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A agência a partir da Teoria Ator-Rede: reflexões e contribuições para as pesquisas em administração

The agency in the perspective of the Actor Network Theory: reflections And contributions to management research

Resumo

A Teoria Ator-Rede (TAR) provoca os leitores a desenvolverem diferentes olhares, a partir da redefinição da noção de social, que retorna às suas raízes, possibilitando novamente o estabelecimento de conexões. Para Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., a sociedade, longe de ser o contexto no qual todas as coisas são enquadradas, é interpretada como um dos inúmeros elementos que se conectam e, assim, para Law (1992)LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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, é provável que a maior parte de nossas relações seja mediada pela materialidade. O que seria das organizações se não fosse a presença da materialidade? Dentre as várias noções e conceitos abordados pela TAR, optamos por debater a noção de agência dos atores (actantes), que busca a não dicotomização entre os elementos humanos e não humanos. Nosso propósito é identificar e discutir contribuições da TAR para os estudos organizacionais no que se refere à agência relacionada ao não humano, sem menosprezar o humano e com um olhar atento às relações. Assim, a forma que encontramos para “mostrar a agência dos não humanos” foi evidenciar (por meio das descrições e análises de pesquisa) suas relações com os humanos e o quanto essas relações constituem um ao outro, por meio de trechos de dois estudos desenvolvidos no campo da administração. A TAR ajuda, portanto, a atribuir as ações a um número maior de actantes. Discutir questões sobre agência está diretamente relacionado ao estabelecimento de conexões que a TAR preconiza. É nas conexões de elementos heterogêneos que a agência torna-se “capturável” ao pesquisador.

Palavras-chave:
Agência; Não humanos; Teoria Ator-Rede

Abstract

The Actor-Network Theory (ANT) leads readers to develop different looks, from the redefinition of the notion of social, which returns to its roots, again allowing the establishment of connections. For Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. society, far from the context in which all things are framed, is interpreted as one of several elements that connect. It is likely claims Law (1992)LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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, most of our relations is mediated by the materiality. What organizations would be if not for the presence of materiality? Among the several notions and concepts covered by the ANT, we chose to discuss the notion of agency actors (actants), which seeks no-dichotomy between human and non-human elements. Our purpose in this article is then to identify and discuss contributions to the ANT organizational studies addressing the agency related to the non-human, without ignoring the human and with a watchful eye to relationships. So, the way we've found to “show the Agency of non-humans” was evidence (through the descriptions and analyses of research) their relationship with humans and how these relationships provide each other, through excerpts from two studies developed in the field of Management. The TAR therefore help to assign actions to a greater number of actantes. Discuss questions about agency is directly related to the establishment of connections that the TAR advocates. It is the connections of heterogeneous elements that the agency becomes “capturable” the researcher.

Keywords:
Agency; Non-human; Actor-Network Theory

Introdução: Teoria Ator-Rede e algumas discussões

A Teoria Ator-Rede (TAR) tem suas origens nos estudos da ciência, tecnologia e sociedade (ALCADIPANI; HASSARD, 2010ALCADIPANI, R.; HASSARD, J. Actor – network theory, organizations and critique: towards a politics of organizing. Organization, v. 17, p. 419-435, 2010.), tendo como principais autores Bruno Latour, John Law e Michel Callon. É considerada uma teoria pós-estruturalista (ALCADIPANI; TURETA, 2009ALCADIPANI, R.; TURETA, C. Teoria ator-rede e análise organizacional: contribuições e possibilidades de pesquisa no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 16, p. 647-664, 2009.) e pós-humanista (SELGAS, 2008SELGAS, F. J. G. Posthumanismo(s) y ciências sociales: una introducción. Política e Sociedad, v. 45, n. 3, p. 7-15, 2008.), por buscar diluir a dicotomia entre o social e o natural, além de inserir na mesma visão analítica atores humanos e não humanos. Com a terminologia não humanos, os autores da TAR buscam trazer para a análise social os elementos naturais, materiais e todos os demais elementos que são diferentes dos atores humanos, mas que com esses se relacionam para agir e produzir o social. Nesse sentido, Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. propõe outra maneira de se compreender o social, não mais de forma segmentada, mas sim por meio do movimento e das associações que se estabelecem entre tais elementos heterogêneos presentes em uma rede de relações. Essa coletividade busca traduzir o que acontece em nosso meio: as relações entre pessoas e materialidades nas práticas cotidianas.

Relacionar o que é diferente sem a criação de dicotomias. Latour (1994)LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. elucida essa dinâmica com um exemplo instigante. Comenta que, ao ler o jornal em uma manhã, vê a notícia de que as medidas estabelecidas para proteger a camada de ozônio não estão sendo suficientes para conter o aumento da abertura na camada. Diz o autor que, a partir disso, ao apertar um simples aerossol, seremos transportados à Antártica, à composição química dos gases, talvez até para uma universidade que conduz pesquisas sobre o assunto, às linhas de montagem de uma fábrica e talvez até à ONU. Esse fio frágil que liga toda a heterogeneidade presente nesse exemplo, segundo o autor, será cortado por algum cientista, jornalista, analista ou pensador em quantas partes e segmentos se fizerem necessários para tornar as disciplinas puras, de maneira que o conhecimento, a justiça, o poder e o interesse não sejam misturados. Para que não haja uma mistura entre o céu e a terra, entre o global e o local e entre o humano e as outras coisas.

Uma questão torna-se cabível a partir desse olhar: se todas essas misturas tecem o nosso mundo, por que tudo é visto tão separadamente?

Em um contexto de redes as relações engendram ao mesmo tempo natureza e sociedade, sujeito e objeto. Essas práticas de mediação entre as pessoas e a materialidade nada mais são do que a junção desses elementos heterogêneos postos em relação com uma determinada temporalidade, sendo capazes de provocar transformações. Não há como negar as diferenças, mas ao invés de tratar os atores separadamente, é possível considerá-los a partir de suas relações (LATOUR, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; MORAES, 2004MORAES, M. A ciência como rede de atores: ressonâncias filosóficas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 11, n. 2, p. 321-33, maio/ago. 2004.). É o que Ingold (2012)INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes antropológicos , v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012. coloca sobre a pipa: ela não é simplesmente uma pipa; trata-se de uma pipa no ar, uma pipa na dinâmica com seu empinador. Moraes (2004)MORAES, M. A ciência como rede de atores: ressonâncias filosóficas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 11, n. 2, p. 321-33, maio/ago. 2004. menciona que Latour (1994)LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. nos convida a buscar um entendimento sobre essas aproximações entre sujeitos e não humanos, efeitos das redes de atores.

A partir da lógica em rede, gerada para encadear as principais premissas da TAR, Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. redefine a noção de social, retornando às raízes do conceito para que o estabelecimento de conexões entre os atores heterogêneos fosse novamente (e teoricamente) possível. Analisando a etimologia da palavra social, Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.identifica que o seu significado original é “seguir/acompanhar”. Alguém seguindo a outros, um acompanhador ou uma associação. “O latim socius denota uma companhia, uma associação” (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., p. 6). O autor não define o social como um domínio específico, ou como um tipo particular de elemento, mas como um movimento de associações e de reunião dos elementos. O social para a TAR é, assim, “o nome do tipo de associação momentânea, caracterizada pela maneira como se reúnem as novas formas” (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., p. 65). Indo além, o autor propõe, visto o caráter heterogêneo das relações, dada a presença e a ação de humanos e não humanos, que a palavra social seja substituída pela palavra “coletivo”. O coletivo explica melhor o projeto de reunir esses novos elementos, antes não considerados como sociais. É difícil imaginar alguma ação que aconteça ou algum saber executado que não seja mediado por algum equipamento, por exemplo. Imagine o que seria a construção de um trabalho se não fossem os livros, os inúmeros artigos, o notebook e seus softwares de edição de texto.

Segundo Law (2004)LAW, J. After method : mess in social science research. Taylor & Francis e-Library, 2004., as áreas da ciência social estão procurando outros caminhos no que se refere a métodos de pesquisa, uma vez que se propõe a abordar as relações e trabalhar com o coletivo. Um dos intentos metodológicos da TAR é instigar o pesquisador a não se deter apenas nos elementos humanos presentes no campo, mas atentar-se aos movimentos e à agência dos elementos não humanos (LATOUR, 1997LATOUR, B. On actor-network theory : a few clarifications. Página Eletrônica do Centre for Social Theory and Technology (CSTT). UK: Keele University, 1997.). Por isso, Latour e Woolgar (1997)LATOUR, B. On actor-network theory : a few clarifications. Página Eletrônica do Centre for Social Theory and Technology (CSTT). UK: Keele University, 1997., em um dos trabalhos seminais que lança discussões posteriormente aprofundadas pela Teoria Ator-Rede, desenvolvem uma etnografia em um laboratório e propõem o princípio da simetria, retomado posteriormente por Callon (1986)CALLON, M. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, J. Power, action and belief : a new sociology of knowledge? London: Routledge, 1986. p. 196-223.. Tal princípio não tem a pretensão de propor a equivalência entre humanos e não humanos, mas provocar os “analistas do social”, ou melhor, os “analistas do coletivo” a incluírem em suas pesquisas esses elementos materiais que, por vezes, se tornam invisíveis ou marcados pela dicotomia em um contexto de agenciamentos.

Questionando o imperativo dicotômico, Spink (2003)SPINK, M. J. Subvertendo algumas dicotomias instituídas pelo hábito. Athenea Digital , v. 4, p. 1-7, 2003. Disponível em: <http://atheneadigital.net/article/ viewFile/95/95>. Acesso em: 9 out. 2012.
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analisa o porquê da necessidade de escolha entre posições ontológicas e epistemológicas, assim como as dicotomias que se estabelecem em função do hábito. A autora, parafraseando Dona Haraway, comenta que seu objetivo é desfazer algumas dicotomias ontogênicas por meio de rupturas: “animal/humano; organismos/máquinas e físico/não físico” (SPINK, 2003SPINK, M. J. Subvertendo algumas dicotomias instituídas pelo hábito. Athenea Digital , v. 4, p. 1-7, 2003. Disponível em: <http://atheneadigital.net/article/ viewFile/95/95>. Acesso em: 9 out. 2012.
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, p. 3). Sua proposta é, de fato, subverter algumas dessas dicotomias que, segundo a autora, vêm sendo construídas milenarmente por meio de uma visão antropocêntrica da realidade.

Escóssia e Kastrup (2005)ESCÓSSIA, L.; KASTRUP, V. O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Psicologia em Estudo , v. 10, n. 2, p. 295-304, 2005. apontam que mesmo com o insucesso do trabalho prático das ciências em promover uma purificação, assim como sinaliza Latour (1994)LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., a filosofia da ciência legitimou o estabelecimento de fronteiras entre os saberes, ocasionando, dessa forma, separações entre domínios específicos, como, por exemplo, a sociologia e a psicologia, ciências humanas e ciências da natureza, entre outros. As autoras afirmam que “esse modo de apreensão do coletivo/social deriva de uma abordagem dicotômica da realidade característica das ciências modernas, cujo efeito, dentre os mais visíveis, é a separação dos objetos e dos saberes” (ESCÓSSIA; KASTRUP, 2005ESCÓSSIA, L.; KASTRUP, V. O conceito de coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Psicologia em Estudo , v. 10, n. 2, p. 295-304, 2005., p. 295).

A partir dessas visões de mundo, a TAR nos apresenta algumas noções e conceitos que despertam estranhamento, muitas dúvidas e também críticas. Dentre várias, optamos por debater a noção de agência dos atores (actantes), que busca a não dicotomização entre os elementos humanos e não humanos. Nosso propósito com este artigo é, dessa forma, o de identificar e discutir contribuições da TAR para os estudos organizacionais, abordando a agência relacionada ao não humano, sem menosprezar o humano e com um olhar atento às relações. Para sustentar e enriquecer essa discussão, apresentaremos nas próximas seções uma breve revisão da Teoria Ator-Rede e a noção dos não humanos, uma discussão sobre o princípio de simetria proposto pela TAR, seguido de dois exemplos empíricos que retratam a busca pela análise da agência dos não humanos em um contexto organizacional. Finalizaremos com reflexões e considerações, geradas a partir das discussões estabelecidas ao longo do texto.

Teoria Ator-Rede (TAR) e os não humanos

O maior contraste entre a Teoria Ator-Rede e a sociologia, ou a “sociologia do social”, como menciona Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., é a incursão dos elementos não humanos na análise sociológica. Eles deixam de ser apenas artefatos, cuja significação é atribuída pelo homem, e passam a ter agência, ou seja, participam das ações nas situações cotidianas e provocam transformações. Também podem parecer “simples”, mas não o são. De acordo com Law (1999)LAW, J. After ANT: complexity, naming and topology. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999., a TAR parte da ideia de que entidades (humanos e não humanos) são constituídas e adquirem seus atributos por meio do conjunto de relações que estabelecem com outras entidades e, por isso, pode ser considerada uma aplicação da semiótica.

Neves (2004)NEVES, J. P. A tese da autonomia do técnico na “teoria do actor-rede”: dois estudos empíricos. In: SEMINÁRIO DA AISO – ASSOCIAÇÃO IBERO-AMERICANA DESOCIOLOGIA DAS ORGANIZAÇÕES, 17., 2004. Valência, Espanha: 21 a 23 out. 2004. menciona que estudos envolvendo elementos técnicos podem gerar dilemas, pois polarizam as opiniões, colocando de um lado aqueles que defendem e valorizam os atores humanos em detrimento da materialidade e criticam as teorias – dentre elas a Ator-Rede, acusando-a de ser impessoal e até mesmo desumana. Por isso é relevante esclarecer as intenções: apesar de trazer à cena da análise sociológica os atores não humanos, os autores da TAR não possuem a pretensão de atribuir características ontológicas semelhantes entre eles. É válido retomar aqui a discussão das dicotomias: não é necessário polarizar ou rivalizar os diferentes tipos de atores. Sim, eles são diferentes e essa é a justificativa para o caráter heterogêneo da rede. O que se preconiza é, assim, reconhecer que o mundo dos não humanos, sejam eles materiais ou biológicos, pode ser decisivo na constituição do social (NEVES, 2004NEVES, J. P. A tese da autonomia do técnico na “teoria do actor-rede”: dois estudos empíricos. In: SEMINÁRIO DA AISO – ASSOCIAÇÃO IBERO-AMERICANA DESOCIOLOGIA DAS ORGANIZAÇÕES, 17., 2004. Valência, Espanha: 21 a 23 out. 2004.).

Conforme Latour (2005, p. 76)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., a “TAR não é, repito, não é, o estabelecimento de uma absurda ‘simetria1 1 Não confundir essa colocação de Latour (2005) com o princípio da simetria generalizada descrito por Callon (1986). Esse princípio se refere à postura do observador que, em sua permanência em campo, deve atentar-se tanto para os elementos humanos quanto para os elementos não humanos em sua pesquisa. Fazer essa proposta não significa afirmar a igualdade entre eles. Pelo contrário, preserva-se ao longo da literatura da TAR a característica heterogênea e provisória entre os elementos da rede (LATOUR, 2005). entre humanos e não humanos’”. Selgas (2008)SELGAS, F. J. G. Posthumanismo(s) y ciências sociales: una introducción. Política e Sociedad, v. 45, n. 3, p. 7-15, 2008. traz uma reflexão acerca das teorias tidas como pós-humanistas e afirma que a Teoria Ator-Rede é uma delas, por descentralizar a análise sociológica dos elementos humanos e assumir a heterogeneidade das relações. Contudo, cita o autor, ao fazer esse movimento, essas teorias não pretendem renunciar o humano, ao contrário, pretendem torná-lo cada vez mais humano, por analisá-lo em suas relações, imperfeito, influenciado, mas que também age, influencia e transforma.

A Teoria Ator-Rede provoca os leitores a desenvolverem diferentes olhares. É provável, afirma Law (1992)LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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, que a maior parte de nossas relações seja mediada pela materialidade. O que seriam das organizações se não fosse a presença da materialidade? Então, a chamada ordem social também pode ser perturbada. Por isso, “a ordem é um efeito gerado por meios heterogêneos” (LAW, 1992LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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, p. 3).

O fundamental é olharmos os engendramentos coletivos e não os atores separadamente, pois o material e o social são produzidos conjuntamente: “Talvez, quando nós olhamos para o social estamos também olhando para a produção de materialidades; e quando olhamos para os materiais, estamos testemunhando a produção do social” (LAW; MOL, 1995LAW, J.; MOL, A. Notes on materiality and sociality. The Sociological Review, v. 43, n. 2, p. 274-294, 1995., p. 274). Essa materialidade relacional significa que os “materiais são constituídos interativamente. Fora de suas relações eles não têm existência; não têm realidade. Máquinas, pessoas, o mundo natural, o divino – são todos efeitos ou produtos” (LAW; MOL, 1995LAW, J.; MOL, A. Notes on materiality and sociality. The Sociological Review, v. 43, n. 2, p. 274-294, 1995., p. 277).

Não há como negar essa inter-relação entre os atores, pois as coisas podem autorizar, permitir, sugerir, influenciar, proibir e assim por diante, afetando as escolhas e possibilidades dos outros atores. Como comenta Spink (2003)SPINK, M. J. Subvertendo algumas dicotomias instituídas pelo hábito. Athenea Digital , v. 4, p. 1-7, 2003. Disponível em: <http://atheneadigital.net/article/ viewFile/95/95>. Acesso em: 9 out. 2012.
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, não precisamos escolher lados nesse emaranhado dicotômico que se apresenta.

O que a TAR propõe é que se lance um olhar para “quem” e “o quê” participa da ação, e esse “o quê” a teoria chama de não humanos. Com uma linguagem bem-humorada, Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. explica que a expressão “não humanos” não tem sentido em si mesma e não representa pequenos seres estranhos que atuam em níveis subatômicos. Esse despertar da TAR para a materialidade parece algo tão diferente, tão inusitado, mas o fato é que convivemos com esses elementos em nossa rotina diária há muitos e muitos anos. À medida que os não humanos são assumidos como pertencentes ao social, ou como Latour prefere designar, ao coletivo, garante-se uma liberdade de movimento, que lida com a continuidade e a descontinuidade dos modos de ação (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.). O movimento é livre e acontece conforme os arranjos da rede, ora estáveis ou não.

Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. elucida que a partir do século XIX os sociólogos deixaram a materialidade ao encargo de engenheiros e dos cientistas em seus laboratórios. A separação entre a materialidade e a análise social pode ser explicada por uma divisão artificial imposta a partir de disputas disciplinares, e não por constatações empíricas, pois, segundo o autor, o curso da ação coletiva continuou seguindo. O autor alerta também sobre o cuidado que se deve ter nas análises e observações sociais para que os objetos não sejam transformados em intermediários, aqueles que apenas transportam ou refletem a ação humana (LATOUR, 2005).

Os autores da TAR são reconhecidos por acompanharem os cientistas em seus laboratórios, na sua produção e prática dos fatos e dos aspectos técnicos da ciência (LATOUR; WOOLGAR, 1997LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório : a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.). Sim, esses são aqueles mesmos cientistas destinados à materialidade e ao mundo natural na discussão anterior. Sua produção pode ser observada, à primeira vista, como um conjunto de fatos rígidos e naturais ou como matters of fact (LATOUR, 2004LATOUR, B. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical Inquiry , v. 30, n. 2, p. 225-248, 2004.; 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.). Por essa definição, as coisas são consideradas naturais, materiais, estáticas e objetivas. No entanto, o que preconiza a Teoria Ator-Rede é o caráter mediador e agenciador dessa materialidade, que ao invés de estática é dinâmica e apresenta controvérsias (vistas, por exemplo, em um laboratório de pesquisa). A materialidade ganha outra definição, pois deixa de ser apenas um dado, uma coisa ou um fato alocado em uma determinada situação e passa a ser matters of concern, por seus atributos mais dinâmicos e ativos. Para Law (1999)LAW, J. After ANT: complexity, naming and topology. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999., a suposta realidade objetiva do mundo é uma produção das redes de relações. Isso não significa dizer que não existam divisões, mas elas são entendidas como efeitos ou resultados e não algo estabelecido a priori.

Law e Singleton (2003LAW, J.; SINGLETON, V. Allegory and its others. In: NICOLINI, D.; GHERARDI, S.; YANOW, D. Knowing in organizations: a practice-based approach. New York: Sharpe, 2003. p. 225-254.; 2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. destacam a complexidade dos objetos mencionando a pesquisa que realizaram – talvez não da forma planejada inicialmente – envolvendo pacientes com doenças no fígado. Considerando que a tarefa era “apenas” mapear os processos relacionados ao diagnóstico da doença e à “trajetória típica” de um paciente que procura os serviços médicos, eles consideraram “a sua tarefa num caminho de matter-of-fact” (LAW; SINGLETON, 2005LAW, J.; SINGLETON, V. Object lessons. Organization, v. 12, n. 3, p. 331-355, 2005., p. 332), por não levarem em conta inicialmente toda a complexidade envolvida nesse processo, porém, a perceberam no decorrer de sua pesquisa de campo. De fato, muitos autores (ALCADIPANI; TURETA, 2009ALCADIPANI, R.; TURETA, C. Teoria ator-rede e análise organizacional: contribuições e possibilidades de pesquisa no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 16, p. 647-664, 2009.; LAW, 2002LAW, J. Objects and spaces. Theory, culture and society , v. 19, p. 91-105, 2002.; SVABO, 2009SVABO, C. Materiality in a practice-based approach. The Learning Organization, v. 16, n. 5, p. 360-370, 2009.; RECKWITZ, 2002RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, London: Sage, n. 5, v. 2, p. 243-263, 2002.; ORLIKOWSKI, 2006ORLIKOWSKI, W. J. Material knowing: the scaffolding of human knowledgeability. European Journal of Information Systems, v. 15, n. 5, p. 522-524, 2006.; 2007ORLIKOWSKI, W. J. Sociomaterial practices: exploring technology at work. Organization Studies. v. 28, n. 9, p. 1435-1448, 2007.; LABATUT et al., 2009LABATUT, J. et al. The active role of instruments in articulating knowing and knowledge: the case of animal qualification practices in breeding organizations. The Learning Organization, Special Issue on Practice-Based Studies, v. 16, n. 5, p. 371-385, 2009.; LATOUR, 1992LATOUR, B. Where are the missing masses? The sociology of a few mundane artifacts. In: WIEBE, E. B.; LAW, J. (Ed.). Shaping technology/building society : studies in sociotechnical change. USA: MIT Press, 1992. p. 225-258.; 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; 2009LATOUR, B. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: ARRISCADO, J.; ROQUE, N. R. (Ed.). Objectos impuros, experiências em estudo sobre a ciência. Porto: Afrontamento, 2009. p. 37-62.; LAW; MOL, 1995LAW, J.; MOL, A. Notes on materiality and sociality. The Sociological Review, v. 43, n. 2, p. 274-294, 1995.; SUCHMAN, 2005SUCHMAN, L. Affiliative objects. Organization, v. 12, n. 3, p. 379-399, 2005.; NEVES, 2007NEVES, J. P. Seres humanos e objectos técnicos: a noção de “concretização” em Gilbert Simondon. Comunicação e Sociedade, v. 12, p. 67-8, 2007.) que dedicaram artigos sobre a materialidade destacam a sua complexidade, tal como pode ser constatado por Law e Singleton (2005)LAW, J.; SINGLETON, V. Object lessons. Organization, v. 12, n. 3, p. 331-355, 2005..

A TAR sofreu diversas críticas e questionamentos e, por isso, Latour (1999)LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25. retoma esse conceito de “ator-rede” para reexplicá-lo e esclarecer alguns pontos, os quais serão apresentados brevemente. Segundo Latour (1997)LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório : a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997., a “rede” não deve ser comparada à internet, na qual se transporta sem deformações; nem a estruturas fixas, por exemplo, trilhos de trem; e muito menos à sociedade; mas com o rizoma de Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Introdução: Rizoma. In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995., que significa transformações, translações, deslocamentos. Para Freire (2006)FREIRE, L. de L. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. Comum , Rio de Janeiro, v. 11, n. 26, p. 46-65, 2006., uma rede se estabelece e é estabelecida por seus agenciamentos e conexões e não por seus limites. Esse ator não é o ator social da sociologia, mas o que tem a propriedade de produzir efeitos na rede, de ser “actante”. Segundo Latour (1999, p. 346)LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25., “a palavra ator se limita a humanos, utilizamos muitas vezes actant (actante), termo tomado à semiótica para incluir não humanos na definição”. Um actante deixa traços e só assim pode ser seguido na rede. E por deixarem rastros visíveis e possíveis de serem percebidos pelos pesquisadores, a TAR propõe o princípio da simetria, que se refere ao exercício metodológico de analisar, em conjunto e na relação com os humanos, a presença e a agência do mundo natural e material, que será abordado na próxima seção.

Teoria Ator-Rede e o princípio da simetria: inspirações metodológicas

A partir de estudos sociológicos desenvolvidos no campo da ciência e da tecnologia, a TAR busca compreender simetricamente as ciências sociais e naturais, marcadamente separadas e dicotômicas no campo acadêmico, que considera ambas como incertas, ambíguas e disputadas. É importante ressaltar que as teorias demandam, por vezes, algumas inspirações metodológicas próprias. Esse é o caso da Teoria Ator-Rede. Os autores da TAR (LAW, 1999LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25.; 2004LAW, J. After method : mess in social science research. Taylor & Francis e-Library, 2004.; LATOUR, 1999LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25.; 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.) não pretendem estabelecer passos ou receituários metodológicos a serem seguidos, mas um conjunto de insights para o pesquisador, de modo que ele possa estar aberto às experiências, às dinâmicas ontológicas de sua pesquisa.

Latour (2000LATOUR, B. Ciência em ação : como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000.; 2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. destaca alguns elementos importantes para o desenvolvimento do trabalho de campo. A sugestão de “seguir os atores” (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., p. 12) indica que o pesquisador deve acompanhar bem de perto as relações, as ações, as práticas dos atores envolvidos. Por esse caminho, o analista deve tentar identificar as inovações dos atores, a fim de apreender com eles como o coletivo acontece a partir das vivências, quais são os métodos utilizados e as associações estabelecidas (LATOUR, 2000LATOUR, B. Ciência em ação : como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000.; 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.). Ao propor esse acompanhamento, Latour (2000) expõe que é preciso estudar a ciência em ação, antes que ela se torne uma “caixa-preta”, ou seja, algo pronto, com um conteúdo oculto e inquestionável. Com essa premissa o autor destaca a importância de se pesquisar o processo, o desenrolar das ações, das práticas e das controvérsias ali presentes. Essa dinâmica enseja que a TAR almeja compreender os atores em suas relações heterogêneas e as características que eles vão adquirindo por essas inter-relações. “[...] Não devemos buscar por suas qualidades intrínsecas, mas por todas as transformações que ele sofre depois, nas mãos dos outros” (LATOUR, 2000LATOUR, B. Ciência em ação : como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000., p. 421). Esse elemento indica o caráter antiessencialista que a TAR possui (LATOUR, 1999LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25.; LAW, 1999LAW, J. After ANT: complexity, naming and topology. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999.) de assumir que os atores não possuem definições a priori, fora de suas relações.

Ao acompanhar os atores e entendê-los em suas conexões e relações, pode-se analisar, de uma forma diferente, o mundo social e natural. Callon (1986)CALLON, M. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, J. Power, action and belief : a new sociology of knowledge? London: Routledge, 1986. p. 196-223. instiga o debate com a seguinte questão: “o que pode acontecer se a simetria for mantida em toda a análise das negociações que lidam com o mundo social e natural? O resultado seria um caos?” (CALLON, 1986CALLON, M. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, J. Power, action and belief : a new sociology of knowledge? London: Routledge, 1986. p. 196-223., p. 2).

Para amenizar a problemática metodológica dos estudos da ciência e tecnologia, o autor sugere três princípios: (a) agnosticismo: analisar imparcialmente os atores envolvidos em controvérsias; (b) simetria generalizada: o compromisso de analisar pontos de vista conflitantes nos mesmos termos; e (c) associação livre: o exercício de abandonar a distinção entre o social e o natural.

Por intermédio dos princípios sugeridos ao observador, responde-se à questão anteriormente colocada e o seu exercício auxilia na superação da dificuldade teórica presente na discussão entre as ciências naturais e sociais. Portanto, um novo método de pesquisa (ousado) é aludido, no qual o pesquisador “segue os atores da rede para identificar a maneira que se definem e associam diferentes elementos, pelos quais eles constroem e explicam o mundo, sendo ele social ou natural” (CALLON, 1986CALLON, M. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, J. Power, action and belief : a new sociology of knowledge? London: Routledge, 1986. p. 196-223., p. 4).

A noção de simetria foi também apresentada por Latour e Woolgar (1997)LATOUR, B. On actor-network theory : a few clarifications. Página Eletrônica do Centre for Social Theory and Technology (CSTT). UK: Keele University, 1997. como sendo “a base moral” de um estudo etnográfico feito em um laboratório, o qual eles afirmaram ser “duas vezes simétrico: aplica-se ao verdadeiro e ao falso, esforça-se por reelaborar a construção da natureza e sociedade” (LATOUR; WOOLGAR, 1997LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório : a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997., p. 24). Os autores resgatam o “programa forte” de David Bloor (1976 apud LATOUR; WOOLGAR, 1997LATOUR, B. On actor-network theory : a few clarifications. Página Eletrônica do Centre for Social Theory and Technology (CSTT). UK: Keele University, 1997.), responsável pela introdução do conceito de simetria na área de sociologia do conhecimento, para abordar o contexto social e o conteúdo científico sem separá-los, e destacam que, para eles, é preciso tratar igualmente e nos mesmos termos natureza e sociedade. Assim, são suprimidas as distinções entre agência/estrutura, verdade/ falsidade, humano/não humano, conhecimento/poder, materialidade/sociabilidade. De alguma forma, todas essas divisões essencialistas e posições fixas, assim como outras, são lançadas na “fogueira dos dualismos” pela TAR (LAW, 1999LAW, J. After ANT: complexity, naming and topology. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999.).

Os pesquisadores preferem os extremos ao equilíbrio: buscar uma análise igualitária não significa, contudo, tratar com equivalência os diferentes actantes da rede, tampouco excluir um em detrimento do outro. Por exemplo, os não humanos, em sua relação com os humanos, são comumente considerados intermediários, ao invés de assumirem o caráter mediador das situações. Há uma diferença, a partir da TAR, em considerar um ator como mediador ou intermediário. Nas palavras de Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., um intermediário seria aquele que transporta o significado ou a força em uma situação, sem ocasionar, no entanto, algum tipo de transformação. Os mediadores, por outro lado, alteram as circunstâncias, fazem a translação, distorcem e modificam o significado daqueles a quem deveria representar. Os actantes são inúmeros e a TAR não tem preferência por algum tipo de ator como mediador, mesmo que muitos sejam invisíveis. Suas ações possuem sempre um resultado inesperado e sua natureza é complexa (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.).

Essa “invisibilidade” é quebrada em algumas situações em que, segundo Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., eles podem ser facilmente notados, mesmo que momentaneamente:

a) Em alguns locais específicos, como, por exemplo, no espaço de trabalho de um artesão, em um departamento de design ou em laboratórios científicos, nos quais o estudo da inovação e das controvérsias tomam espaços, os objetos se tornam mais mediadores que intermediários.

b) Quando há alguma entrada inusitada de materiais no curso da ação, sendo tratados como exóticos, arcaicos ou alegóricos.

c) Os não humanos podem provocar acidentes, quebrar ou atingir outros atores.

d) Quando a materialidade é utilizada para resgatar o passado, identificar sociedades antigas, trazer memórias à luz. Certa vez, um documentário apresentou a possibilidade dos gregos terem iniciado as narrativas mitológicas a partir do contato estabelecido, por meio da navegação, com os povos antigos que habitaram a região da Turquia. Arqueólogos descobriram um vaso que continha a pintura de um barco com figuras humanas sobre as águas, em um determinado período em que a navegação ainda não era atribuída aos gregos. Esse pequeno vaso, descoberto por meio de suas características, estava contando a história de uma época e nada menos levando a uma hipótese sobre as fundações do pensamento mitológico. Se isso é verdade ou não, não podemos afirmar. Porém, o fato prendeu a atenção de algumas pessoas por se tratar de um objeto tão pequeno, mas que provocou um grande debate histórico.

Dessa forma, os primeiros passos foram dados: assumir a existência, a agência e a inter-relação entre humanos e não humanos, trazendo para o social o caráter coletivo e heterogêneo. No entanto, eles permanecem silenciosos e continuam não sendo reconhecidos em muitas das análises. Em sua relação com os humanos, comumente são considerados meros intermediários, ao invés de assumirem o caráter mediador das situações. Os mediadores não podem ser contados como uma unicidade e, além disso, “o que entra neles nunca define exatamente o que sai” (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., p. 65).

Alcadipani e Tureta (2009)ALCADIPANI, R.; TURETA, C. Teoria ator-rede e análise organizacional: contribuições e possibilidades de pesquisa no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 16, p. 647-664, 2009. recomendam pesquisas empíricas sobre como essas relações são desempenhadas cotidianamente – por exemplo, no Brasil, em organizações comunitárias, em favelas, cooperativas autogestionárias e movimentos populares, que oferecem múltiplas formas de organizar, diferentes dos negócios tradicionais –, ao invés de se produzir e reproduzir um discurso de chavões que partem de perguntas autorrespondidas. Os autores ainda destacam que a TAR nos relembra da necessidade de se realizar pesquisas qualitativas em profundidade. Nessas pesquisas empíricas, in loco, a TAR, tanto em sua abordagem metodológica quanto em seu potencial de análise, pode contribuir na compreensão do papel desempenhado por humanos e não humanos no processo de organizar, destacando como os instrumentos musicais, redes de computadores, câmeras filmadoras e projetores, máquinas de bordado, linhas e tecidos, todos são partes constituintes das organizações e desempenham um papel fundamental nos processos organizativos.

Dessa forma, com o intuito de elucidar outros episódios que revelam a agência/ presença dos não humanos em um contexto de relação, serão apresentados, no próximo item, dois trechos extraídos de dissertações que se basearam na Teoria Ator-Rede, assumindo suas inspirações teóricas e metodológicas. As pesquisas de campo foram realizadas entre 2009 e 2012, e utilizaram as técnicas de observação participante e entrevistas, a partir do pressuposto de que os pesquisadores são parte da rede e, dessa forma, o método vai sendo construído no decorrer da pesquisa (LAW, 2004LAW, J. After method : mess in social science research. Taylor & Francis e-Library, 2004.). Em termos metodológicos, é necessário também descrever as inserções e o desenvolvimento das atividades no campo, e isso se deu por meio dos diários de campo compostos por anotações, imagens e e-mails, cujos trechos serão apresentados em parte a seguir. Assim, foi possível realizar discussões sobre agência sem nos restringirmos à “intencionalidade das pessoas” ou à “intermediação dos objetos”, porém, trazendo à tona o que, de acordo com Latour (2012, p. 71)LATOUR, B. Reagregando o social : uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012; São Paulo: Edusc, 2012., é a “natureza heterogênea dos ingredientes que formam os laços sociais. [...] Por que nunca faço o que quero?”. A TAR, por apresentar uma proposta teórico-metodológica, sugere que os pesquisadores devem aprender com os atores não apenas o que fazem, mas como e por que, e isso foi feito seguindo e descrevendo suas relações heterogêneas (LATOUR, 1999LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25.). Para tanto, além dos diários de campo, também foram utilizados documentos oficiais das organizações, vídeos e notícias divulgadas na mídia em geral para contribuir na compreensão da realidade organizacional em estudo. Entretanto, acompanhar as atividades das organizações pesquisadas exige não apenas tempo (os casos empíricos aqui relatados foram extraídos de dissertações cujas pesquisas tiveram mais de 12 meses de duração e registros de campo), mas disposição, inserção no cotidiano organizacional sem restrições, recursos financeiros e uma grande capacidade de lidar com incertezas, tanto as nossas – pode-se ter tanto um dia de trabalho monótono quanto agitado e cheio de novidades – como as dos atores envolvidos na organização. Dessa forma, não basta ter um termo de autorização para a pesquisa, é preciso estabelecer e manter a confiança com os sujeitos pesquisados.

O projetor e sua agência

Enfim, chegou o grande dia da estreia. No teatro que representa a classe dominante de uma época passada; na cidade que viu, ouviu e presenciou a maioria das histórias contadas neste filme-documentário – O grande tambor –, que faz um resgate histórico da cultura negra do extremo Sul do Brasil por meio de um trabalho de preservação do tambor de sopapo. Esse instrumento musical carrega consigo histórias de antigos carnavais de rua, dos tempos de escravidão, de riquezas materiais, de rituais religiosos. Está na raiz da construção de uma sociedade que se diz europeia e branca, renegando sua também origem africana e negra. São histórias contadas por Griôs (mestres da cultura afrodescendente), por descendentes de negros, por descendentes de senhores de escravos, por músicos, historiadores; homens e mulheres envolvidos de alguma forma com a cultura negra ou com interesse em compreender a diversidade cultural da sociedade gaúcha.

Oficialmente, o projeto que resultou nesse filme-documentário, que seria apresentado nesse dia, teve a duração de um ano, aproximadamente, porém, muitas descobertas aconteceram antes disso. De qualquer forma, se nos detivermos apenas nas descobertas, nas situações, nos envolvimentos e nos trabalhos realizados durante esse um ano de projeto, já é suficiente para compreendermos a dimensão do significado dessa estreia. Foram resgates, reflexões e discussões sobre história e cultura, escravidão e preconceito racial, machismo e participação das mulheres, além de crenças religiosas; por meio de pessoas e lugares muitas vezes esquecidos ou deixados de lado, mas, principalmente, por meio do tambor de sopapo, “com seu grave imponente para ser ouvido de longe”, como dizem os músicos envolvidos no projeto.

Durante o período de realização do projeto, houve um intenso processo de criação musical e de gravação da trilha sonora original; um trabalho exaustivo de edição, visitas, entrevistas e alterações de prazos. Reflexões sobre a “carioquização” do carnaval, especialmente no RS, resumidas em uma frase do Mestre Batista: “quando tentamos imitar os outros, deixamos de ser nós mesmos”. O material coletado também possibilitou a realização de uma reportagem sobre a Semana da Consciência Negra, na qual uma das entrevistadas questiona: “você conhece colônia alemã, italiana... mas, você conhece uma colônia africana?”. E assim foi: muito trabalho e muitos questionamentos, “pessoas de várias etnias, que re-descobrindo a história da cultura onde nasceram, se sentem mais livres [...] somos brasileiros descobrindoo que constitui nossa bagagem cultural, do que somos feitos[...]”, relatou uma das participantes do projeto.

E agora, estávamos lá, início de dezembro, para a tão aguardada estreia. Saímos de Porto Alegre de manhã, em um ônibus fretado especialmente para levar os envolvidos no projeto, os amigos e os familiares que quisessem acompanhar. Algumas pessoas da equipe de produção e edição haviam se deslocado com antecedência para Pelotas (cidade localizada ao sul do Rio Grande do Sul) e comentaram que, na véspera, estiveram em torno de 20 horas trabalhando para finalizar a edição do filme para aquele dia, embora ainda seria necessário trabalhar mais nos acertos finais, antes de produzirem oficialmente os DVDs que seriam distribuídos. Nesse dia, durante visita a uma antiga charqueada preservada, o tempo chuvoso fez com que os tambores fossem tocados dentro da casa grande, o que, segundo os “conhecedores” da religião afro, era uma determinação dos Orixás. Foi um encontro de celebração pela realização do filme-documentário.

Início da noite, chegamos ao teatro. Um prédio de construção antiga, com lugares de plateia e galerias com camarotes. Não estava lotado, devia ter em torno de 200 pessoas dentro do local. No teatro só havia disponível equipamento de som, então as pessoas da Cooperativa (os realizadores do projeto do filme-documentário) levaram notebooks e projetores para exibir o filme. Iniciaram a exibição com um pouco de atraso e, quase uma hora depois, a projeção parou. Mexe aqui e ali, desconecta e reconecta equipamento, as pessoas ficaram um pouco agitadas, “tá demorando!”, os mestres Griôs e outros mestres resolvem subir no palco para tocar e cantar. Muitos aplausos.

Queimou o projetor. Então, substituíram o equipamento e tudo certo. Seguiu-se a exibição, porém, em torno de 20 ou 30 minutos depois, queimou o segundo projetor. Inacreditável. Algumas pessoas da plateia resolveram ir embora. No meio dos cochichos e da perplexidade, uma das pessoas da Cooperativa anuncia ao microfone: “pessoal, queimou o segundo projetor... (segundos de apreensão) mas a gente trouxe três!”. Muitos aplausos, gritos, quase delírio – quem iria dizer para levar três projetores e quem iria imaginar que os três seriam necessários? Quando terminou a exibição, sem mais interrupções, já era tarde da noite. Ao final do encontro, fortes abraços, rostos felizes, cansados, sorrisos aliviados, olhares emocionados e quase incrédulos pelo acontecido. Tensão e alívio que não seriam percebidos sem a agência de alguns não humanos. E assim pegamos a estrada de volta a Porto Alegre [trecho adaptado da dissertação].

As explicações que os envolvidos deram ao ocorrido foram as mais diversas, desde a instalação elétrica ser muito velha, até a força atribuída a alguns orixás. Entretanto, tudo estava “depositado” no computador e no programa que exibiram o filme, no projetor que mostraria as imagens e nas caixas de som por meio das quais ouviríamos as histórias. Esses não humanos faziam parte do trabalho de, no mínimo, um ano. Certa vez, um dos envolvidos nesse projeto comentou que um filme, quando está na prateleira, não é um filme; ele só é um filme quando é assistido por alguém. Porém, nessa relação (quem faz e quem assiste), geralmente negligenciamos alguns não humanos que participam do processo: o computador, o projetor e a caixa de som. Basta que um deles não trabalhe para que, nesse momento, sejam lembrados. No entanto, eles não “surgem” nesse momento, já estavam lá, agindo/trabalhando, apenas nós não os considerávamos em nossas análises.

A máquina de bordado e o corpo

Outro exemplo que demonstra agência dos não humanos pode ser elucidado por meio de uma situação de campo, vivenciada durante outra pesquisa de mestrado. A pesquisadora estava em campo, acompanhando o trabalho de mulheres que atuavam em uma cooperativa de costureiras em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Nessa ocasião, uma máquina de bordado gerava uma grande movimentação para as cooperadas que nela operavam. Como se tratava de um equipamento caro e desconhecido, as cooperadas ficavam desconfiadas e até mesmo com “medo” de manipulá-lo, como elas mesmas mencionaram em conversas informais e nas entrevistas.

Praticando, aprendendo e sabendo. No curso das ações cotidianas, esses três elementos nunca estão descolados, mesmo com todo o esforço que é feito para enxergá-los separadamente, como foi possível acompanhar nas relações que se estabeleceram entre máquina, linhas, cooperadas, manuais, pessoas que trabalhavam com bordados e o mecânico da assistência técnica. Uma textura de agenciamentos foi sendo montada a partir das relações estabelecidas entre eles, em virtude da utilização da máquina de bordado, que naquele ponto havia se tornado um elemento relevante na rede-de-atores (LAW, 1992LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
http://www.heterogeneities.net/publicati...
; 2004LAW, J. After method : mess in social science research. Taylor & Francis e-Library, 2004.). A especial localização da máquina em uma sala reservada para esse fim representava também o destaque que foi concedido a ela.

A agência da máquina não parou por aí. Em algumas oportunidades, a pesquisadora acompanhou diretamente as relações entre máquina e cooperadas, além da grande movimentação do corpo provocada pelas características do seu funcionamento. A máquina trabalhava a partir de um arranjo de linhas disposto em formato de “V” na parte superior do equipamento. Em seu lado direito havia um visor, no qual era possível programar algumas letras e desenhos para serem bordados. O tecido das camisetas que uma das cooperadas iria bordar em uma tarde de trabalho já estava cortado, porém, ainda não costurado. Depois de bordados, os lotes produzidos seguiriam para as costureiras para fechamento das peças e acabamentos. A cooperada desamarrava uma tira de tecido que envolvia o lote a ser produzido e pegava a parte frontal avulsa de uma camiseta. Colocava-a sobre o seu corpo e com um giz amarelo fazia uma pequena marcação na altura do peito. O bordado em questão era uma mistura de tons amarelos e marrons (esse trabalho tinha sido encomendado por uma igreja cristã da região). A marcação feita com o giz indicava o local onde a máquina iria bordar, possibilitando posicionar corretamente o tecido no bastidor, que o prendia. A máquina vinha acompanhada de bastidores de diversos tamanhos e a escolha do seu uso dependia do tamanho do bordado e do tecido em questão.

A primeira camiseta era a mais importante, pois guiaria a forma como as demais peças seriam bordadas. Uma espécie de “peça piloto” que faria uma representação de como o bordado deveria ser feito nas demais peças daquele lote específico. Depois da primeira camiseta pronta, a cooperada mostrava o resultado aos colegas, que validavam ou criticavam esteticamente o material bordado, configurando uma atuação coletiva no setor da serigrafia. Os colegas validaram o trabalho, e a cooperada retornou para a sala de bordado.

A máquina levou um pouco mais de 10 minutos para bordar cada peça. Naquela ocasião e para não ficar ociosa nesse período, a cooperada dividia-se entre a máquina de bordado e as telas com tintas, no espaço da serigrafia que ficava logo ao lado da sala em que se localizava a máquina de bordado. Enquanto a máquina trabalhava com o bastidor, a cooperada preparava a peça seguinte que seria colocada, para adiantar a atividade. Depois de prepará-la, seguia rapidamente para a serigrafia, pegava a tela e ia fazendo as impressões no tecido. Quando escutava que o barulho da máquina tinha parado, deslocava-se até a sala do bordado para dar continuidade ao lote. A linha do bordado era cortada automaticamente. Depois de pronto, a cooperada desprendia o bastidor da máquina, colocava o outro já preparado, dava o comando e a máquina voltava a trabalhar novamente. Seguia novamente para a serigrafia. Logo depois que ela havia saído, em um determinado momento, uma linha marrom se rompeu no meio do trabalho de bordado e a máquina parou. Nem foi necessário chamá-la, pois quando ela ouviu que o barulho havia parado, correu para verificar o que havia acontecido.

Comentou que aquela linha era muito ruim e se arrebentava constantemente, fazendo com que suas idas e vindas até a sala de bordado fossem mais frequentes. Passou o fio novamente pelos orifícios da máquina, com o auxílio de uma pinça. Mexeu no programa da máquina diretamente no visor, fazendo com que a máquina retrocedesse alguns pontos para preencher um pequeno espaço vazio. Mesmo não sabendo mexer totalmente no programa, a cooperada sabia dar alguns comandos importantes no visor digital da máquina. Ela tinha facilidade para isso. Assim, fez com que a máquina funcionasse novamente e voltou para a serigrafia.

Em uma de suas voltas à sala de bordado, a cooperada notou que a bobina branca da máquina estava no fim. Desceu as escadas do mezanino e foi até uma das costureiras para encher de linha a tal bobina. O fato era interessante, pois a costureira não apenas encheu a peça como ensinou a sua colega cooperada como fazer. Dando instruções, disse que o primeiro passo era passar a linha branca, depois retirar a bobina da própria máquina reta, para que o equipamento entendesse que não era para costurar, e sim para preencher o pequeno objeto com a linha. A bobina vazia foi colocada na lateral direita da máquina e, em uma junção de máquina, linha e mãos a bobina foi rapidamente se enchendo. Quando estava totalmente preenchida, a máquina parou de funcionar, pois havia entendido que sua tarefa estava cumprida. Ao final dessa ação, voltou para a serigrafia e continuou imprimindo suas telas, aguardando o novo sinal da máquina.

O barulho parou novamente, mas naquele momento a peça estava pronta. Ao longo de toda a tarde a linha se rompeu outras vezes e a cooperada trocava o bastidor a cada 13 minutos, que era o tempo que a máquina levava para fazer aquele bordado. Comentou que quando a máquina fazia rapidamente o bordado, ela ficava o tempo todo por ali, sem precisar ir e vir. “Tá vendo que eu nem me sento para fazer esses acabamentos, né? Porque se eu sentar, meu corpo vai relaxar e eu vou demorar mais para fazer as coisas” [trecho extraído da dissertação]. Ao final da tarde, a cooperada disse que estava com um pouco de dor de cabeça. Além do calor, comentou que estava muito cansada e que ainda iria para o supletivo à noite. Frente a isso, como negar a agência exercida pela máquina, naquela tarde, sobre o corpo da cooperada? As práticas da serigrafia, assim como o tempo e a forma como a máquina foi realizando o bordado, fizeram com que a cooperada ficasse entre uma sala e outra, entre uma atividade e outra, ao longo da tarde. A trabalhadora comentou ainda que isso acontecia uma semana sim e outra não, pois ela e outra colega se revezavam nas tarefas do bordado, e que estava sugerindo para que as demais cooperadas da serigrafia aprendessem também a utilizar a máquina, a fim de quebrar um pouco a rotina, que era desgastante.

O que os dois exemplos nos possibilitam pensar? Para refletirmos acerca dessa e de outras questões, realizaremos na próxima seção algumas considerações sobre a agência dos não humanos por meio de suas relações.

Considerações e reflexões sobre a agência

A abordagem da Teoria Ator-Rede tem um número de pontos comuns com outras sociologias, no entanto, de acordo com Law (1992)LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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, seu materialismo relacional é bem distinto. A TAR não apenas apaga as divisões analíticas entre agenciamento e estrutura, e entre o macro e o micro social, mas também propõe tratar diferentes materiais – pessoas, máquinas, “ideias” e demais actantes – como efeitos interativos, relacionais, e não causas primitivas. Dessa forma, segundo Law (1992)LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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, se quisermos responder às questões sobre estrutura, poder e organização, entre outras, deveremos explorar efeitos sociais, qualquer que seja sua forma material. O argumento básico é que, à medida que a “sociedade” se reproduz recursivamente, faz isso porque é materialmente heterogênea, e quando a Teoria Ator-Rede explora o caráter de uma organização, trata-o como um efeito da relação entre materiais e estratégias da organização.

Quais são os tipos de elementos heterogêneos criados ou mobilizados e justapostos para gerar os efeitos organizacionais? Como eles são justapostos? Como são superadas as resistências? Que estratégias estão sendo performadas por meio das redes do social como uma parte do próprio meio? Até onde vão essas redes? Para a TAR, não há coisa tal como última análise, uma vez que não há última análise, na prática há diferenças reais entre os poderosos e os miseráveis, diferenças nos métodos e materiais que eles empregam para se produzirem e reproduzirem. Utilizando a TAR, a tarefa é estudar esses materiais e métodos para entender como eles se realizam e notar que poderia, e frequentemente deveria, ser de outra maneira (LAW, 1992LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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).

Tendo em vista que a TAR não aceita trabalhar com estruturas invisíveis, subjacentes, considera-se que se elas assumirem formas explícitas, então será possível acompanhá-las e, portanto, pesquisá-las; a ênfase recairia nas descrições e análises a respeito dos modos que enactam (estabilizam e desestabilizam) e dos modos de existência coletivos. Nessa abordagem, as categorias surgiriam em um processo no qual estão envolvidos humanos e não humanos, segundo Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.. Os objetos não seriam dominados pelos homens, e sim estabeleceriam relações complexas e até os “superariam”, participando das categorizações. As relações entre humanos e não humanos estariam tão enredadas que não seria possível separá-las. Tratar-se-ia de compreender os vínculos que se estabeleceriam entre eles. Na TAR o conceito de social seria pensado enquanto produzido em rede, por regimes de existência política que dariam margem a uma sociologia das ciências e das técnicas (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.).

A TAR fomenta algumas ideias e o próprio debate em torno das noções de estrutura e agência, uma disputa comum e constante no campo da administração, mesmo que esse não seja o seu foco principal. Agimos porque queremos ou alguma estrutura social ou, no caso, organizacional, nos conduz à ação? Quando se afirma que o coletivo é formado por uma rede de relações heterogêneas, assume-se, portanto, que os atores são efeitos das redes (LATOUR, 1999LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25.). Para a TAR, macro e micro acontecem nas situações cotidianas e são resultados de uma articulação de redes de atores. Por isso, não é possível dizer, baseando-se no que preconiza a teoria, que a agência é determinada pela estrutura ou o contrário (ALCADIPANI; TURETA, 2009ALCADIPANI, R.; TURETA, C. Teoria ator-rede e análise organizacional: contribuições e possibilidades de pesquisa no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 16, p. 647-664, 2009.). Na sociologia há uma inquestionável existência de fronteiras (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.), grupos, culturas, disciplinas, traços do pensamento moderno separador e purificador (LATOUR, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.), mas que podem ser discutidas quando vemos o social por intermédio de suas conexões, que extrapolam esses limites delineados.

Os grupos não podem ser definidos como coisas silenciosas, ao contrário, são constituídos por muitas vozes, por vezes contraditórias, e possuem um caráter provisional (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.). Não há como afirmar que estamos sozinhos ao longo de nossa existência. Somos constituídos e feitos por muitos e diferentes atores. Mesmo em um momento aparentemente tão solitário, que é a escrita de um artigo, o autor encontra-se acompanhado por muitas ideias que surgem a partir de vivências, pessoas e objetos, cercado por muitos livros que traduzem a experiência de muitos outros que fizeram esse exercício antes dele. Um autor está, na prática, na presença de vários atores que compõem a sua rede heterogênea de relações e que extrapolam os limites do espaço e também do tempo.

A sociologia tradicional, segundo Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., preconiza a inércia social em detrimento do movimento e da mudança. Complementa que a regra é a ordem ao invés da decadência, transformação ou criação que são tidas como exceções, quando na verdade marcam a realidade social. Spink (2003)SPINK, M. J. Subvertendo algumas dicotomias instituídas pelo hábito. Athenea Digital , v. 4, p. 1-7, 2003. Disponível em: <http://atheneadigital.net/article/ viewFile/95/95>. Acesso em: 9 out. 2012.
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, na mesma linha de pensamento, afirma que podemos ser nós em complexas redes, que não são apreendidas como estruturas e posições, mas como movimentos que acontecem no cotidiano. O que se debate na TAR é a conectividade dos diferentes elementos presentes em “locais muito locais, muito práticos e muito pequenos” (LATOUR, 1999LATOUR, B. On recalling ANT. In: LAW, J.; HASSARD, J. Actor-network theory and after . Oxford: Blackwell Publishing, 1999. p. 15-25., p. 17). Essa é uma forma de se explorar o social, observando os movimentos de perto, muito perto, em que agenciamentos de humanos e não humanos são essencialmente descentrados (SPINK, 2003SPINK, M. J. Subvertendo algumas dicotomias instituídas pelo hábito. Athenea Digital , v. 4, p. 1-7, 2003. Disponível em: <http://atheneadigital.net/article/ viewFile/95/95>. Acesso em: 9 out. 2012.
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).

Outra diferença entre a TAR e as abordagens tradicionais é que os objetos são tratados, na esfera social, apenas como meros intermediários. Vamos imaginar a seguinte situação: um professor chega a sua sala de aula poucos minutos antes dos trabalhos se iniciarem, separa seus objetos e insere o pen drive no computador disponível. O pen drive, infelizmente, não funciona, e não há outro equipamento à disposição do professor. Em poucos minutos essa circunstância faz com que o professor tenha que reprogramar a sua forma de conduzir sua aula e, eventualmente, o conteúdo. Há, de fato, uma grande dependência em relação aos computadores em nossas salas de aula. Muitos professores esqueceram, inclusive, como utilizar o quadro ou outras técnicas pedagógicas. O elemento não humano assumiu um papel de mediador nessa cena, em razão de sua força de transformação e agência.

Haveria outros exemplos a serem citados, a partir das pesquisas de mestrado mencionadas e que elucidam a agência provocada pelos não humanos. No primeiro exemplo empírico deste artigo, existia uma expectativa e preparação em relação ao lançamento do filme-documentário. Todos se encontravam no entorno para a grande estreia. No entanto, com a falha e substituição do projetor, o curso da ação de muitas pessoas, naquela ocasião, foi transformado e alterado. O que dizer da máquina complexa de bordado que, com suas linhas frágeis, fez a cooperada se movimentar intensamente naquela tarde, fazendo com que a trabalhadora se dividisse entre a serigrafia de camisetas e a recolocação das linhas que se partiam? São exemplos que evidenciam a participação dos não humanos no processo organizativo; lidar com imprevistos e com o cansaço em um dia de trabalho envolve considerar diversos actantes.

Essa força que transforma o curso dos acontecimentos só é possível a partir da ação executada pelos elementos que compõem a rede. A noção de ação/agência é uma das características da TAR mais relevantes. Explicando esse traço da teoria, Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. diz que a ação não é totalmente controlada pela consciência e deve ser definida como um nó, como um conjunto de agências que são surpreendentes e que vão aos poucos sendo desenredadas, à medida que as ações vão acontecendo em determinada ocasião. “As agências dão conta da complexidade, diversidade e heterogeneidade da ação. [...] a ação deve permanecer uma surpresa, uma mediação, um evento” (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., p. 45). Há, dessa forma, certa incerteza sobre quem e o que nos faz agir.

A agência estará sempre presente nas situações que envolvam transformação, ou seja, quando alguém ou alguma coisa fizer a diferença onde estiver. Latour (2004)LATOUR, B. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical Inquiry , v. 30, n. 2, p. 225-248, 2004. apresenta uma definição de agência, da qual não se pode excluir os não humanos como “sendo capazes de modificar outros atores, com uma série de transformações elementares, da qual podemos fazer uma lista graças a um protocolo de experiências” (LATOUR, 2004LATOUR, B. Why has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical Inquiry , v. 30, n. 2, p. 225-248, 2004., p. 141).

Uma agência invisível, que não provoca nenhuma mudança, não faz diferença no meio em que se encontra e, além disso, não deixa nenhum rastro ou caminho, não pode ser considerada uma agência (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.). A presença dos elementos sociais, entre eles humanos e não humanos, deve ser evidenciada em uma cena, mesmo que eles não estejam fisicamente presentes. Isso acontece porque a ação não pertence a um local específico, é distribuída, alternada, múltipla, deslocada (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.), e não existe sem os atores, onde quer que eles estejam. Seja esse “onde” perto ou longe, presente ou ausente.

Uma das facetas complexas em torno da noção de ação/agência é que nunca alguém estará sozinho em uma ação, pois os seres e as coisas encontram-se em um constante devir, influenciados por essa construção coletiva, que não implica, como condição sine qua non, a presença física/espacial dos demais atores. Cada ação, não importando quão trivial ela seja, provê ao cientista social o conjunto de entidades consideradas no momento e que explicam como e o porquê de qualquer ação (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.). Essa imbricação que nunca termina, mas que se encontra sempre em mutação, entre os elementos da rede e seus agenciamentos, representa o caráter processual dos fenômenos em estudo.

Law (1992)LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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argumenta que pela TAR os fenômenos podem ser vistos, metaforicamente, como um verbo e não como um substantivo. O verbo indica algo que está acontecendo, dinâmico e inacabado. Ao passo que os substantivos remontam algo estático, institucionalizado, acabado. Adotar uma visão processual tem suas consequências, complementa o autor. Isso vai de encontro às ideias de alguns teóricos da administração, por exemplo, e em tantas outras esferas de estudo, que tentam normatizar e buscar sempre a ordem das coisas, negando que existem ordens no plural (LAW, 1992LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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), assim como resistências, desordens, poder, relações instáveis, processos com inúmeras implicações e que nunca estão finalizados.

Tais ações e acontecimentos que modificam as situações não são, dessa forma, exclusividade de agentes humanos, mas contam com a presença e interferência de elementos não humanos. O maior contraste entre a Teoria Ator-Rede e a sociologia, ou a “sociologia do social”, como menciona Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., é a incursão de tais elementos na análise social. Deixam de ser apenas artefatos, cuja significação é atribuída pelo homem, e passam a ter agência, ou seja, participam das ações nas situações cotidianas e provocam transformações.

De acordo com Neves (2004)NEVES, J. P. A tese da autonomia do técnico na “teoria do actor-rede”: dois estudos empíricos. In: SEMINÁRIO DA AISO – ASSOCIAÇÃO IBERO-AMERICANA DESOCIOLOGIA DAS ORGANIZAÇÕES, 17., 2004. Valência, Espanha: 21 a 23 out. 2004., os estudos envolvendo a materialidade podem gerar dilemas, uma vez que podem polarizar as opiniões, colocando de um lado aqueles que defendem e valorizam os atores humanos em detrimento da materialidade e criticam teorias como a TAR, acusando-a de ser impessoal e até mesmo desumana. Por isso, é relevante esclarecer que apesar de trazer à cena da análise sociológica os atores não humanos, os autores da TAR não possuem a pretensão de atribuir características ontológicas semelhantes entre eles. Não é necessário polarizar ou rivalizar os diferentes tipos de atores, gerando dicotomias. Sim, eles são diferentes e essa é a justificativa para o caráter heterogêneo da rede. O que se preconiza é, assim, reconhecer que o mundo dos não humanos, sejam eles materiais ou biológicos, pode ser decisivo na constituição do social (NEVES, 2004NEVES, J. P. A tese da autonomia do técnico na “teoria do actor-rede”: dois estudos empíricos. In: SEMINÁRIO DA AISO – ASSOCIAÇÃO IBERO-AMERICANA DESOCIOLOGIA DAS ORGANIZAÇÕES, 17., 2004. Valência, Espanha: 21 a 23 out. 2004.).

Graças à ideia de ação e cognição distribuída (ACD), desenvolvida pelas ciências cognitivas, desfez-se, de acordo com Callon (2008)CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008., de um só golpe, pontos de discussão em torno da Teoria Ator-Rede, principalmente acerca da importância que essa concedia aos dispositivos técnicos e não humanos. Para o autor, essa discussão permitiu avançar no estudo da produção coletiva de conhecimentos (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008.). Para a TAR, a ação humana e a constituição de coletivos não pode ser compreendida sem levar em conta a materialidade, as tecnologias e os não humanos, sendo assim, a análise da cognição e da ação são feitas com base em premissas materiais (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008.).

A noção de tradução2 2 Deixamos aqui a palavra “tradução”, respeitando a tradução da entrevista de Callon (2008). Esse é, no entanto, um conceito crucial da TAR e preferimos abordar o termo em português como translação ao invés de tradução. Essa característica da TAR, em inglês, chama-se translation. O termo tradução, muitas vezes, representa a ideia de “preservação do original”. Para ilustrar essa expectativa, podemos citar o exemplo da ação de traduzir um livro em inglês para o português. O que espera o leitor? Que a tradução se aproxime ao máximo do original e que em sua leitura ele consiga entender o significado real que o autor quis transmitir em sua língua materna. Mesmo que algo se perca – dependendo de quem está operando a tradução e, aliás, existem muitas traduções literárias de má qualidade –, o objetivo não se altera: preservar as palavras e as ideias de determinado autor. Porém, a translação utilizada pela TAR conduz a uma ideia de movimento e, durante esse processo, os atores, com frequência, alteram o sentido das ideias originais transmitidas e que pertencem a outros elementos da rede (Vide: CALLON, 2008). que, segundo Callon (2008)CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008., é muito trabalhada, porém, pouco explorada, trata-se de uma noção tanto simples quanto fundamental. Não se pode descrever a ação partindo de fontes de origem que são pontos, estruturas ou agentes, mas sim mediante a circulação de certo número de entidades que são mais importantes que os pontos ou as estruturas. Na circulação, as relações se referem às coisas que circulam e a ideia de tradução se associa à ideia de circulação (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008.).

A metodologia interessada no que circula permite conhecer as traduções e as coisas que se deslocam, qual a natureza do que se desloca, de que matéria o social está sendo feito e seguir sua dinâmica. Então, a ideia de tradução corresponde à circulação e ao transporte, a tudo o que faz que um ponto se ligue a outro pelo fato da circulação. É importante descrever o que circula (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008.).

De acordo com Callon (2008)CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008., um bom termo a ser usado é o “agenciamento sociotécnico” (agencement sociotécnique) para descrever a grande diversidade de agências. Segundo o autor, o problema não é saber se os seres humanos são dotados de intenção, se são capazes de certa forma de conhecimento, se são capazes de calcular, se são altruístas ou egoístas, para Callon (2008)CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008., não está em debate a capacidade de agenciamento dos seres humanos. A questão consiste em “saber quais são os agenciamentos que existem e que são capazes de fazer, de pensar e de dizer, a partir do momento em que se introduz nestes agenciamentos, não só o corpo humano, mas os procedimentos, os textos, as materialidades, as técnicas, os conhecimentos abstratos e os formais etc” (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008., p. 309). Existem agenciamentos diferentes uns dos outros, capazes de fazer coisas igualmente diferentes.

A partir da noção de tradução, consideramos que uma agência sem a passagem por outra coisa (que pode ser um não humano, uma técnica etc.) não é uma agência humana. A agência limitada ao ser humano não alude apenas a ele, uma vez que esse está incorporado em operações de tradução, isto é, um ser humano se encontra sempre incluído em uma dinâmica de agenciamento em que cada elemento esclarece os outros e permite compreender porque o agenciamento atua de certa maneira (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008.). Assim, “um mercado econômico é um agenciamento, mas também um agente econômico é um agenciamento” (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008., p. 310).

Conforme Law (2004)LAW, J. After method : mess in social science research. Taylor & Francis e-Library, 2004., existe também um senso em desenvolvimento de que fluxos globais são incertos, imprevisíveis e até caóticos, matematicamente falando. Então o mundo está em movimento e a ciência social mais ou menos, relutantemente, segue seu curso. Porém, agora, a agência pode ser imaginada como emotiva e incorporada e não cognitiva. Estruturas podem ser imaginadas como mais quebradas ou imprevisíveis em sua fluidez e, ao mesmo tempo, dentro das ciências sociais, falar de método é ainda evocar um relativo repertório limitado de respostas.

A partir do momento em que se afirma que a ação passa por meio dos coletivos distribuídos, a oposição entre humanos e não humanos pode desaparecer. Assim, em lugar de haver uma grande dicotomia entre humanos e não humanos, apreciam-se muitíssimas diferenças de agências e de ação. A grande vantagem desse enfoque é que não temos que escolher entre duas categorias de agência (humana ou instrumental), mas simplesmente observar a decolagem de uma multidão de agências diferentes que estão ligadas ao fato de que há numerosos agenciamentos possíveis que atuam diferentemente. E que se pode estudar tudo isso empiricamente. “Com a noção de agenciamento, passamos a uma tolerância generalizada que permite a existência de todas as agências possíveis” (CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008., p. 312).

Reflexões e possíveis contribuições para as pesquisas em administração

Dentre os diversos conceitos que são característicos da Teoria Ator-Rede, escolhemos tratar mais especificamente da “noção de agência”, que, quando atribuída aos não humanos, geralmente causa, no mínimo, estranheza. Éramos questionadas e também nos questionávamos sobre “como mostrar que o não humano também age”. As relações que se estabelecem entre os actantes durante as investigações sociais já estão ali, acontecendo. São invisíveis pelas cegueiras que desenvolvemos em nossas pesquisas. Uma das contribuições teórico-metodológicas da TAR é a possibilidade de ampliar as percepções, a sensibilidade, as atitudes de quem se propõe a praticar a pesquisa; existe, assim, a possibilidade de aumentar a diversidade dos actantes em suas relações.

O pesquisador depara-se com uma realidade local, micro, complexa e em fluxo. Como as percepções se ampliam e se dirigem para as relações entre atores diferentes e diversos, ao invés das estruturas acabadas, o investigador necessita imergir no cotidiano estudado, de modo a vivenciar e compartilhar as experiências pesquisadas. Tal atitude exige do pesquisador um compromisso ético com os sujeitos pesquisados no desenvolvimento de suas práticas, uma vez que ele passa a integrar a rede de actantes. Os dilemas impõem-se cotidianamente e há o desafio constante de saber aproximar-se e distanciar-se quando necessário. O método da TAR de seguir e acompanhar os atores em campo exige pesquisas com maior duração, registros (em diários de campo), observações que alcancem os actantes em suas relações (sejam eles humanos ou não humanos), envolvimento e abertura ao inesperado.

Assim, para que o pesquisador consiga acompanhar os atores heterogêneos em suas relações e práticas (processos), sem distinções a priori, ele deve se inserir em campo e realizar um acompanhamento próximo e participante de seus pesquisados. O principal instrumento para o registro dos dados são os diários de campo, registros fotográficos, filmagens, gravações e entrevistas. Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. ressalta a importância dos diários de campo ou notebooks, como ele mesmo denomina. Relata que as pessoas ficam um pouco “desapontadas” se perceberem que grandes descobertas e escritos vindos da ciência assim aconteceram graças às anotações feitas em finos cadernos que permaneceram com seus pesquisadores durante o desenvolvimento de pesquisas e entrevistas.

Nesse registro e desenvolvimento da pesquisa, o foco não está em descrever os atores isoladamente, mas em atentar-se às relações estabelecidas em campo. Há um coengendramento, ações que provocam mudanças, deslocamentos, afetações. Nesse processo – que se trata de algo não definitivo, tampouco fixo – os actantes se constituem e significam mutuamente. Por isso, a agência; uma agência heterogênea porque é praticada por diferentes atores – inclusive pelos pesquisadores. Com a intensa automação dos processos organizativos e das vidas coletivas, analisar e destacar esse coengendramento entre os actantes humanos e não humanos torna-se essencial para a compreensão dos fenômenos que se revelam contemporaneamente.

Nos casos empíricos, o filme-documentário e as costureiras são efeitos de suas redes de relações, da mesma forma que o equipamento de projeção e a máquina de bordado, assim como ambas as cooperativas das quais esses e outros não humanos e humanos participam. A forma que encontramos para “mostrar a agência dos não humanos” foi evidenciar (por meio das descrições e análises de pesquisa) suas relações com os humanos e o quanto essas relações constituem um ao outro – o filme só se tornou filme quando pôde ser visto pelo público, o bordado só ganhou destaque depois de muito desgaste físico. A TAR ajuda, portanto, a atribuir as ações a um número maior de actantes, uma vez que a agência não está confinada nas pessoas, é distribuída. Todos esses elementos possuem capacidade de agir, e isso só é possível por intermédio de pesquisas que envolvam a participação do pesquisador no cotidiano de trabalho da organização, não para interferir de maneira intencional, mas para seguir suas ações e reações. A responsabilidade pelas ações fica dividida entre humanos e não humanos que recebem tratamento simétrico (LAW, 2003LAW, J. Disasters, A/symmetries and interferences . Centre for Science Studies. Lancaster: Lancaster University, 2003. Disponível em: <http://www.lancaster. ac.uk/fass/resources/sociology-online-papers/papers/law-disaster-asymmetriesand-interferences.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2013.
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), bem como a sociedade e a natureza (LATOUR, 2000LATOUR, B. Ciência em ação : como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Unesp, 2000.; 2001LATOUR, B. A esperança de pandora : ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. São Paulo: Edusc, 2001.; LATOUR; WOOLGAR, 1997LATOUR, B. On actor-network theory : a few clarifications. Página Eletrônica do Centre for Social Theory and Technology (CSTT). UK: Keele University, 1997.), os vencedores e os vencidos (LATOUR; WOOLGAR, 1997LATOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório : a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.; LAW, 1992LAW, J. Notes on the theory of the actor network : ordering, strategy and heterogeneity. Centre for Science Studies. Lancaster University, Lancaster LA1 4YN, 1992. Disponível em: <http://www.heterogeneities.net/publications/Law1992NotesOnTheTheoryOfTheActorNetwork.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2012.
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). Lembrando que a dicotomia entre sujeito e objeto dificulta entender os coletivos.

Vale sempre ressaltar, dotar os não humanos de capacidade de agência não significa retirar essa capacidade dos humanos, mas incluir mais elementos na análise dos complexos processos organizativos. Em nenhum dos relatos foi excluída ou menosprezada a agência humana. A felicidade e o cansaço, atributos que por muitos são considerados unicamente humanos, são perpassados por não humanos; são efeitos da rede heterogênea.

Não há como negar as diferenças, mas ao invés de tratar os actantes separadamente, sem qualquer associação, o pesquisador pode testemunhar a presença de híbridos (LATOUR, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; MORAES, 2004MORAES, M. A ciência como rede de atores: ressonâncias filosóficas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 11, n. 2, p. 321-33, maio/ago. 2004.). As pesquisas evidenciaram que trabalhadores, trabalhadoras e as materialidades, no curso da prática, não são elementos dissociados: os produtores, a plateia, o filme e o projetor; as costureiras, o bordado e a máquina. Knorr-Cetina (2001)KNORR-CETINA, K. Objectual practice. In: SCHATZKI, T. R.; KNORR-CETINA, K.; VON SAVIGNY, E. (Ed.). The practice turn in contemporary theory . London: Routledge, 2001.salienta que os objetos são caracterizados pela falta de completude em ser, de modo que o objeto só é objeto quando está em relação com o outro. Como Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. comenta, os não humanos deixam de ser meros intermediários para se tornarem mediadores da ação e adquirem essa característica por sua agência. Nas palavras de Law (2001, p. 1)LAW, J. Ordering and obduracy. Centre for Science Studies. Lancaster University, 2001. Disponível em: <http://www.lancaster.ac.uk/fass/resources/sociology-onlinepapers/papers/law-ordering-and-obduracy.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2013.
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, “não humanos tal como os humanos podem agir. A agência não diz respeito necessariamente às pessoas”. Tudo isso se reflete em extensos diários de campo com anotações detalhadas, o que faz com que o pesquisador, ao apresentar o campo de estudo, sempre consiga dar muitos detalhes sobre diversos aspectos e acontecimentos.

Diversas críticas feitas à Teoria Ator-Rede e sua abordagem sobre os não humanos advêm de pesquisas que privilegiam uma análise isolada, que trazem uma evidência excessiva aos não humanos em detrimento dos humanos. No movimento de trazer à tona o mundo natural e material, que por vezes são excluídos da análise sociológica, tais intentos reforçam as dicotomias entre esses actantes da rede, colocando ambos em lados opostos. Considerar simetricamente humanos e não humanos nas pesquisas em administração é justamente trazer para o foro de discussão e para a análise das cenas organizacionais esses elementos que, por vezes, são parcialmente invisíveis e desconsiderados. Discutir questões sobre agência está diretamente relacionado ao estabelecimento de conexões que a TAR preconiza. É nas conexões de elementos heterogêneos que a agência (de humanos e não humanos) torna-se “capturável” ao pesquisador.

Gostaríamos que a discussão presente neste artigo provocasse um olhar ampliado nas pesquisas do campo organizacional, de modo que os elementos humanos e não humanos fossem vistos não de forma separada/dicotomizada, e sim por sua aproximação e relação. É a partir da relação entre ambos que a agência ocorre. Salientamos que existem diferenças entre a noção de relação e de interação. Interagir é estar em contato, mas sem provocar algum tipo de perturbação (aqui no sentido de afetação), enquanto que o ato de relacionar transforma e afeta. Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. afirma que a TAR é criticada por apresentar características relativistas e empiristas, entretanto, o autor complementa dizendo que a Teoria Ator-Rede mais do que “relativista” deveria ser considerada como “relacionista”, por atentar-se aos arranjos relacionais que acontecem entre os actantes heterogêneos presentes na rede.

Nos relatos das situações extraídos dos estudos empíricos, foi possível observar as relações e a imbricação entre os actantes (CAMILLIS, 2011CAMILLIS, P. K. Por uma administração do cotidiano: um estudo ator-rede sobre autogestão. 2011. 237 f. Dissertação (Mestrado em Administração)–Programa de Pós-Graduação em Administração, Escola de Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.; BUSSULAR, 2012BUSSULAR, C. Z. Alinhavando os saberes na prática : o trabalho de um grupo de mulheres pela perspectiva da teoria ator-rede. 2012. 312 f. Dissertação (Mestrado em Administração)–Programa de Pós-Graduação em Administração, Escola de Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.). O projetor não estava sozinho, tampouco a máquina de bordado. Esses e outros materiais presentes nas narrativas faziam parte de uma rede heterogênea de relações e, por causa das falhas (tanto do projetor quanto da máquina de bordado), provocaram mudança no curso das ações; estimularam sensações, tensões e movimentação corporal, além do sentimento de frustração e, por fim, felicidade, pela desordem estabelecida na estreia do documentário, cuidadosamente arquitetado, como foi vivenciado no caso do projetor. A agência da materialidade nesses casos empíricos não existiria e nada significaria se os demais actantes não estivessem ali, como no exemplo do filme que seria exibido. Não existiria projetor sem apresentação, sem plateia; nem bordado sem a costureira. Os elementos não humanos só existem nessas condições no caso de estarem em relação com o outro, na sua incompletude, como salienta Knorr-Cetina (2001)KNORR-CETINA, K. Objectual practice. In: SCHATZKI, T. R.; KNORR-CETINA, K.; VON SAVIGNY, E. (Ed.). The practice turn in contemporary theory . London: Routledge, 2001..

Em contrapartida, é possível visualizar nos estudos citados a intensa movimentação causada por ambos os equipamentos nos actantes que estavam relacionando-se com eles. Os não humanos se tornam actantes e adquirem sentido nas relações, e é por meio delas que a agência se torna possível. Retomando Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005., a agência dos não humanos se torna mais visível em determinadas situações, sendo uma delas os momentos em que esses elementos provocam acidentes, quebram ou atingem outros actantes.

Dessa forma, não há como compreender o trabalho e os processos organizativos sem considerar a presença e a agência dos não humanos; sem considerar o operário com sua ferramenta ou um gerente sem seu notebook. Eles estão por toda a parte e nos tornamos híbridos, misturas e miscigenações ao estarmos em relação com aquilo que é diferente.

  • 1
    Não confundir essa colocação de Latour (2005)LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005. com o princípio da simetria generalizada descrito por Callon (1986)CALLON, M. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In: LAW, J. Power, action and belief : a new sociology of knowledge? London: Routledge, 1986. p. 196-223.. Esse princípio se refere à postura do observador que, em sua permanência em campo, deve atentar-se tanto para os elementos humanos quanto para os elementos não humanos em sua pesquisa. Fazer essa proposta não significa afirmar a igualdade entre eles. Pelo contrário, preserva-se ao longo da literatura da TAR a característica heterogênea e provisória entre os elementos da rede (LATOUR, 2005LATOUR, B. Reassembling the social : an introduction to actor-network theory. New York: Oxford Press University, 2005.).
  • 2
    Deixamos aqui a palavra “tradução”, respeitando a tradução da entrevista de Callon (2008)CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008.. Esse é, no entanto, um conceito crucial da TAR e preferimos abordar o termo em português como translação ao invés de tradução. Essa característica da TAR, em inglês, chama-se translation. O termo tradução, muitas vezes, representa a ideia de “preservação do original”. Para ilustrar essa expectativa, podemos citar o exemplo da ação de traduzir um livro em inglês para o português. O que espera o leitor? Que a tradução se aproxime ao máximo do original e que em sua leitura ele consiga entender o significado real que o autor quis transmitir em sua língua materna. Mesmo que algo se perca – dependendo de quem está operando a tradução e, aliás, existem muitas traduções literárias de má qualidade –, o objetivo não se altera: preservar as palavras e as ideias de determinado autor. Porém, a translação utilizada pela TAR conduz a uma ideia de movimento e, durante esse processo, os atores, com frequência, alteram o sentido das ideias originais transmitidas e que pertencem a outros elementos da rede (Vide: CALLON, 2008CALLON, M. Entrevista: dos estudos de laboratório aos estudos de coletivos heterogêneos, passando pelos gerenciamentos econômicos. Sociologias , Porto Alegre, ano 10, n. 19, p. 302-32, jan./jun. 2008.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2013
  • Aceito
    30 Jul 2015
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