desse pensador, de uma época em que o apressar-se e o exibir-se foram ‘tornados’ necessidades humanas para as finalidades de um mercado global. Nesse rastro, entendemos que dispositivos como Instagram e Twitter, ao lado do Facebook, parecem exemplares desses novos ‘campos de concentração’ e, acrescentamos, campos que, diferentemente de Auschwitz-Birkenau, não retêm os sujeitos pela força das armas, mas pela exacerbação do narcisismo, do exibicionismo, da vaidade, do voyeurismo e afins. Somos, hoje, uma civilização de pressa e de autoexposição.

Essa nossa discussão não desmerece, evidentemente, a fantástica revolução que as redes sociais significam em se tratando da forma como a interação global se dá hoje, transcendendo uma relação ‘um para muitos’, como se processava na configuração piramidal da comunicação em massa, para a configuração ‘muitos para muitos’, como se dá na comunicação em rede (DANESI, 2013DANESI, M. La comunicazione al tempo di Internet. Bari: Progedit, 2013.). Reconhecemos o fantástico avanço que isso representa para relações sociopolíticas mais simétricas, do que são exemplos episódios recentes de mobilização popular na História do Brasil e do mundo: não há um líder carismático catalisador; as multidões se auto-organizam na relação das pessoas entre si. Como fenômeno social, porém, há muitas faces constitutivas dessas redes, dentre as quais a que tratamos aqui: um forte comprometimento com uma lógica funcional do mercado global.

E, à luz dessa lógica, nossos alunos se caracterizam pela necessidade de mudanças constantes de foco de atenção, evidência disso parece ser a forma como dividem sua atenção entre vários focos ao mesmo tempo e mudam tais focos com uma rapidez pouco compreensível para adultos imigrantes nas novas tecnologias. Programadores de atrações massivas televisivas e cinematográficas – as ainda mídias de massa da lógica ‘um para muitos’ (DANESI, 2013DANESI, M. La comunicazione al tempo di Internet. Bari: Progedit, 2013.) – têm lidado com esse desafio na transformação de enredos e cenas de modo que cada um dos enfoques não dure mais do que dois ou três minutos, dando lugar ao enfoque seguinte, porque qualquer prolongamento implica riscos de fuga de atenção do espectador. Trata-se de uma busca, por parte dessas mídias, de aproximação com a lógica acelerada e fugaz do formato em rede.

À luz de Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41., podemos compreender isso como a arquitetônica do mercado de trabalho global: mudar para se manter. Esse mercado caracteriza-se, ainda, pela necessidade de forçar, o mais rapidamente possível, a obsolescência dos bens já adquiridos pelo consumidor de modo a promover a aceleração da circulação de mercadorias: um novo software não ‘roda’ no hardware que temos; logo, é preciso mudar os dois, o que remete a parcerias multimilionárias entre produtores de uns e de outros.7 7 A exemplo de parcerias entre Nokia e Microsoft (Disponível em: <http://gizmodo.uol.com.br/microsoft-e-nokia-oficializam-parceria/>. Acesso em: 30 mar. 2015) e Samsung e Google (Disponível em: <http://www.tudosobremktdigital.com.br/google-e-samsung-fecham-parceria-contra-apple/>. Acesso em: 30 mar. 2015). Esse processo parece ter duplo desdobramento: ao mesmo tempo em que se reorganizam tais novos comportamentos, ratificam-nos – se não os produz – com suas proposições mercantis.

As consequências dessas mudanças contemporâneas parecem incidir claramente sobre a esfera escolar e, no que diz respeito à educação linguística, com enfoque na escrita, parecem atrair-nos para um perigoso invólucro de formação para a funcionalidade. Entendemos necessária, nesse momento, uma reflexão mais demorada sobre essa questão e, para tanto, consideramos, inicialmente, que os estudos do letramento, sobretudo com Street (1984), fizeram-nos compreender como historicamente os usos da escrita estavam associados à erudição, à compreensão de leitura como sinônimo de ler obras literárias, a uma postura sacrossanta e elitizada acerca dos usos da escrita, alijando, não raro, da condição de humanidade inerente à capacidade de abstração do real pelas populações ágrafas ou mesmo pelos sujeitos que não se apropriaram dos sistemas de escrita.8 8 A exemplo de estudos de David Olson, Patricia Greenfield e Angela Hildyard, mencionados por Street (1984). Os estudos do letramento seguramente constituem uma contribuição substantiva para uma nova forma de lidar com a escrita também nos processos de escolarização e têm se mostrado fecundos em mudanças nas concepções nesse campo na esfera escolar, sobretudo, no Brasil, a partir de Angela Kleiman em suas várias publicações sobre o tema.

Se, porém, essa contribuição é substantiva, precisamos considerar que, como tende a acontecer com teorias acadêmicas quando ganham vulgarização científica (BORGES NETO, 2004BORGES NETO, J. Ensaios da Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.), nesse caso na esfera escolar, compreensões de toda ordem parecem derivar dessas mesmas teorizações. Britto (2012)BRITTO, L. P. L. Inquietudes e desacordos: a leitura além do óbvio. Campinas: Mercado de Letras, 2012., nesse sentido, chama atenção para o risco de enveredarmos por uma concepção de escrita de finalidades muito estreitamente vinculadas à funcionalidade do cotidiano quando exacerbamos o olhar para esse mesmo cotidiano. Entendemos, porém, que nos compete atenção para essa questão, que reputamos delicada, tanto pela possibilidade de retomarmos uma compreensão sobre os usos da escrita muito focada na erudição – do que Street (1984) e Kleiman (1995)KLEIMAN, A. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995. contribuíram para nos redimir –, quanto pela possibilidade de denegarmos essa mesma erudição em nome de uma atenção desmesurada à ecologia da escrita, em uma corruptela do sentido que lhe dá Barton (1994)BARTON, D. Literacy: An Introduction to the Ecology of Written Language. 2.ed. Oxford: Blackwell, 1994.. E, fazendo-o, não raro incorremos no que Street (2000, p.19) nos adverte para não fazermos: “Neverthless, I think the ways in which the term ‘multiple literacies’ gets adopted at times falls into the trap of reification”.

Agrada-nos, na abordagem seminal de Barton (1994)BARTON, D. Literacy: An Introduction to the Ecology of Written Language. 2.ed. Oxford: Blackwell, 1994., o olhar metafórico da ecologia porque ele suscita harmonizações sem sobressaltos; logo, não pode ser refém de desmesuras. Os usos situados da escrita – na lógica histórico-cultural, socioeconômica e política sob a qual se engendram em cada um dos diferentes grupos humanos – não compõem universos herméticos a mudanças, porque dela depende o movimento de historicização em si mesmo; tanto quanto não compõem universos tão abertos ao exótico que percam seus próprios referenciais históricos. Esse olhar ecológico – tentando fugir a corruptelas – nos agrada porque, em nosso entendimento, ele se constrói tendo por base a equilibração,9 9 O uso de equilibração, aqui, objetiva denotar movimento, o que parece não ser tão evidente na palavra equilíbrio; distanciamo-nos, nesse uso, de quaisquer relações com o ideário piagetiano. que seguramente não decorre de imposições de outrem, mas de negociações que têm lugar nas relações intersubjetivas no interior desses mesmos grupos, na saudável tensão com o que lhe é exterior.

Equilibrar esses olhares parece ser o desafio da escola, sob pena de vergarmos a vara – na metáfora que Saviani (2008)SAVIANI, D. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 2008. toma de Lênin – para o lado oposto da erudição e – valendo-nos da crítica de Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41. feita em um plano mais amplo da vida humana – cairmos na armadilha da funcionalidade que serve ao mercado global. Sejamos mais claras: desafiam-nos a pressa do foco da atenção de nossos alunos e a forma como lidam com as novas tecnologias, o que, a exemplo de discussão que registramos anteriormente, provoca mudanças do mercado ao mesmo tempo em que as referenda. Assim, diante da incomensurabilidade desses desafios, vemo-nos premidos a organizar as nossas aulas com base nas novas tecnologias, na compreensão de que, conformando Facebook, Twitter e afins em estratégias ou recursos de ensino, por exemplo, estaríamos caminhando em busca de, de fato, nos encontrarmos com nossos alunos, de modo a auferirmos uma convergência interacional mínima que faça a aula acontecer (IRIGOITE, 2011IRIGOITE, J. C. Vivências escolares em aulas de Português que não acontecem: a (não) formação do aluno leitor e produtor de textos-enunciado. 2011. 290f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.), porque, em tese, estaríamos ‘usando a linguagem deles’.

Nesse afã de ‘tecnologicização’ tomada como sinônimo de contemporaneidade da ação escolar, novamente, não raro, incorremos em outro dentre os deslizes de que Street (2000, p.21) nos adverte:

In developing a multi-literacies view, then, it is important to guard against a kind of determinism of channel or technology in which visual literacy, in itself, is seen as having certain effects which may be different from computer literacy. The focus would then be on the mode, on the visual media and other kinds of channels are actually given meaning. It is the social practices. I would want to argue that give meaning and lead to effects, not the channel itself.

Talvez, então, devêssemos endereçar uma atenção mais demorada para as práticas sociais que têm os dispositivos eletrônicos como mediadores e não superestimar tais dispositivos em si mesmos. Possivelmente mereça nossa atenção a entrada aparentemente intensa – um dado a carecer de confirmação em pesquisas específicas – de dispositivos como o Facebook em nossas aulas de Português, enquanto, por exemplo, dispositivos eletrônicos como Kindle e afins, que se prestam para leitura de materiais de maior densidade de conteúdo, isentando-nos do desconforto da luz das telas dos computadores, ainda sejam tão pouco comuns em nossas buscas por modernizar as aulas, o que evidentemente tem desdobramentos socioeconômicos mais complexos.

De todo modo, vale a pergunta: Implicariam dispositivos como estes últimos um tempo e um recolhimento com que não estamos mais habituados? Estaríamos hoje nos tornando reféns da necessidade de postar com rapidez e de, também com rapidez, acessarmos as respostas, em si mesmas também apressadas, de outrem? Teríamos nós de aprender de novo que responder, como quer Bakhtin (2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.; 2010), pode também se dar no calar [do recolhimento]? Se pensarmos na forma como lemos textos mais densos na tela de computadores comuns, com várias ‘janelas’ abertas em paralelo de modo a não perder nossos ‘tempos de resposta’ às demandas da pressa de outrem, parece que de fato esse ‘recolhimento’ é uma inviabilidade na vida contemporânea, na qual ‘desconectar-se’ implica, não raro, uma sensação de ‘estar ficando à margem de’ um tempo em mudanças velozes.

A questão que se nos afigura aqui é até que ponto não estamos reificando o conceito de letramento, contra o que nos adverte Street (2000), e tomando esse conceito para priorizar os dispositivos eletrônicos em si mesmos – na condição de reféns de um comportamento pós-moderno – e, em eventual exacerbação desse comportamento, deixando de analisar com mais vagar a natureza das práticas sociais a que tais canais eletrônicos se prestam. No âmbito dessa questão, ainda, em que medida tais práticas não servem a uma funcionalidade que interessa ao mercado global? A entrada de dispositivos como blogs e Facebook na escola faz-se sobre uma lâmina perigosa: de um lado, a necessidade de tornar nossas aulas convergentes com avanços da humanidade como civilização e das grandes benesses que isso significa sob vários pontos de vista; de outro, o risco de fazê-lo a serviço de um mercado global voraz que se entranha nesses mesmos avanços.

Hoje, à luz de discussões de Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41. para a vida humana em seu sentido mais amplo, entendemos que nos cabe, na funcionalidade da ação escolar, facultar a nossos alunos conhecer o sagrado direito à infuncionalidade, a qual está implicada, segundo o autor, em nossa condição de humanidade. Nessa discussão, ele argumenta que o mais básico vaso de terracota, feito por grupos humanos de diferentes conformações culturais, não se limita à funcionalidade, exibindo algum tipo de adereço, de filigrana completamente ‘desnecessário’ para os fins funcionais a que se presta. Até mesmo ao alimentar-se, condição básica de sobrevivência do ser humano, a configuração do ‘prato’ agrega-se à mera condição de ‘alimento a ser ingerido’, tanto que a culinária é historicamente cognominada ‘arte’.

Entendemos que, hoje, caminhamos na aula de Português para uma perigosa servilidade ao funcional sempre que exacerbamos, em nossas abordagens com a escrita, usos ‘necessários’ ao cotidiano humano, apressados, abreviados de recolhimento, presos à ‘imediatez’ do dia a dia e, sobretudo, de um dia a dia com a configuração de que tratávamos anteriormente, com base em Silvestri (2013)SILVESTRI, F. Filosofia del linguaggio. Bari, 2013. Anotações de aula feitas por Mary Elizabeth Cerutti Rizzatti na Università degli Studi di Bari Aldo Moro., tempos de exibicionismo, de narcisismo, de voyeurismo, de pressa, de superficialidade, de não aprofundamento.

À luz de Ponzio (2008-2009; 2013), dentre os usos da palavra – para nós, aqui, a palavra escrita –, aquele que menos se presta à funcionalidade é o uso na literatura, porque esse uso não se adapta à lógica orwelliana da newspeak, a qual se assenta sobre a possibilidade de controle da língua, sobre a ausência de duplos sentidos, uma lógica muito próxima da funcionalidade. Entendemos que, quando Street (1984) nos adverte para a necessidade de olhar a escrita sob outros ângulos, de modo a ver mais do que apenas os cânones, possivelmente esteja vergando a vara para o outro lado na busca de uma equilibração necessária porque inclusiva. Talvez, na equivocada exacerbação a que já fizemos menção, estejamos vergando-a demasiadamente para o outro lado e perdendo novamente o equilíbrio, em ações docentes, no ensino dos usos da escrita nas aulas de Português, demasiadamente comprometidas com a funcionalidade: as postagens do Facebook, as imagens do Instagram, as mensagens do Twitter, as notícias no blog, os anúncios no hipertexto, quando não –também fora desses dispositivos – a receita, o rótulo, o anúncio classificado e afins, em rol de gêneros do discurso –ou, com base em Geraldi (2010a)GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João, 2010a., em reificações deles – que instituem relações de ‘imediatez’ cotidiana.

Seguramente se trata de usos da escrita que demandam abordagem escolar em uma aula de Português que se ocupe das práticas sociais instituídas pela modalidade escrita, mas entendemos que, na ecologia como as trata Barton (1994)BARTON, D. Literacy: An Introduction to the Ecology of Written Language. 2.ed. Oxford: Blackwell, 1994., precisa haver lugar para usos da modalidade escrita no exercício do sagrado direito à infuncionalidade, a exemplo das manifestações literárias que ganharam o grande tempo exatamente porque não se estabelecem como resposta a um mercado de consumo imediato. Como quer Bakhtin (2003)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., em menção feita em seção anterior, aquilo que pertence apenas ao presente morre com ele, porque, para que uma obra ganhe o grande tempo, precisa dialogar com o presente e com o passado. Quando os usos da escrita restringem-se a atender ao mercado, tendem a se aprisionar na pressa do presente e não ganhar o horizonte do grande tempo.

Entendemos que os usos que ganham o grande tempo tendem a fazê-lo por um movimento de aposição de vozes, mesmo que de homologações (PONZIO, 2008-2009PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41.), que lhes aproxima da ideologia oficial (BAKHTIN, 2009BAKHTIN, M. O Freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2009.) e que reverbera o plano da ontogênese humana (VIGOTSKI, 1997VIGOTSKI. L. S. The Problem of Development of Higher Mental Functions.In: RIEBER, R. W. (Ed.). The collectd works of L.S. Vygotsky. New York: Plenun Press, 1997. p.1-28.), ao qual, em Cerutti-Rizzatti e Almeida (2013)CERUTTI-RIZZATTI, M. E.; ALMEIDA, K. C. Identidade, subjetividade e alteridade nas relações entre universos global/local e letramentos dominantes/vernaculares. SCRIPTA, Belo Horizonte, v.17, n.32, p.45-68, 1º sem. 2013., associamos os letramentos dominantes. Ainda com base em reflexões de Ponzio (2008-2009; 2013), a palavra literária não se rende à lógica orwelliana, porque é plena de sentidos vários. Na busca de contrapormo-nos a essa lógica orwelliana, inquieta-nos o que entendemos ser uma progressiva perda de espaços nas aulas de Português para o encontro com os usos da escrita que ganharam o grande tempo, muitas vezes sob a alegação de que são incompatíveis com essa pressa de mudanças de foco de atenção, essa pressa de enunciar-se e responder ao enunciado de outrem, com o qual o encontro se dá via escrita, porque não é mais presencial, é mediatizado10 10 Daga (2011), à luz de Vigotski (2000), concebe mediação como correspondente ao instrumento psicológico de mediação simbólica que faculta aos seres humanos as relações intersubjetivas: a palavra. Como mediatização concebe instrumentos que facultam essa mesma interação, mas da ordem dos dispositivos eletrônicos. Compartilhamos dessa percepção por entendermos tratar-se de mediadores de substantiva diferença sob o ponto de vista da forma como se delineiam culturalmente. pela tecnologia.

Se essa reflexão procede minimamente, parece-nos que, de fato, muitas de nossas aulas de Português – como adverte Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41. na discussão filosófica que faz sobre o homem de hoje – insularizam-se na funcionalidade que serve ao mercado de trabalho na lancinante lógica global sob a qual esse mercado se institui. Não parece mais haver tempo para o nada, para a ausência de finalidades e de propósitos, para encontros humanos ‘desinteressados’, para, enfim, ainda segundo o autor, o que de essencialmente humano caracteriza o homem: o direito à infuncionalidade. Não há mais tempo, porque tempo é custo. Escreve Ponzio (2008-2009, p.25, grifos do autor):

Oggi i giovani nell’università lo sanno: devono addestrarsi per il “mercato del lavoro”, lasciando perdere e “giustamente” rifiutandosi essi stessi di apprendere tutto ciò che “non è spendibile sul mercato del lavoro” perché sono convinti che “il lavoro rende liberi”.

Tempo é condição de concorrência no mercado global [das relações humanas], o qual exige que nos pluguemos na pressa da enunciação e das respostas superficiais, do que parece ilustrativa a determinação de que nos enunciemos em 140 caracteres;11 11 Tal qual se dá no Twitter. afinal, o mercado dos dispositivos eletrônicos possivelmente não espera mais que isso de nossas relações intersubjetivas. Lidar com essa nova realidade na esfera escolar parece ser um desafio substantivo para cujo enfrentamento temos de construir novas inteligibilidades, sobre o que ensaiamos uma tentativa nas seções que seguem.

Procedimentos metodológicos: em busca de caminhos para novas compreensões

Nesta seção nos ocuparemos em registrar os procedimentos metodológicos que subjazem à discussão feita neste artigo, que busca responder à já mencionada questão-problema, que retomamos aqui: Em se tratando de aulas de Português em classes de Educação Básica situadas em entornos de vulnerabilidade social, é possível ensaiar um processo de elaboração didática – no ensino dos usos sociais da escrita – que não se limite à funcionalidade? Trata-se de uma abordagem de natureza qualitativa interpretativista (MASON, 1996MASON, J. Qualitative researching. London: SAGE Publications, 1996.), tipificada como estudo de caso (YIN, 2005YIN, R. K. Estudos de caso: planejamento e métodos. Tradução de Daniel Grassi. 3.ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.; ANDRÉ, 2010ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. 17.ed. Campinas: Papirus, 2010.). O campo de pesquisa é uma escola da rede pública de ensino do município de Florianópolis – SC – que atende a alunos que se caracterizam pelo pertencimento a estratos de vulnerabilidade social (ÉRNICA; BATISTA, 2011ÉRNICA, M.; BATISTA, A. A. G.. Educação em territórios de alta vulnerabilidade social na metrópole: um caso na periferia de São Paulo. In: ÉRNICA, M.; BATISTA, A. A. G. Informe de pesquisa, n.3. São Paulo: Cenpec, 2011.). Sincretizamos, nesta abordagem, ações que colocam em interface ensino, pesquisa e extensão, no âmbito do Programa Institucional de Iniciação à Docência – Pibid12 12 Programa de bolsas do MEC, via Capes, cujo objetivo é qualificar o processo de formação de licenciados nas diferentes áreas para a docência, antecipando seu ingresso na esfera escolar, sob orientação de docentes da área vinculados às universidades. – Português, mantido na Universidade Federal de Santa Catarina com bolsas da Capes/MEC e coordenado por nós de julho 2010 a março de 2013.

O caso em estudo é a atuação de um grupo de bolsistas13 13 As experiências que deram base para os dados apresentados aqui, como já mencionamos na abertura deste artigo, decorrem da atuação dos seguintes bolsistas: Suziane da Silva Mossmann, Aílton Pereira Júnior, Natássia D. Alano, Aline Thessing e Glizauda Chaves; e tiveram lugar no espaço escolar com turmas de Ensino Médio nos anos de 2011 e 2012. em duas classes de Ensino Médio nessa mesma escola, em aulas de Português, na busca por lidar com usos da escrita do grande tempo com alunos caracterizados pela pressa e superficialidade contemporâneas já mencionadas. Os participantes, além dos bolsistas, são os alunos das classes em questão, em interação no encontro aula de Português no que respeita ao ensino e à aprendizagem dos usos da escrita nos letramentos dominantes.

Para a geração dos dados analisados na seção que segue, usamos como base a pesquisa documental, entendida como estratégia em favor do estudo de caso e não como um tipo de pesquisa em si mesmo (YIN, 2005YIN, R. K. Estudos de caso: planejamento e métodos. Tradução de Daniel Grassi. 3.ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.). Os documentos de que nos valemos são o projeto de atuação nas classes e os planos de aula produzidos por esses bolsistas. Valemo-nos, ainda, de memória documental de reuniões de planejamento das aulas e de apontamentos escritos feitos a partir de discussões coletivas de avaliação dessas mesmas aulas após a sua realização, documentos que produzimos ou aos quais tivemos acesso na função de coordenação do trabalho realizado. Essas duas classes foram atendidas em anos distintos, mas conjugamos ambas as experiências por conta do foco do artigo; assim, o caso em estudo reúne vivências de dois grupos, mas sua unicidade dá-se em razão da experiência de lidar com infuncionalidade em um mesmo ambiente educacional, embora em momentos e classes distintos.

Para o processo de análise, valemo-nos de ressignificação do quadro de encaminhamento analítico para práticas e eventos de letramento proposto por Hamilton (2000)HAMILTON, M. Expanding the NewLiteracy Studies: Using Photographs to Explore Literacy as Social Practice. In: BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, R. (Org.). Situated literacies. London: Routledge, 2000. p.16-34.. Essa ressignificação deriva de proposições de nosso grupo de pesquisa que redundou em diagrama registrado em Cerutti-Rizzatti, Mossmann e Irigoite (2013). Reproduzimos a seguir esse diagrama e nos valemos de suas categorias analíticas para dar tratamento aos dados gerados e buscar responder à questão-problema da qual deriva este estudo. Considerando cada uma das partes desse diagrama – como segue –, tomamos a aula de Português como encontro e a analisamos na condição de um conjunto de eventos de letramentoprimeira parte do diagrama –, que se constituem em uma determinada a) esfera da atividade humana, em uma b) dimensão cronotópica e com c) interactantes historicizados que se relacionam d) por meio do ato de dizer – aqui, via escrita. No contato com o conjunto de eventos de letramento que compõem o encontro aula de Português, depreendemos as práticas de letramentosegunda parte do diagrama –, com implicações nessas mesmas quatro categorias: a) esfera da atividade humana; b) cronotopo; c) interactantes; e d) especificidades do ato de dizer. Segue a representação, tal qual está no mencionado artigo.

Diagrama 1
– Ressignificação de Hamilton (2000)HAMILTON, M. Expanding the NewLiteracy Studies: Using Photographs to Explore Literacy as Social Practice. In: BARTON, D.; HAMILTON, M.; IVANIC, R. (Org.). Situated literacies. London: Routledge, 2000. p.16-34.

Tendo detalhado o encaminhamento procedimental metodológico, partimos para a discussão das vivências empíricas, na próxima e última seção, fazendo-o com base nas possibilidades analíticas que vemos nesse diagrama, construído a partir do já mencionado simpósio conceitual entre a filosofia da linguagem bakhtiniana, a antropologia da linguagem dos estudos do letramento e a psicologia da linguagem de base vigotskiana.

Um olhar para a infuncionalidade da vida humana por meio da funcionalidade da aula de português

Estamos seguras de que a escola insere-se no universo da funcionalidade, porque serve a interesses e propósitos historicamente delineados e atende às exigências do mercado de trabalho. Nós, professores, somos pagos por horas, exatamente sob a lógica global, objeto de reflexão de Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41.. Assim ‘enformados’ nessa funcionalidade, tendemos a agir em favor dela. Há, porém, em nossa compreensão, uma dimensão que, de algum modo, distingue-nos porque lidamos com a formação humana – e, pelo menos em tese, não deveríamos lidar com a conformação humana – e talvez nesse pertuito possa estar a nossa redenção da funcionalidade, ou seja, possamos exercitar a fuga – invariavelmente cerceada, mas sempre uma fuga – para o infuncional. Tentaremos ser claras em relação a isso nesta seção.

Tendo presente a primeira parte do diagrama integrado registrado na seção anterior, tomamos as aulas de Português, nas duas classes de que nos ocupamos aqui, como encontro entre os bolsistas e os alunos. Não distinguimos as duas classes entre si não porque as entendamos uniformes – nossa concepção de sujeito historicizado (GERALDI, 2010bGERALDI, J. W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João, 2010b.) não nos permitiria fazê-lo –, mas porque, para o recorte deste artigo, essa distinção não nos parece relevante. Nesse encontro entre os bolsistas e os alunos, vários eventos de letramento (HEATH, 1982HEATH, S. B. What no bed time story means: narrative skill sat home and school. Language in Society, Cambridge, v.11, n.1, p.49-76, 1982.) tiveram lugar, dentre os quais delimitamos um grupo deles: os eventos de letramento mediados pelo conto ‘O homem da cabeça de papelão’, de João do Rio,14 14 João do Rio é pseudônimo usado por João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor e jornalista carioca. O conto consta na obra Antologia de humorismo e sátira, de Magalhães Jr. (1957). Trata-se da história de Antenor, habituado a um comportamento ético pouco comum entre os seus e, em razão disso, tido como ‘anormal’ e alijado socialmente. Após pressões de seus interactantes imediatos, deixa sua cabeça ‘para conserto’ em uma relojoaria, período em que passa a usar uma cabeça de papelão de configuração uniforme a todos, em razão do que subverte seu comportamento para uma conduta inteiramente oposta a que tinha até então. Dessa mudança decorre sua popularidade, sua ascensão social e a conquista da mulher que ama, de quem antes era objeto de rejeição. Tempos depois, defronta-se casualmente com a relojoaria e entra para saber de sua cabeça, quando é informado que ela não precisava de conserto nenhum porque era especialmente perfeita. Antenor, porém, não titubeia em denegar a cabeça antiga, preferindo continuar com a de papelão. eventos que tiveram lugar em ambas as classes, em cada uma delas com seus contornos idiossincráticos.

Esses eventos15 15 Destacamos com sublinhas, nesta seção, as categorias do diagrama mencionado na seção anterior. aconteceram na (a) esfera escolar, uma esfera da atividade humana em que a leitura de um conto é necessariamente funcional porque tem como objetivo ‘educar para a leitura de contos’; nessa esfera, os (b) interactantes eram os mencionados bolsistas do Curso de Letras, historicizados por uma sólida e ampla formação em leituras com status de erudição, bolsistas cujas práticas de letramento (STREET, 1988STRETT, B. Practices and Literacy Myths. In: SALJO, R. (Ed.). The Written World: Studies in Literate Thought and Action. Berlim; Nova Iorque: Springer-Verlag, 1988.) se caracterizam pela valoração das obras que ganham o grande tempo (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) e que entendemos como parte dos letramentos dominantes (CERUTTI-RIZZATTI; ALMEIDA, 2013CERUTTI-RIZZATTI, M. E.; ALMEIDA, K. C. Identidade, subjetividade e alteridade nas relações entre universos global/local e letramentos dominantes/vernaculares. SCRIPTA, Belo Horizonte, v.17, n.32, p.45-68, 1º sem. 2013.). Também como interactantes, colocavam-se os alunos de ambas as classes, historicizados pelo pertencimento ao entorno de vulnerabilidade social em que a escola em questão se encontra e caracterizados por práticas de letramento em cuja consolidação a erudição do cânone literário não tende a se manifestar, porque os níveis de escolarização e de acesso aos bens culturais de prestígio não são facultados a tal segmento, como nos informaram dados gerados em questionários aplicados e estudos preliminares feitos pelos bolsistas no traçado do perfil de usos da escrita dessas turmas de alunos.16 16 Nas atividades que empreendemos no âmbito deste programa, as vivências docentes dos bolsistas foram sempre precedidas de estudos para traçar o perfil da turma no que diz respeito ao esforço de depreensão de suas práticas de letramento. Quanto ao (c) cronotopo, todos, bolsistas e estudantes, assim como nós, vivemos – considerando reflexões de Ponzio (2013)PONZIO, A. Fuori luogo. Milano: Mimesis, 2013. – sob a projeção de um capitalismo contemporâneo que se erige sobre a lógica de um mercado de trabalho e de consumo globalizados. Nossas vivências imediatas, então, não podem, de nenhum modo, estar imunes à projeção capitalista global,17 17 Para Ponzio (2013), o capitalismo global organiza-se a partir de uma projeção ampla, que conforma os processos de produção e consumo, com amplo impacto nas relações sociais como um todo. porque nossos tempo e espaço são permeáveis a ela. Logo, todos os interactantes do encontro aula de Português que é objeto de nossa reflexão vivem este tempo que Silvestri (2013)SILVESTRI, F. Filosofia del linguaggio. Bari, 2013. Anotações de aula feitas por Mary Elizabeth Cerutti Rizzatti na Università degli Studi di Bari Aldo Moro. caracteriza como de ‘imediatez’, de voyeurismo, de narcisismo e afins de que tratávamos anteriormente, quer se assumam como tal, quer se distingam dessa condição: vivem-na porque, queiram-na ou não, projeta-se no cronotopo. Enfim, ainda com base no diagrama, quanto ao (d) ato de dizer, materializa-se no conto ‘O homem da cabeça de papelão’ e, como tal, o faz em uma linguagem metafórica que, seguramente, não se presta à lógica orwelliana da objetividade absoluta. Desse modo, arriscando uma interpretação muito particular nossa de proposições de Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41., entendemos haver aqui convite à infuncionalidade, embora na ação funcional da escola. Fica o risco, e o abriremos a seguir.

A opção dos bolsistas por ocasião da seleção do conto defrontou-se de imediato com um conjunto de inquietações, dentre as quais aquela inicialmente mais aflitiva era a extensão do texto,18 18 Disponível em: <http://www.releituras.com/joaodorio_homem.asp>. Acesso em: 30 mar. 2015. considerando que os alunos não estavam habituados a leituras mais longas, sobretudo sem imagens – de novo, a pressa de que trata Silvestri (2013)SILVESTRI, F. Filosofia del linguaggio. Bari, 2013. Anotações de aula feitas por Mary Elizabeth Cerutti Rizzatti na Università degli Studi di Bari Aldo Moro.. Desafio adicional era a linguagem metafórica, a crítica sociopolítica de que o conto se constitui, as relações de sentido e o agenciamento de vivências prévias demandadas. A questão, porém, mais flagrantemente preocupante era como fazer com que aqueles alunos se deleitassem com a leitura do conto, gostassem de fazê-lo; como fazer para que a leitura calasse neles – no sentido de calar fundo a que temos feito menção em nossos artigos com base em Geraldi (2012)GERALDI, J. W. Seminário Ponziano: Anotações de conferência feitas Mary Elizabeth Cerutti-Rizzatti. São Carlos: UFSCar, 2012. , que tocasse a sua condição humana. Em outras palavras, como tentar lhes convidar a provar do sagrado direito à infuncionalidade em uma ação marcada pela funcionalidade da aula de Português propriamente dita?

Tais aflições faziam-se acompanhar da consciência de que educar para os usos da escrita exige atividades que – com base em Kalantzis e Cope (2006)KALANTZIS, M.; COPE, B. Multiliteracies. London: Routledge, 2006. – horizontalizem as práticas de letramento dos alunos. Nesse caso, atividades que contribuam para não insularizá-los na sociogênese em que se desenvolve sua microgênese (VIGOTSKI, 1997VIGOTSKI. L. S. The Problem of Development of Higher Mental Functions.In: RIEBER, R. W. (Ed.). The collectd works of L.S. Vygotsky. New York: Plenun Press, 1997. p.1-28.), sendo os bolsistas interlocutores mais experientes, em tese, aptos para compartilhar com aqueles alunos (VIGOTSKI, 2000VIGOTSKI. L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.) vivências com o universo literário que contribuíssem para o alargamento de suas próprias práticas de letramento. Assinalados tais desafios, importa, aqui, considerar que, apesar de todas as inquietações serem, em nossa avaliação, altamente relevantes, deter-nos-emos, a seguir, apenas na primeira – a extensão do conto – e na última delas – provar da possibilidade de fruir.

Considerando as práticas de letramento dos interactantes e tendo presente as especificidades da materialidade do ato de dizer no texto do conto em questão, optamos, em cada uma das classes, por ensaiar uma interface com a imagem, com o movimento, com a fragmentação em ‘partes menores’, na certeza de que apresentar o conto apenas na mancha impressa no fundo branco seria inadequado para o delineamento do evento de letramento nas especificidades do encontro com aqueles interactantes: possivelmente o rejeitariam. Assim, ambos os grupos de bolsistas optaram por recorrer inicialmente ao Youtube. Um deles, valendo-se de uma versão mais densa19 19 Fica o risco da subjetividade de uma adjetivação como essa. e complexa em filme de Carlos Canela, como ilustra a Figura 1 a seguir; o outro grupo, valendo-se de uma versão que entendemos menos densa, de Vitor Prater, como ilustra a Figura 2. As escolhas tinham presente a depreensão das práticas de letramento que emergiram do perfil de usos da escrita delineado antecipadamente.

Figura 1
20 20 Informamos, em todas as figuras, o endereço com acesso em outubro de 2013. : Filme ‘O homem da cabeça de papelão’

Figura 2
: Filme ‘O homem da cabeça de papelão’

Ambos os grupos, ainda, valeram-se da versão do conto em história em quadrinhos, como ilustra a Figura 3 a seguir, sempre o fazendo de modo a exibir o conto nas configurações eletrônicas sob as quais era tomado – os quadrinhos também foram entregues no papel.

Figura 3
: Filme ‘O homem da cabeça de papelão’

Com base em Street (2000), procuramos encaminhar os usos desses recursos eletrônicos não os tomando em uma reificação dos dispositivos em si mesmos, mas em atenção às práticas sociais que se valiam deles para se instituir, ou seja, o conto em filme e a história em quadrinhos. A busca por iniciar o trabalho valendo-nos da imagem e do som, em um contato ‘rápido’ com a história, foi o caminho encontrado para a apresentação do conto, agora em sua versão original, mas ainda não no todo apenas da mancha gráfica no papel branco. O recurso de que nos valemos foi distinto em ambas as turmas: em uma delas, tomamos o conto em sua disponibilização eletrônica e, com uso de recursos tais, apresentamo-lo aos alunos, fazendo-o em partes – admitimos, quase em uma ‘dosagem homeopática’ –, como ilustra a figura a seguir, uma das várias partes de recorte para apresentação em sequência paulatina. Na outra turma, procedemos a uma leitura oral quase teatral, realizada pelos três bolsistas em atuação ali. Assim, quer na ‘homeopatia’ das imagens, quer no recurso à oralidade teatralizada, buscamos fazer com que os alunos tivessem contato com a versão do conto na mancha sobre papel.

Na turma que se valeu dos recortes das imagens, como mostra a figura 4, versão idêntica, no papel, foi oferecida aos alunos, mas o processo de leitura, antes de ser individual, o que tende a acontecer corriqueiramente como um primeiro contato do leitor com o autor por meio do texto (RODRIGUES; CERUTTI-RIZZATTI, 2011RODRIGUES, R. H.; CERUTTI-RIZZATTI, M. E. Linguística Aplicada: ensino de língua materna. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2011.), aconteceu na tela, de forma colegiada, ou na teatralização que mencionamos anteriormente, sempre na tentativa de conciliar texto on-line ou oralização com o texto no papel. Como o enredo já era conhecido na releitura do cinema e dos quadrinhos, a leitura em sua versão original, feita em partes, acompanhada de comentários, pareceu relativamente familiar aos alunos e, admitimos, em alguns casos, enfastiante, dada a recorrência da narrativa. Nesse acompanhamento na tela ou na opção pela leitura teatral, a cada parte, construía-se oralmente a compreensão leitora, considerando que, como recomenda Kleiman (2001)KLEIMAN, A. (Org.). Oficina de leitura. 8.ed. Campinas: Pontes, 2001., é na interação com o professor que o aluno entende o texto. O objetivo dessa compreensão, porém, contrariamente ao que nos move corriqueiramente como professores, não era a busca pela exercitação metacognitiva de habilidades de leitura em si mesma, mas, sobretudo, entender o conto para fruí-lo, entender para dimensionar a experiência de humanidade contida naquele conto especificamente.

Figura 4
: Filme ‘O homem da cabeça de papelão’

Ao final deste processo, os alunos foram, então, convidados a levarem o conto na materialidade textual para casa e fazerem nova leitura dele, sem compromisso, sem pretensões, sem cobranças, na busca ainda de tentar um ‘calar fundo’. O acompanhamento que fizemos na sequência nos mostrou que vários dentre os alunos fizeram a leitura; outros tantos não. Alguns dentre os que o fizeram terminaram por solicitar novas sugestões de contos do autor, para lerem, agora de fato, sem ‘ter de ser necessário fazê-lo’. Em ambas as turmas, o livro, com o conto publicado, circulou entre os alunos, e, em uma delas, ao final, vários alunos inscreveram-se para levar a obra para casa. Indícios de uma semeadura de experimentação da infuncionalidade da palavra literária? Fica a esperança, sem a qual a educação escolar não pode respirar.

Seguramente,21 21 Nosso agradecimento a Ailton Pereira Junior pelo conteúdo que compõe este final de seção. para calar fundo, não basta somente ‘arquitetar o encontro’, propondo um caminho com as novas tecnologias, partindo delas, de leituras mais básicas e fluidas, e chegando à leitura integral do conto, reconhecendo as práticas de letramento dos alunos e, assim, materializando o encontro. Se compreendermos que tais práticas estão mais voláteis, também por conta das novas tecnologias, e arriscarmos mostrar as várias representações do conto em plataformas da internet até chegar à versão no papel, na busca por‘tocar o aluno’, o fazemos sob a ciência do risco de cansá-los com uma mesma narrativa. O ensaio cuja descrição abreviamos substancialmente nesta última seção, em razão do gênero artigo, a despeito dessa ciência, consistiu um convite àqueles alunos para outras experiências tais, para encontrar autores de outros contos e provar da sua forma infuncional de ver o mundo. Quanto a nós, a questão que impusemos a nós mesmos é o quanto de infuncional conseguimos efetivamente ser no escafandro de funcionalidade (PONZIO, 2013PONZIO, A. Fuori luogo. Milano: Mimesis, 2013.) que vestimos como professores. De todo modo, queremos crer que se trata de ensaios possíveis.

Considerações finais

Retomando, enfim, a questão-problema que moveu este artigo, não entendemos ser possível uma ação docente que não ausculte quem são os alunos, como vivem no seu tempo histórico, como lidam com os usos da escrita na sociogênese. E, se nossos alunos – assim como nós – protagonizamos tais usos em um cronotopo sobre o qual se projeta a lógica funcional do capitalismo global, parece-nos que urge atenção para não reificarmos tecnologias, porque o que de fato nos importa são as práticas sociais que se valem delas para se instituir: dispositivos eletrônicos são meios e não fins em si mesmos; logo, a atenção não pode recair sobre eles. E, assim concebendo, estamos seguras de que tais práticas não precisam limitar-se ao universo da funcionalidade; podemos nos valer delas para, na reconhecida funcionalidade do aparelho escolar, ensaiar o exercício de educar para a infuncionalidade, a qual, tal qual em Ponzio (2008-2009)PONZIO, A. Identità e mercato del lavoro: due dispositivi di uma stessa trappolla mortale. In: PONZIO, A. (Cura) Globalizazione e infunzionalità. Athanor. Roma: Maltemi, 2008-2009. p.21-41., é o que mais efetivamente caracteriza o humano como tal, e a escola não pode prescindir da humanidade do homem porque é isso exatamente que justifica sua existência histórica.

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  • 1
    Agradecimento à importante contribuição de Suziane da Silva Mossmann, Aílton Pereira Júnior, Natássia D. Alano, Aline Thessing e Glizauda Chaves, bolsistas Pibid e protagonistas das ações docentes das quais derivou o processo de geração de dados para este artigo.
  • 2
    Encontro, para Ponzio (2010PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010.; 2013PONZIO, A. Fuori luogo. Milano: Mimesis, 2013.), implica o que o autor chama de alteridade absoluta, fundamentada sobre o conceito, também seu, de diferença não-indiferente. Estamos seguras de que uma relação dessa natureza entre o eu e o outro dá-se apenas no âmbito da chamada alteridade absoluta e, portanto, do que o autor entende como infuncional, conceito este que será objeto de discussão neste artigo. Queremos, porém, arriscar estender o conceito de encontro em Ponzio também para relações que ele apontaria como de alteridade relativa – neste caso, relações entre professor e alunos –, e fazemos isso exatamente para propor que a aula de Português se institua sobre a diferença não-indiferente, ou seja, a diferença que considera as singularidades e não as individualidades. Essa discussão não será tematiza neste artigo na profundidade que requer em razão dos limites de um texto neste gênero do discurso, mas a topicalizamos brevemente em uma das seções para ancorar o eixo sobre o qual o artigo se constrói.
  • 3
    Com base em Érnica e Batista (2011)ÉRNICA, M.; BATISTA, A. A. G.. Educação em territórios de alta vulnerabilidade social na metrópole: um caso na periferia de São Paulo. In: ÉRNICA, M.; BATISTA, A. A. G. Informe de pesquisa, n.3. São Paulo: Cenpec, 2011., entendemos por entornos de vulnerabilidade social aqueles espaços em que tendem a se estabelecer relações de auto-regulação entre escolas públicas que atendem a uma mesma clientela desprivilegiada socioeconomicamente, processo em que um dos estabelecimentos cria filtros por meio de exigências burocráticas como apresentação de documentos, assinatura dos pais, entrega de fotografias e afins, o que redunda em um processo de seleção sub-reptícia de alunos, determinando que aqueles em situação de maior precariedade no que respeita à organização familiar e às condições econômicas terminem por serem decantados dali e recebidos por estabelecimentos com estruturação funcional menos rigorosa e, boa parte das vezes, com ação pedagógica mais frágil.
  • 4
    Com base em Halté (2008)HALTÉ, J. F. O espaço didático e a transposição. Fórum Linguístico, Florianópolis, v.5, n.2, p.117-139, 2008., entendemos por elaboração didática o processo que, no agir docente, sincretiza saberes científicos, práticas de referência e conhecimentos especializados, não se limitando à mera transposição de saberes científicos para a esfera escolar.
  • 5
    Por Linguística da escuta, para as finalidades deste artigo, entendemos a Linguística que tem como objeto de estudo a língua/linguagem tomada no encontro entre subjetividade e alteridade, o que requer a ausculta de que trata Ponzio (2010)PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João, 2010., com base na compreensão responsiva proposta pelo Círculo de Bakhtin.
  • 6
    Não é nosso foco imergir no acalorado espectro de discussões do que seja educar linguisticamente falantes de uma língua materna; interessa-nos, aqui, discutir a aula de Português no delimitado âmbito da formação para os usos da escrita, mas registramos o reconhecimento explícito de que, nem a aula de Português, nem a educação linguística restringem-se ao enfoque da modalidade escrita. Ela nos ocupa por ser nosso objeto de pesquisa e, nas seções que seguem, tomaremos o encontro sob essa perspectiva.
  • 7
    A exemplo de parcerias entre Nokia e Microsoft (Disponível em: <http://gizmodo.uol.com.br/microsoft-e-nokia-oficializam-parceria/>. Acesso em: 30 mar. 2015) e Samsung e Google (Disponível em: <http://www.tudosobremktdigital.com.br/google-e-samsung-fecham-parceria-contra-apple/>. Acesso em: 30 mar. 2015).
  • 8
    A exemplo de estudos de David Olson, Patricia Greenfield e Angela Hildyard, mencionados por Street (1984).
  • 9
    O uso de equilibração, aqui, objetiva denotar movimento, o que parece não ser tão evidente na palavra equilíbrio; distanciamo-nos, nesse uso, de quaisquer relações com o ideário piagetiano.
  • 10
    Daga (2011)DAGA, A. C. Compreensão leitora: o ato de ler e a apropriação e conhecimentos na EaD. 2011. 248f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011., à luz de Vigotski (2000), concebe mediação como correspondente ao instrumento psicológico de mediação simbólica que faculta aos seres humanos as relações intersubjetivas: a palavra. Como mediatização concebe instrumentos que facultam essa mesma interação, mas da ordem dos dispositivos eletrônicos. Compartilhamos dessa percepção por entendermos tratar-se de mediadores de substantiva diferença sob o ponto de vista da forma como se delineiam culturalmente.
  • 11
    Tal qual se dá no Twitter.
  • 12
    Programa de bolsas do MEC, via Capes, cujo objetivo é qualificar o processo de formação de licenciados nas diferentes áreas para a docência, antecipando seu ingresso na esfera escolar, sob orientação de docentes da área vinculados às universidades.
  • 13
    As experiências que deram base para os dados apresentados aqui, como já mencionamos na abertura deste artigo, decorrem da atuação dos seguintes bolsistas: Suziane da Silva Mossmann, Aílton Pereira Júnior, Natássia D. Alano, Aline Thessing e Glizauda Chaves; e tiveram lugar no espaço escolar com turmas de Ensino Médio nos anos de 2011 e 2012.
  • 14
    João do Rio é pseudônimo usado por João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor e jornalista carioca. O conto consta na obra Antologia de humorismo e sátira, de Magalhães Jr. (1957). Trata-se da história de Antenor, habituado a um comportamento ético pouco comum entre os seus e, em razão disso, tido como ‘anormal’ e alijado socialmente. Após pressões de seus interactantes imediatos, deixa sua cabeça ‘para conserto’ em uma relojoaria, período em que passa a usar uma cabeça de papelão de configuração uniforme a todos, em razão do que subverte seu comportamento para uma conduta inteiramente oposta a que tinha até então. Dessa mudança decorre sua popularidade, sua ascensão social e a conquista da mulher que ama, de quem antes era objeto de rejeição. Tempos depois, defronta-se casualmente com a relojoaria e entra para saber de sua cabeça, quando é informado que ela não precisava de conserto nenhum porque era especialmente perfeita. Antenor, porém, não titubeia em denegar a cabeça antiga, preferindo continuar com a de papelão.
  • 15
    Destacamos com sublinhas, nesta seção, as categorias do diagrama mencionado na seção anterior.
  • 16
    Nas atividades que empreendemos no âmbito deste programa, as vivências docentes dos bolsistas foram sempre precedidas de estudos para traçar o perfil da turma no que diz respeito ao esforço de depreensão de suas práticas de letramento.
  • 17
    Para Ponzio (2013)PONZIO, A. Fuori luogo. Milano: Mimesis, 2013., o capitalismo global organiza-se a partir de uma projeção ampla, que conforma os processos de produção e consumo, com amplo impacto nas relações sociais como um todo.
  • 18
    Disponível em: <http://www.releituras.com/joaodorio_homem.asp>. Acesso em: 30 mar. 2015.
  • 19
    Fica o risco da subjetividade de uma adjetivação como essa.
  • 20
    Informamos, em todas as figuras, o endereço com acesso em outubro de 2013.
  • 21
    Nosso agradecimento a Ailton Pereira Junior pelo conteúdo que compõe este final de seção.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    Fev 2014
  • Aceito
    Jun 2014
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