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“Quem não se afirma não existe”: entrevista com Cristiane Sobral

Cristiane Sobral (1974) é atriz, escritora e poeta. Nasceu no Rio de Janeiro, mas reside em Brasília desde 1990. Foi a primeira atriz negra graduada em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília. Estreou na literatura em 2000, ao publicar textos nos Cadernos negros. Entre seus trabalhos estão os livros: Não vou mais lavar os pratos (2010) e Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz (2014), além do volume de contos Espelhos, miradouros, dialéticas da percepção (2011).

Qual a sua relação com a literatura?

Intensa, visceral, íntima. Literatura é ação, o verbo é carne. Muda a ordem sem fazer desordem.

Qual a importância de se dizer autor negro na delimitação desse espaço dentro do campo literário? O rótulo demarca ou aprisiona?

Em um país racista, quem não se afirma não existe, o rótulo dá visibilidade. Aliás, não considero a expressão rótulo. A literatura afro-brasileira precisa ser afirmada, porque, na literatura brasileira, as personagens negras e os temas apresentados raramente revelam a subjetividade, a complexidade, os conflitos além dos estereótipos do escravismo. Temos muita história para contar.

Como você vê o racismo representado tanto na literatura como nos demais espaços discursivos (mídia, escola, grupos sociais)?

A literatura, a mídia, a escola e os grupos sociais reproduzem em maior quantidade a ideologia hegemônica e os padrões canônicos europeus diante dos quais não cabemos.

Quais temas ultimamente te interessam, te instigam a escrever?

O jeito de ser e de viver da população negra. As tradições, o homem, a mulher, a infância, sua subjetividade, a sexualidade, o erotismo, a relação com as religiões de matriz africana e afro-brasileiras, as identidades de gênero, a maternidade, os paradoxos sociais, as possibilidades de ruptura dos moldes estabelecidos, a afetividade e o corpo negro.

Qual seria a importância de um ensino formal para a inclusão social das minorias?

Não há combate ao racismo sem educação étnico racial. Não é a questão da inclusão social das minorias, somos mais de 50% da população, as elites são minoritárias e majoritárias no sentido do poder e do acesso aos bens materiais. A discussão tem que ser feita em todos os grupos sociais, é preciso mexer nos moldes coloniais estruturantes da nação, romper e desafiar sentenças e valores do escravismo. Se a família falhou na educação para as diversidades, a escola não pode falhar.

Ainda é preciso se ater a uma cultura dominante para ganhar espaço na disputa de vozes dentro dos espaços discursivos na sociedade?

Não. Nos padrões da cultura dominante, não existimos. Creio nas rasuras, na ruptura de paradigmas. As periferias estão sacudindo e revitalizando os centros, lógico que o capitalismo tem suas bandeiras fincadas e a lógica do capital é avassaladora, caminhamos devagar, mas é preciso insistir na promoção de fissuras, impor outras opções estéticas, políticas e ideológicas.

Quais elementos na sua produção literária você vincula à sua experiência enquanto mulher negra?

A busca de construções humanizadas - para além dos estereótipos do escravismo - e a complexidade dos sujeitos. O negro e a negra falam de si, não são apresentados como simulacros do branco. Os personagens são vencedores, em que pesem as derrotas cotidianas e os fracassos humanos. As personagens não representam, elas são. Há uma consciência política, ideológica e estética e uma referência às tradições, à ancestralidade, à contemporaneidade e um protagonismo negro na contação de histórias na prosa e na poesia.

É possível desvincular a produção literária de um ato político?

No meu caso, como escritora, creio na estética literária afro-brasileira como um discurso consciente, um manifesto de sobrevivência e resistência do povo negro. Seria uma estética do discurso. Além do panfleto, essa linguagem tem um compromisso com o leitor, com os afetos, deseja afetar e ser afetada, é humanista por excelência.

Como se dá a dimensão e a experiência do corpo na sua produção literária?

Para pensar sobre o corpo negro, é preciso se lembrar dos corpos não negros. De que corpo negro estamos falando? O corpo negro surge como uma criação do colonizador, é um corpo desumano, desprovido de alma. Ora, o corpo é uma manifestação da consciência, não existe fora das relações com outros corpos. Um corpo se cria a partir da construção do outro, do que significa para o outro. A cultura patrimonial brasileira decreta que negros não têm a posse dos seus corpos, podem ser violentados, explorados, subalternizados. As relações sociais e a visão que o homem e a mulher negra têm de si mesmo nascem contaminadas por essa genética social.

Como você vê a literatura e sua influência num país com número não muito representativo de leitores?

A literatura ainda está inserida em um campo conservador, cristão, ocidental, masculino e branco. Um país que investe pouco em educação pública avança com dificuldade em todas as áreas. A literatura e o número inexpressivo de leitores refletem essa relação. Muitos estudantes saem das escolas sem saber ler. Não sabem ler livros, não conseguiram ler criticamente suas realidades e o mundo à sua volta. Quem não lê, não pensa, não pode reescrever destinos. Não adquirem hábitos de leitura, seus pais também não tiveram esses hábitos, e esse ciclo se perpetua. Por outro lado, o Brasil é um dos países com mais publicações a cada ano. Poucos leem muito e muitos não leem quase nada. Além disso, não sei se as pesquisas chegam à periferia, nos bairros pobres. A literatura é majoritariamente produzida pelas elites e para as elites.

É possível vislumbrar uma melhora na inserção no mercado editorial a partir das novas mídias, como as redes sociais?

Inserção no mercado editorial, não. Somos formiguinhas em guerra impossível contra os tubarões. Criação de outros mercados, sim. A questão não é procurar a entrada e sim encontrar outras saídas. O mercado editorial já tem as suas escolhas seculares de publicação, com raríssimas exceções.

Qual sua análise sobre o aumento nos mais diversos tipos de intolerância (religiosa, de gênero, étnico-racial, social) no país? Vivemos tempos mais violentos?

Os tempos não são mais violentos, entretanto, as vítimas de violência secular estão se empoderando, se graduando nas universidades, entrando em espaços anteriormente interditados. A intolerância é fruto da entrada desses grupos - pretos, pardos e pobres - em lugares exclusivos dos brancos conservadores, que têm medo desses grupos. O discurso de ódio tem raízes no discurso do medo da diferença, da dificuldade de dialogar com outras possibilidades de pensamento e de modo de vida. A tensão racial e social está aumentando. Estamos nos aeroportos, nas empresas, em vários lugares onde nossos antepassados não estiveram. Estamos subvertendo a lógica da subordinação das classes populares, galgando uma ascensão social antes considerada impossível. Os representantes das elites não querem negociar a divisão, lutam pela supremacia dos seus valores, do seu poderio econômico. Ironicamente, os cristãos de Cristo não querem dividir o pão. Consideram que alguns são mais humanos que outros, demonizam a diversidade.

Se fosse possível criar uma imagem do Brasil a partir dos escritores contemporâneos, qual imagem você acha que teríamos?

Uma imagem monocromática, que não é condigna com as realidades e as diversidades nacionais.

Quais são os autores, pensadores ou pessoas que influenciam sua obra?

Agostinho Neto, Paulina Chiziane, Lépold Senghor, Abdias do Nascimento, Mercedes Baptista, Solano Trindade, Conceição Evaristo, Guerreiro Ramos, Bell Hooks, Nelson Mandela, Cuti, Leda Maria Martins, Hilton Cobra, Fernanda Júlia, Luiza Bairros, Lima Barreto, Kátia Costa Santos e Angela Davis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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