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Distribuição de renda na América Latina e desenvolvimento

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Distribuição de renda na América Latina e desenvolvimento

Por Anibal Pinto. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976. 114 p.

Em concepção dialética da história, Antonio Gramsci afirma que "o passado é um conjunto vivo e morto". Creio que isto se aplica ao livro de Anibal Pinto surgido em 1967, cujo título original era La distribución del ingresso en América Latina. A presente reedição da Zahar foi traduzida da segunda edição argentina, de 1969 - a qual, na rolança do tempo, perdeu muito da originalidade inicial, ficando obsoleta em várias passagens, principalmente quando são utilizados dados censitários e/ou de levantamentos com o objetivo de respaldar várias teses arroladas.

Dividindo a obra em duas partes - Notas sobre a distribuição da renda e a estratégia da distribuição e concentração do progresso técnico e seus frutos no desenvolvimento latino-americano - o autor procura, na primeira, estudar os mecanismos específicos da distribuição da renda em função de um modelo equitativo, com a finalidade de garantir aos grupos sociais a certeza de que a captação de recursos econômicos e financeiros, acrescida da renda gerada, acaba por converter-se, numa segunda fase, em retorno em seu benefício. Este modelo equitativo é chamado por Anibal Pinto de "uma estratégia para a redistribuição".

Logo de saída, ele faz restrições à argumentação da política concentracionista de renda, base de acumulação de vários modelos de desenvolvimento latino-americanos, cuja idéia básica é que os países pobres, subdesenvolvidos, devem preocupar-se com a criação de riquezas e não com sua redistribuição, porque isso, no final das contas, significa "distribuir a miséria". Seu contra-ataque vem escorado em Richard Tawney que, pelos anos 30, em Equality, liquidou aquela espécie de argumento ao afirmar que não se busca a igualdade "dividindo em fragmentos as grandes rendas, mas assegurando que uma proporção crescente da riqueza que elas presentemente absorvem seja dedicada a propósitos de benefício coletivo".

Em seguida, o autor afirma que nos países latino-americanos a distribuição da renda é bem mais desigual na agricultura que nas atividades industriais, revelando como a concentração da propriedade dos fatores capital e terra possibilita que a renda gerada pelo processo produtivo flua às mãos dos proprietários. Identifica-se "um processo ou círculo de causas acumulativas" no qual os que têm alta renda contam com melhores oportunidades para recolher os conhecimentos que permitem manter ou aumentar essa renda. Além disso, quem está situado numa posição estratégica na estrutura comunitária tem a seu alcance um poderoso "capital de relações sociais" (segundo a terminologia de Bourdieu), uma variedade de portas abertas que, invariavelmente, trancam-se aos menos privilegiados.

Comparando a política redistributiva de renda adotada nos países centrais, desenvolvidos, com a dos países não-industrializados, periféricos, vê-se que a política posta em prática nos primeiros baseia-se quase que exclusivamente no manejo de instrumentos fiscais, tais como a tributação progressiva e as despesas sociais. E, também, que esta política não visa modificações na estrutura da propriedade, pelo menos diretamente. Já para os países periféricos, Anibal Pinto oferece algumas orientações com o intuito de reduzir o grau de concentração da propriedade, tais como:

a) a difusão do domínio sobre os Solos produtivos, isto é, a reforma agrária (não faz maiores comentários sobre a matéria);

b) a difusão do domínio sobre a propriedade de ativos produtivos em outros setores. As disposições anti monopólio e a distribuição de títulos ou ações entre o público em geral ou os trabalhadores das empresas seriam algumas medidas neste sentido;

c) a estatização de unidades econômicas de grande dimensão ou importância destacada, isto é , a ampliação da área de domínio público.

Mas adverte que "a ênfase relativa e as características específicas desses expedientes dependerão das considerações e realidades políticas de cada país, como também das circunstâncias existentes e de sua incidência sobre a distribuição da renda".

Na segunda parte - Concentração de progresso técnico e seus frutos no desenvolvimento latino-americano - o autor mostra a repetição, em escala nacional, da tendência já verificada em plano internacional a uma crescente desigualdade entre os países centrais e os que se colocam na periferia do desenvolvimento e dos negocios mundiais. Faz, ainda, um exame detalhado do problema da distribuição da renda nos países desenvolvidos e também nos de economia socialista, em que se encontram presentes, por vezes, os germes da desigualdade.

É endossada a conhecida tese cepalina de Prebisch, de 1949, sobre a retenção por parte dos países industrializados dos beneficios de sua crescente produtividade. Assim, "à medida que os centros retiveram integralmente o fruto do progresso técnico de sua indústria, os países da periferia transferiram a esses centros uma parte do fruto de sua própria produtividade". Segundo este raciocínio, seriam "pat'ses marginais" aqueles não-favorecidos na repartição dos resultados do progresso técnico. A partir dessa colocação ampla Anibal Pinto passa ao exame ligeiro da reprodução desta situação no âmbito interno das economias latino-americanas, uma vez que dentro de cada país, embora com características originais, surgem problemas similares entre setores e unidades que absorvem com ritmos diferentes o progresso técnico e também aproveitam em grau diverso seus rendimentos.

Nesta parte estuda-se, além do já mencionado, a distribuição da renda nas economias socialistas, bem como o contraste entre estas economias e as industrializadas com relação à origem "social" do progresso técnico e à absorção "privada". Comentando o caso russo, afirma o autor: "os socialistas trabalharam com a suposição inconsciente de que não haveria 'problema' de distribuição da renda numa comunidade de seu tipo". Mas não é isso o que ocorre (...), pois no Manual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS pode-se ler o seguinte: "o trabalhador que possui uma maior qualificação ou que é mais aplicado e dotado de iniciativas cria, numa unidade de tempo, sendo iguais as demais condições, maior quantidade de produtos. Isso significa, portanto, que o pagamento aos trabalhadores não pode ser igual. Este deve corresponder tanto à quantidade como à qualidade do trabalho. Em caso contrário, os operários não teriam estímulo para melhorar sua qualificação e a produtividade do trabalho". Assim, vê-se que o enfoque é estritamente "individual", no sentido de que toda a ênfase é colocada nas diferenças quanto à aptidão e interesse do operário, guardando a proposição um claro ranço stakanovista. Afirma o autor que "no modelo de desenvolvimento soviético, assim como no latino-americano (e ao contrário do capitalista clássico, inclusive do Japão), uma causa fundamental dos problemas apresentados reside em que o setor agrícola ou primário foi em geral 'passado por alto' na transformação industrial, continuando ali o foco do pólo subdesenvolvido". Considerando o setor agrícola como retrógrado conclui que "(...) o progresso técnico ainda não conseguiu penetrar em suas (dos países a que está se referindo) rudimentares estruturas".

Utilizando dados de 1961, Aníbal Pinto constata que o mercado de "massas" para as indústrias dinâmicas de consumo em geral se limita a uma reduzida fração da população. Dessa maneira "o grosso da procura efetiva se encontra entre os 5% dos receptores de rendas que possuem um rendimento médio de 1.300 dólares anuais ou mais que isso. Os 45% restantes que teriam entre 100 e 500 dólares anuais e o saldo de 50% de rendas menores, com uma média de 55 dólares, indiscutivelmente se encontram impossibilitados de destinar suas rendas a outrasdespesas que não sejam as mais vitais como o pão e a habitação". Portanto, realiza um diagnóstico crítico da economia latino-americana e do que foi o modelo industrial implantado em vários países - posteriormente batizado de "industrialização restritiva", uma vez que grandes contingentes populacionais ficariam à margem do consumo dos bens produzidos -, não procurando atribuir às massas um papel messiânico, o de um barril de pólvora prestes a botar pelos ares os regimes políticos vigentes. Salientamos este aspecto porque o livro foi produzido num período em que a maioria dos cientistas sociais destas plagas postulava a iminência explosiva das massas. O tempo mostraria que essas colocações eram apressadas e a explosão ocorrida ocasionou apenas danos materiais de pequena monta, não concretizando mudanças estruturais significativas. Isso pode ser verificado em Sociologia da sociologia latino-americana, de Octávio Ianni, que foi quem melhor dissecou a produção das ^.ciências sociais latino-americanas nos anos 60.

Em suma, o livro de Anibal Pinto perde vários rounds em sua luta contra o tempo, mas nem por isso deve deixar de ser lido. Ainda há brasas sob as cinzas, basta dar algumas sopradelas. Sua leitura pode ser completada com a coletânea lançada pela própria Zahar - que, digase de passagem, poderia ter cuidado melhor dessa segunda edição (bem como do preço) da obra de Anibal Pinto - intitulada A controvérsia sobre distribuição de renda, organizada por Tolipan e Tinelli.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Fev 1977
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