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Os intelectuais e a organização da cultura

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Waldemar S. Pedreira Filho

Os intelectuais e a organização da cultura

Por Antonio Gramsci. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. 244 p.

Antes de iniciarmos os comentários sobre o livro de Gramsci em referência, é importante fazer algumas ressalvas acerca de certos elementos tidos como constantes em suas teorizações; ou seja, a noção de bloco histórico e o conceito de hegemonia, cujo conhecimento torna-se importante - haja visto as discussões desenvolvidas pelo autor ao longo de sua exposição.

Numerosos autores consideram que o conceito de bloco histórico é um dos elementos mais importantes do pensamento gramsciano. Este conceito deve ser considerado sob três pontos de vista, a saber:

1. O estudo das relações entre estrutura e superestrutura é o aspecto essencial da noção de bloco histórico. Ao concebê-lo, o autor não dá primazia a nenhum dos dois elementos. O ponto essencial das relações estrutura-superestrutura reside no estudo do vínculo que realiza sua unidade. Considerando-se um bloco histórico, ou seja, uma situação histórica concreta, pode-se distinguir: por um lado, uma estrutura social - as classes - que depende diretamente das relações de forças produtivas, e por outro,. uma superestrutura ideológica e política. A vinculação orgânica entre esses dois elementos produz certos grupos sociais cuja função é operar, não no nível econômico, mas no superestrutural: os intelectuais.

2. Um estudo estático deste tipo deve ser complementado por outro dinâmico; segundo Pizzorno,1 1 Apud Portelli, Huges. Gramsci y el bloque histórico. Buenos Aires, Siglo Vientiuno, 1974, p. 10. o bloco histórico deve ser considerado também como "o ponto de partida para a análise de como um sistema de valores culturais (o que Gramsci chama de ideologia) penetra, se expande, socializa e integra um sistema social".

3. Finalmente, é no quadro da análise do bloco histórico que Gramsci estuda como se quebra a hegemonia da classe dirigente, se constrói um novo sistema hegemônico e se cria um novo bloco histórico. É neste último aspecto que está mais ligada a ação política.

As superestruturas do bloco histórico formam uma totalidade complexa em cujo seio o autor distingue duas esferas essenciais: a sociedade civil ou direção cultural e moral da sociedade, por uma parte, e a sociedade política ou aparato do Estado e suas relações recíprocas, por outra. O conceito de sociedade civil faz-se importante na medida em que define a direção intelectual e moral de um sistema social. Gramsci toma esta noção de sociedade civil de Hegel e Marx, e lhe dá uma considerável importância.

Marx entende a noção hegeliana de sociedade civil como o conjunto das relações econômica e social em um período determinado; por outro lado, Gramsci a interpreta de modo radicalmente diferente, como o complexo da superestrutura ideológica; ou seja, a sociedade civil pertence ao momento superestrutural.

Em Gramsci, a sociedade civil pode ser considerada sob três aspectos complementares:

1. Como ideologia da classe dirigente, enquanto abarca todos os ramos de ideologia, desde a arte até as ciências, passando pela economia, o direito, etc.

2. Como concepção de mundo, difundida em todas as camadas sociais, as quais liga, deste modo à classe dirigente, enquanto se adapta a todos os grupos; daí seus diferentes graus qualitativos: filosofia, religião, senso comum, folclore.

3. Como direção ideológica da sociedade, articulando-se em três níveis essenciais: a ideologia propriamente dita, a "estrutura ideológica", ou seja, as organizações que criam e difundem a ideologia, e o "material ideológico", isto é, os instrumentos técnicos de difusão da ideologia (sistema escolar, meios de comunicação de massa, bibliotecas, etc).

Esta divisão funcional das duas esferas do momento superestrutural não corresponde à realidade prática. Ela deve unirse no quadro de uma unidade dialética na qual o consenso e a coerção sejam utilizados alternadamente. Não existe sistema social onde o consenso sirva de única base da hegemonia, nem Estado onde um mesmo grupo social possa manter sua dominação à base de pura coerção. A dominação fundada exclusivamente na força não pode ser senão provisória; expressa a crise do bloco histórico quando a classe dominante, não tendo mais a direção da ideologia, mantém-se artificialmente pela força. Portanto, sociedade civil e sociedade política estão em constante relação.

A análise do bloco histórico, como relação entre dois movimentos dicotômicos (estrutura - superestrutura e sociedade civil - sociedade política) mostra a importância da sociedade civil no seio do bloco histórico. Tal importância leva-nos a encontrar a tradução política desta noção: a hegemonia.

O aspecto essencial da hegemonia da classe dirigente reside no seu monopólio intelectual, ou seja, na atração que seus próprios representantes suscitam entre as outras camadas de intelectuais: "Os intelectuais da classe historicamente progressista exercem uma atração que acabaria por submeter como subordinados os intelectuais dos demais grupos sociais, e, portanto, chegam a criar um sistema de solidariedade entre todos os intelectuais, com vínculos de ordem psicológica".2 2 Id. ibid. p. 48. Esta atração termina criando um bloco ideológico que liga as camadas intelectuais aos representantes da classe dirigente. O autor ressalva que a primazia econômica da classe fundamental é condição necessária porém não suficiente para a formação de um bloco histórico; é necessário que a classe dirigente tenha uma verdadeira "política" para os intelectuais. A hegemonia de um centro diretor sobre os intelectuais se afirma através de duas linhas: a) uma concepção geral de vida, uma filosofia, que oferece aos aderentes uma dignidade intelectual e que os provê de um princípio de distinção e de um elemento de luta contra as velhas ideologias que dominam pela coerção; b) um programa escolar, um princípio educativo e pedagógico original, que interessam e dão unidade própria, em seu domínio técnico, à fração mais homogênea e numerosa dos intelectuais: os educadores, desde o mestre-escola aos professores universitários.

Como afirmamos antes, o problema da unidade do bloco é em realidade o da natureza do vínculo orgânico que relaciona estrutura e superestrutura e, no seio desta última, sociedade civil e sociedade política. Agora poderemos analisar o papel que desempenham os intelectuais no seio do bloco histórico, ou seja, tomando-se o objeto de que trata a obra em discussão, tentaremos fazer um exame do papel exercido pelos intelectuais na organização da cultura, visto serem as concepções provenientes do bloco histórico determinantes na formação das relações econômico-sociais e, portanto, dizerem respeito diretamente à cultura.

Gramsci inicia o trabalho inquirindo se os intelectuais constituem um grupo social independente, ou se cada grupo social possui uma categoria própria especializada de intelectuais. O problema é considerado complexo, dadas as várias formas que assumiu o processo histórico real de formação das diversas categorias de intelectuais. Assinala o autor que existem duas formas mais importantes. A primeira é a que cada grupo social cria para si uma forma orgânica, com uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não só no campo econômico, mas no social e político: o técnico da indústria, o cientista da economia política, da administração, o organizador de uma nova cultura, etc.

Pode-se observar que a mudança do bloco histórico corresponde a uma mudança na classe hegemônica e, como tal, um novo tipo de intelectual é formado; são os chamados intelectuais "orgânicos", dotados de características peculiares e especializações ligadas às necessidades da classe fundamental. Os intelectuais orgânicos do novo bloco histórico, especialmente os da classe dominante, opõemse aos intelectuais do antigo bloco histórico. Estes últimos, o autor os qualifica de "tradicionais", isto é, formados das diferentes camadas de intelectuais que existiam antes da chegada da nova classe fundamental que, para estabelecer sua hegemonia, deve absorvê-los ou suprimi-los.

Os intelectuais acreditam ser independentes, autônomos, revestidos de características próprias. Conforme Gramsci afirma, a organicidade da relação entre os intelectuais e a classe que estes representam não é mecânica: o intelectual goza de relativa autonomia com respeito à estrutura socioeconómica, e não é seu reflexo passivo. Esta autonomia é, em primeiro lugar, conseqüência da origem social dos intelectuais. Os grandes intelectuais, em especial, surgem diretamente da classe que representam; a grande maioria provém das classes auxiliares aliadas à classe hegemônica. A autonomia é, por outro lado, indispensável para o exercício total da direção cultural e política.

O intelectual mantém sua autonomia em relação à classe fundamental porque não evolui ao mesmo nível do bloco histórico. Sua função é exercer a direção ideológica e política de um sistema social e homogeneizar a classe que representa. É importante frisar a amplitude do termo intelectual; Gramsci afirma que todos os homens são intelectuais. Para a nossa análise, consideraremos intelectual aquele indivíduo que desempenha a função social de categoria profissional dos intelectuais; ou seja, o indivíduo que participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral e contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar.

Conforme observa o autor, o tipo de intelectual tradicional e vulgarizado é fornecido pelo literato, pelo filósofo, pelo artista, os quais acreditam ser os verdadeiros intelectuais. No mundo moderno, a educação técnica, estritamente ligada ao trabalho industrial, mesmo o mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual.

Neste sentido, o autor cita a sua experiência no semanário Ordine Nuovo, onde visava desenvolver certas formas de novo intelectualismo e determinar seus novos conceitos. O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador e "persuasor permanente".

Formam-se, assim, historicamente, categorias especializadas para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos os grupos sociais, mas especialmente em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante. Todo grupo social que se desenvolve no sentido do domínio luta pela assimilação e pela conquista "ideológica" dos intelectuais tradicionais.

Este grupo social dominante utiliza-se da escola como instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis. Por outro lado, afirma que a complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser medida peia quantidade de escolas especializadas e pela sua hierarquização.

Conforme discutimos anteriormente, a relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, mas é "mediatizada" em diversos graus por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas do qual os intelectuais são funcionários.

Os intelectuais do tipo urbano cresceram juntamente com a indústria e são ligados às suas alterações. A função desses intelectuais, conforme observa o autor, pode ser comparada à dos oficiais subalternos no exército: não possuem iniciativa autônoma para elaborarem os planos de construção e, em média geral, estes planos são padronizados. Os altos intelectuais urbanos confundem-se com o autêntico estado-maior industrial.

Os intelectuais do tipo rural são, em sua maior parte, "tradicionais", isto é, ligados à massa social camponesa e à pequena burguesia das cidades menores ainda não movimentada pelo sistema capitalista: este tipo de intelectual põe em contato a massa camponesa com o administrador estatal e local, e por esta razão possui uma grande função político-social, já que a mediação profissional dificilmente se separa da mediação política. Todo movimento orgânico das massas camponesas está ligado até certo ponto aos intelectuais e deles depende. Segundo constata o autor, o caso é diverso no que diz respeito aos intelectuais urbanos: os técnicos de fábrica não exercem nenhuma função política sobre suas massas instrumentais; por vezes, pode ocorrer que as massas instrumentais, pelo menos através de seus intelectuais orgânicos, exerçam uma influência política sobre os técnicos.

O conhecimento concreto aqui discutido é produto dos conceitos teóricos, isto é, que "dizem respeito às determinações ou objetos abstrato-formais", apresentados anteriormente (conceito de bloco histórico, de hegemonia e de intelectuais); e de conceitos empíricos, isto é, que "dizem respeito às determinações da singularidade dos objetos concretos", quer dizer, ao fato de "determinada formação social apresentar esta ou aquela configuração, determinados traços, determinadas disposições singulares, que a qualificam como existente",3 3 Althusser, L. Sobre o trabalho teórico. Lisboa, Editorial Presença, p. 57. conforme Gramsci apresenta na seção "Notas esparsas", que se ocupa da determinação da singularidade dos objetos concretos - análise da cultura italiana, enfocando o papel dos intelectuais na sua organização, além de estudos de outras culturas de alguns países da Europa, América e Ásia.

No segundo capítulo desta obra Gramsci desenvolve a idéia de que, com a modernização, as atividades práticas evoluíram para uma forma complexa; daí a tendência para a criação de escolas para cada especialização e, concomitantemente, a tendência para a criação de um grupo de intelectuais especialistas de nível mais elevado para ensinarem nestas escolas. Enfoca e discute a divisão da escola em clássica e profissional, e seu esquema racional burocratizado.

Além disso, Gramsci também observa que, segundo a tendência em desenvolvimento, cada atividade tenderá a criar para si uma escola especializada própria, do mesmo modo como cada atividade intelectual tende a criar círculos próprios de cultura que assumem a função de instituições pós-escolares, especializadas em organizar as condições nas quais seja possível manter-se a par dos progressos que ocorrem no seu próprio ramo científico.

O livro propõe um tipo de estudo da organização prática de escola unitária, isto é, escola de formação humanística de cultura geral.

Assim como no primeiro capítulo, nas "Notas esparsas" ele apresenta a base empírica na qual sustenta a teoria deste capítulo em toda a Europa, sob o nome "Problemas escolares e organização da cultura".

Na terceira seção deste livro é discutido o papel do jornalismo como uma instituição com objetivos, metas, problemas de mercado, concorrência que desempenham um papel importante na promoção da cultura, visto que esta função será sujeita a certas orientações que vão desde a linguagem que deve ser usada até o seu conteúdo ideológico dirigido a uma dada camada de população.

Todos estes conceitos, como afirmamos antes, foram baseados em realidades empíricas vividas pelo próprio autor; ou seja, a realidade italiana, especificamente, e a européia de um modo geral.

  • 1 Apud Portelli, Huges. Gramsci y el bloque histórico. Buenos Aires, Siglo Vientiuno, 1974, p. 10.
  • 3 Althusser, L. Sobre o trabalho teórico. Lisboa, Editorial Presença, p. 57.
  • 1
    Apud Portelli, Huges. Gramsci y el bloque histórico. Buenos Aires, Siglo Vientiuno, 1974, p. 10.
  • 2
    Id. ibid. p. 48.
  • 3
    Althusser, L. Sobre o trabalho teórico. Lisboa, Editorial Presença, p. 57.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 1977
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