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Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964)

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Amélia Cohn

Souza, Maria do Carmo Campello. Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo, Alfa-Omega, 1976.

Dentre o relativamente grande número de trabalhos de cientistas sociais recentemente publicados sobre o Brasil contemporâneo, este assume particular importância, porque ao mesmo tempo em que é um trabalho rico em dados sobre a história brasileira pós-30, apresenta-nos uma análise rigorosa e inteligente do sistema partidário brasileiro de 45 a 64.

Victor Nunes Leal, no prefácio, já ressalta que a autora com sua inteligência crítica, lúcida e bem equipada, apresenta mais problemas e sugestões do que afirmativas doutorais, o que é afirmado repetidas vezes por Maria do Carmo. Daí a definição deste trabalho pelo prefaciador nos seguintes termos: "... todo o livro é basicamente uma discordância, mas não dogmática e sim crítica, apontando novos rumos de investigação, o que também pressupõe conclusões" (p. XIV).

A relevância deste trabalho está, pois, em que na sua tentativa de entender a dinâmica do sistema de representação política no Brasil, somos colocados diante de evidências de que a formação do sistema partidário brasileiro a partir de 1945 deu-se sob a tendência autoritária e centralizadora do Estado, sobretudo a partir de 1930, o que possibilitou um não-institucionalizaçãoda vida partidária no Brasil. Ora, isto representa a abertura de inúmeros campos de análise e a necessidade de aprofundamento de outros até então tidos como irrelevantes; além do fato, é claro, da necessidade de se repensar as interpretações mais tradicionalmente vigentes da história brasileira em que os partidos seriam expressão quase que somente de pressões provenientes da sociedade civil sobre o Estado.

Segundo suas próprias palavras, portanto, seu objetivo central é o de "destacar o peso condicionante que a expansão acentuadamente burocrática do Estado brasileiro exerceu sobre o sistema partidário criado em 1945", sem com isso "engrossar as fileiras daqueles que viam e vêem o processo político-partidario brasileiro sob um prisma de fatalidade, destacando sua inviabilidade congênita e definitiva" (p. XXIV). Para o que ressalta a necessidade de um estudo das relações entre o sistema partidário e o Estado - este concebido como organização de governo (p. 27), questionando "a possibilidade de se analisar a função de representação partidária sem o conhecimento do padrão de governo e, portanto, a de se compreender o 'amorfismo' partidário brasileiro sem nos indagarmos sobre o efeito diluidor exercido pelo Estado" (p. 42).

Definido este ponto, no segundo capítulo a autora expõe diferentes perspectivas de análise do sistema partidário, discutindo conceitos como o do próprio "sistema partidário", "institucionalização de organizações", "representatividade", "autonomia"' etc, sem cair no formalismo á que esse tipo de análise freqüentemente é levado. E isso porque não perde a visão da complexidade dos mecanismos políticos, bem como das suas inúmeras manifestações e repercussões, por vezes envolvendo todos os níveis da realidade social, bem como nunca se afasta da concepção de que a dinâmica do sistema partidário brasileiro só pode ser entendida na análise concreta da vida política brasileira, tendo sempre em mente que "o universo de decisões a ser estudado em determinado período é extremamente amplo e heterogêneo" (p. 53), não tendo portanto á política um locus restrito, embora um campo bem definido, nem sendo passível de leis, mas de tendências. E é a partir daí que conceitos e sua utilização como o de "arenas decisórias" não se tornam meramente formais, ao mesmo tempo que passa a carecer de peso a concepção de partido como representante de uma classe, ou frações de classe bem nitidamente identificáveis, ganhando significado o problema nuclear do desenvolvimento político como sendo "a institucionalização de um sistema partidário - mesmo que isto se dê de maneira camuflada, como a institucionalização de facções e normas de convivência dentro de um partido único ou dominante, de modo a assegurar tanto a estabilidade e efetividade da função de governar quanto o vigor e a autenticidade da função de representar interesses diversos" (p. 50). A autora preocupa-se pois em deslindar a dinâmica política brasileira de 30 a 64 - as idas e vindas no processo de tomada de decisões - em suas conexões com o aparelho estatal, com as organizações político-partidarias, com os sistemas de representação; e com as mudanças socio-econômicas-ocorridas no período.

A seguir, temos a análise do sistema partidário brasileiro a partir de 1945, mostrando que "Se em 1945 foi deposto o Pres. Vargas, na liderança do processo de redemocratização do País, manteve-se a mesma elite política que comandava o regime deposto e sob sua direção promoveram-se as primeiras eleições nacionais e a formulação da Carta Constitucional de 1946 que deixou praticamente intacto, em pontos cruciais, o arcabouço institucional do Estado Novo" (p. 64), explicando que "a timidez, portanto, do liberalismo dos anos 30, especialmente o campo que cedeu ao pensamento autoritário na questão dos partidários políticos, é entendida perfeitamente se atentarmos para o fato de viver ele, no contexto brasileiro, as tensões de passagem da política de 'notáveis' para a política de massas, da evolução dos partidos meramente representativos de seções da classe dominante e dos estratos altos da sociedade para as grandes organizações partidárias fundadas em interesses socio-econômicos" (p. 65). E mostra a seguir, através do estudo da centralização do poder - "e sobretudo dos mecanismos concretos acionados nessa direção" - como o espaço organizacional e decisório foi ocupado por agências burocrático-estatais (cap. IV). Para o que faz uma análise das interventorias do Dasp, dos institutos, autarquias, grupos técnicos e Forças Armadas em que ficam evidenciados tanto o Estado Novo como a I República, como um sistema elitista, somente com um modus operandi diverso - esta, baseada no princípio da autonomia estadual e no mecanismo da política dos governadores, e aquele procurando a unificação e implantando extensa rede de órgãos burocráticos, ao mesmo tempo em que suspendia o funcionamento de todas as organizações partidárias. E salienta que mais uma vez na formação concreta de um novo padrão institucional houve uma recriação do padrão cooptativo, até então dominante em nossa formação histórica, "dando-lhe novas e alentadas possibilidades" (p. 104).

Caminhando no tempo, a autora mostra no capítulo V (Do Estado Novo ao regime de 1946) "de que maneira se entrelaçam e interagem o legado e as novas criações: que contradições e incongruências resultam de sua associação. O advento do pluralismo partidário, das eleições diretas, e o retorno à separação formal dos poderes do Estado, determinados pela Constituição de 1946, foram superpostos ou acoplados à estrutura anterior, marcada por um sistema de interventorias, por um arcabouço sindical cooperativista, pela presença de uma burocracia estatal detentora de importante capacidade decisória, para não mencionar a plena vigência, na quadra histórica a que nos referimos, de uma ideologia autoritária de Estado" (p. 105-6). É neste capítulo que encontramos uma análise detalhada da constituição dos partidos, da forma de serem registrados, bem como sobre a representação, o mecanismo das sobras, o alistamento ex-officio, e finalmente uma discussão de um dos problemas mais analisados e polêmicos nos estudos desse período, a saber, o da contraposição de um Legislativo conservador a um Executivo populista e progressista.

Por fim, na terceira parte, encontramos a evolução e crise do sistema partidário. Com base sobretudo nos estudos de Gláucio A. D. Soares e Simon Schwartzman sobre os dados eleitorais dos grandes partidos, e negando a tese de o declínio da força eleitoral dos grandes partidos conservadores (UDN e PSD) ser o sintoma da crise, o ponto de partida de Maria do Carmo é o de que ao invés de levarem necessariamente a uma crise institucional, o declínio desses grandes partidos e a conseqüente dispersão eleitoral (crescimento dos pequenos partidos, aumentio da votação por alianças, aumento da proporção de votos nulos e brancos, etc.) levariam, a médio prazo, a um processo de realinhamento do sistema partidário. E mostra, por exemplo, como o declínio da força desses grandes partidos conduzia-os a uma dependência crescente das regiões menos desenvolvidas, e a uma necessidade de aumento de representatividade do interior, ocorrendo paralelamente um processo de aumento de força dos partidos reformistas no nível legislativo, enquanto que no nível do Executivo ocorre a dependência de uma análise do comportamento global não mais de eleitorados localizados, mas do eleitorado nacional. O que a leva a retomar o problema do descompasso do Congresso com relação às mudanças socioeconômicas, e portanto de um Executivo reformista e de um Legislativo conservador agregando agora duas considerações: 1) a de que essa tese não é incompatível com o reconhecimento de que um processo de realinhamento estava em curso; e 2) "situado o caráter crítico do antagonismo institucional não tanto na diferença de orientações em si, mas nos diferentes tempos os quais a mudança socio-econômica incidia sobre a formação dos dois poderes" (p. 153).

E chega-se então ao ponto nevrálgico de seu trabalho: a análise do surgimento histórico dos partidos, de seu comportamento nas eleições do período estudado que vem corroborar a tese da autora de que "o caráter crítico da conjuntura final do período estudado decorreu do simultâneo fortalecimento do Estado e do sistema partidário" (p. 167). E o círculo se fecha quando fica então evidenciada a sua tese central, já exposta na introdução à obra: a de que "apesar dos condicionamentos prévios que lhe marcaram a origem, o sistema partidário foi-se transformando durante o período, sob o influxo das transformações socioeconômicas, notadamente dos processos de industrialização e urbanização. Coexistiam, assim, (...) tendências à desagregação, enraizadas em sua inadequada institucionalização como forma de representar interesses e de organizar o governo, e tendências ao fortalecimento, na medida em que iam realinhando e organizando suas bases de apoio" (p. XXIV).

A análise de Maria do Carmo C. de Souza leva-nos a reequacionar toda a história brasileira pós-45, ao mesmo tempo em que, sem cair num formalismo nem numa conceituação estrita de Estado e sociedade civil, desvenda os intrincados mecanismos de relacionamento das várias esferas do social, fugindo a toda e qualquer ortodoxia metodológica prévia. Nesse sentido, a contribuição de seu trabalho está situada sobretudo em dois níveis: num, o de ser uma das análises mais fecundas da história da política brasileira recente, e no outro, o de ser um exemplo do bom uso da metodologia em pesquisas sociais. Sem falar, é claro, nos subsídios que apresenta e nas perspectivas que abre para o estudo do Brasil contemporâneo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 1977
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