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A base de uma administração autodeterminada: o diagnóstico emancipador

ARTIGOS

A base de uma administração autodeterminada: o diagnóstico emancipador

R. M. Garcia

Chefe do Departamento de Administração Geral de Recursos Humanos (ADM) - EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO

Se, por qualquer motivo, um entusiasta da quantificação tivesse decidido empreender uma análise de conteúdo das principais contribuições na área da teoria das organizações, sem dúvida alguma um padrão fundamental teria sido encontrado. Em outras palavras, seria possível constatar que esta teoria está inteiramente cativa de um específico modo de raciocínio centrado exclusivamente em uma racionalidade funcional ou instrumental. Hobbes, que definiu razão como sendo "...nada mais do que cálculo, isto é, adição e subtração, de conseqüências...", é talvez a figura mais proeminente deste modo de pensar.1 1 Hobbes, Thomas. Leviathan. Collier Books, 1973. p. 41.

Deixando-se aprisionar por este tipo de lógica, os teóricos contemporâneos da teoria das organizações freqüentemente incidem em um erro, qual seja, o de apreender os fatos da vida diária apenas pelas suas aparências. Assim procedendo, estes teóricos tornam-se inteiramente subservientes de interesses imediatos e utilitários. Eles tornam-se meros repetidores, isto é, pensam por pensamentos feitos, sentem por sentimentos feitos, e querem por vontades feitas, como diria Péguy.2 2 Veja Guerreiro Ramos. Introdução critica à sociologia brasileira. Editorial Andes, 1957. p. 79.

No que diz respeito às chamadas disciplinas práticas, como, por exemplo, diagnóstico organizacional, o atual estado de coisas mostra-se bem pior. Afinal de contas, ninguém espera que administradores sejam versados em questões de filosofia. Apenas esta falta de conhecimento pode explicar, talvez, grande número de afirmações profundamente equivocadas que são encontradas em livros-textos sobre organizações. Tomemos, à guisa de exemplo, a seguinte afirmação: "uma organização(...) é como qualquer outro sistema vivo. Portanto, modos sistemáticos de estudo e avaliação de outros sistemas podem ser extrapolados para o estudo das organizações".3 3 Levinson, Harry. Organizational diagnosis. Harvard University Press, 1972. p. X.

Qual seria, portanto, a mensagem que o autor gostaria de transmitir? Que uma instituição como, por exemplo, a Fundação Getúlio Vargas poderia ser melhor entendida se estudássemos, digamos, uma tiririca? Torna-se óbvia a insuficiência de qualquer explicação que assinalasse apenas as relações isomórficas que possam existir entre uma instituição e um vegetal. Qualquer aprendiz, seja das ciências biológicas ou das ciências sociais, sabe que, quando se comparam sistemas de diferentes ordens de complexidade, as diferenças existentes são, de longe, mais importantes que as similaridades encontradas. E isto traz a necessidade de se desenvolverem métodos de estudo que sejam adequados a cada nível de complexidade. Uma instituição como a FGV não é dotada dos mesmos processos homeostáticos de uma tiririca. Uma organização não é uma entidade de valor neutro. Em qualquer organização existem processos de manutenção e configurações de poder que são qualitativamente distintos daqueles de uma planta. Ninguém ousaria atribuir a historicidade específica dos grupamentos humanos a uma planta. Muito menos ainda, ninguém esperaria, de uma planta, uma conduta ética.

O perigo potencial de qualquer pensamento analógico é, portanto, perder de vista a singularidade dos assuntos humanos. Desafortunadamente, as formas conhecidas de vida humana associada não exibem as relações simbióticas do mundo das plantas. Muito pelo contrário, o que encontramos no mundo dos homens é exploração, desespero e sofrimento.

Desta maneira, poder-se-ia definir o presente estado da teoria das organizações como sendo o de urna internalização ingênua ou inconsciente do paradigma hobbesiano ou funcional, o que explica, sem qualquer sombra de dúvida, aqueles padrões distorcidos de linguagem e conceituação. Outros exemplos certamente existem, como o de definir administração (e isto, é claro, é feito sem o mínimo constrangimento) como sendo o processo de conseguir-coisas-através-de-pessoas.

Em virtude disto, decidimos empreender um diagnóstico organizacional, onde os requisitos funcionais fossem claramente subordinados a certos valores humanos, ou estivessem explicitamente articulados a um conjunto de princípios éticos.

Para realizar este empreendimento, um exercício de auto-esclarecimento era necessário. O primeiro passo foi o de passar a ver os participantes de uma organização como seres humanos autodeterminados, capazes, portanto, de consciente e ativamente participarem na transformação do mundo em que vivem. O segundo passo foi o de encontrar uma definição de administração que atendesse ao critério de autodeterminação. O terceiro passo, a criação de recursos estratégicos ou instrumentos de autodeterminação, que são bases de apoio para a viabilização de uma administração emancipadora.

Assim, definiu-se administração como a descoberta e implementação de recursos estratégicos a serem mobilizados pelos participantes de uma organização. Nesse sentido, administração é entendida como o processo social de revelação e realização de um curso de ação estratégica, seja a nível macrossocial, seja a nível organizacional. Administrar é, portanto, tomar decisões críticas em relação a possíveis cursos de ação, isto é, decidir entre possibilidades objetivas emergentes.4 4 Guerreiro Ramos. Administração e estratégia do desenvolvimento. Fundação Getúlio Vargas, 1966. p. 205-6. Como já tinha sido assinalado muitos anos atrás por Confúcio, "administrar é definir".

Contudo, na tentativa de definição daqueles processos emergentes (ou melhor dizendo, de desvendamento da realidade), não basta ser sensível apenas àquelas oportunidades colocadas diante de nós por um determinado campo de possibilidades objetivas. A experiência nos tem demonstrado que as possibilidades contidas em uma certa realidade são sempre maiores do que aquelas normalmente detectadas por qualquer processo formal de investigação. É sempre possível encontrar meios não previstos, tais como a possibilidade inédita.5 5 Veja Freire, Paulo. Uma educação para a liberdade. Editora Textos Marginais, 1974; Kosik, Karel. Dialética do concreto. Paz e Terra, 1976; M. Sweezy, Paul. Teoria do desenvolvimento capitalista. Zahar, 1976. p. 62-8. E seria precisamente isto que torna a criatividade possível. Ou, como diria Graciliano Ramos: "...quando nós assumimos voluntariamente o que nos condiciona, transformamos a estreiteza em profundidade".6 6 Citado por Guerreiro Ramos. Introdução crítica à sociologia brasileira, op. cit. p. 33.

Esta linha de raciocínio nos diz que, ao lidarmos com possibilidades objetivas, isto é, os limites impostos por uma dada situação, devemos considerar o seguinte: as situações-limite não são as barreiras do real onde todas as possibilidades começam; "elas não são a fronteira que separa o ser do nada, mas a fronteira que separa o ser de ser-mais".7 7 Pinto, Álvaro Vieira. Consciência e realidade nacional. Apud: Freire, Paulo. Pedagogy of the oppressed. The Seabury Press, 1970. p. 89.

Estas duas noções, ser e ser-mais, definem com grande propriedade nosso objetivo. Não é nossa intenção aplicar métodos de diagnóstico, que acabam por paralizar a realidade em um certo momento; que seriam capazes de captar apenas situações domesticadas e dóceis personagens. Bem ao contrário, nós estamos interessados na descoberta daqueles processos que permitiriam às pessoas moverem-se de um estado de ser para um estado de ser-mais. Neste movimento, o que Paulo Freire vem chamando de conscientização desempenha um papel primordial.8 8 Veja Freire, Paulo. Teoria y prática de la libertad. In: El Mensa je de Paulo Freire. Textos selecionados pelo Inodep, Editorial Marsiega, Madrid.

Assim entendida, conscientização passa a ser um teste para a realidade; quanto maior ela é, mais realidade é revelada e, conseqüentemente, mais nos tornamos capazes de transformar estreiteza em profundidade. Note-se que conscientização não significa estar separado da realidade, assumindo uma posição falsamente intelectual. A verdadeira conscientização não pode existir sem uma operação criadora sobre a realidade, ou seja, sem uma atividade de ação-reflexão, constante e dinâmica.9 9 Teoria y prática de la libertad. op. cit. p. 36.

Neste sentido, os processos de conscientização não são baseados, de um lado, no mundo e, de outro, na consciência em si mesma. Ao contrário, esses processos implicam a noção de consciência-mundo, o que significaria, em outras palavras, que quando acontece alguém poluir um lago é porque a sua consciência já está também poluída.

Pelo que temos discutido até agora, torna-se claro que não poderíamos aceitar diagnósticos de organizações ou instituições que tivessem por base metodológica o funcionalismo, o operacionalismo ou o empiricismo abstrato (o apêndice I apêndice I explicita melhor essa posição teórica).

A aplicação dos métodos de conscientização aos mais variados tipos de organizações está sendo chamada crítica institucional e criatividade coletiva.10 10 Seguier, Michel. Crítica institucional y creatividad colectiva. Paris, Inodep, 1976. É nossa intenção lidar com as características básicas desse método. A bem da verdade, diga-se que o presente artigo, além de experiências pessoais e da literatura citada, baseou-se ostensivamente no trabalho de uma equipe multidisciplinar de pesquisadores (Instituto Inodep, Paris), que foi vividamente documentado por Michel Seguier em seu livro Crítica institucional e criatividade coletiva. Como o presente artigo, na sua parte final, apoiou-se quase que exclusivamente no mencionado livro, hesitamos, a princípio, em publicá-lo porque gostaríamos de ter acesso às outras publicações do mencionado instituto e também a outras fontes de informação. Desafortunadamente, não foi possível encontrar essa bibliografia adicional. Por outro lado, fatos da vida diária demonstraram-nos que o material já recolhido poderia ser de grande valia - como ponto de partida - na análise e critica de organizações ou instituições. Assim, em virtude do apelo existencial de coisas muito caras que estavam ocorrendo à minha volta, decidi dar a minha cota de contribuição através da divulgação do presente material.

É importante, portanto, enfatizar, uma vez mais, que o presente trabalho não é um diagnóstico organizacional a la mode. Ele é, antes de mais nada, um exercício de auto-esclarecimento, ou melhor, uma introdução ao diagnóstico emancipador, à avaliação criadora e autogestão. Ou ainda, ele é um documento sobre a prática de ser-mais.

2. ALGUNS PRINCÍPIOS ÉTICOS DE UM DIAGNÓSTICO EMANCIPADOR

Como foi assinalado por Paulo Freire, os comprometidos com uma pedagogia emancipadora devem promover um processo de conscientização que deve ser, ao mesmo tempo, um ato de criação, capaz de gerar outros atos de criação, e um veículo educacional no qual as pessoas não sejam tratadas como seres passivos ou como meros objetos.11 11 Freire, Paulo. Teoria y prática de la libertad, op. cit. p. 57-8. Um diagnóstico emancipador trata os membos de uma organização como seres autodeterminados, isto é, sujeitos capazes de criticamente desenvolverem suas próprias atividades e seus métodos de trabalho.

Nesta perspectiva, um diagnóstico organizacional, que visasse a transformação emancipadora de relações sociais passivas e acríticas em relações autodeterminadas e realizadoras, deveria considerar a seguinte pauta mínima de princípios éticos:

1. O diagnóstico emancipador está sempre questionando seu próprio modo de existência, presença e tipos de intervenção.

2. O diagnóstico emancipador não considera apenas a esfera dos processos subjetivos de conscientização, mas, antes de tudo, assume que as formas atuais de vida humana associada têm um conteúdo político-social.

3. O diagnóstico emancipador é apenas um primeiro passo, um veículo auxiliar, um catalisador no processo de ajudar organizações e grupos humanos a confrontarem a totalidade e complexidade de seus problemas. É, também, um elemento de apoio para o enriquecimento das capacidades estratégicas de instituições, desde que estas estejam engajadas na busca de soluções específicas e criadoras.

4. O diagnóstico emancipador rejeita o funcionalismo, operacionalismo, pragmatismo e empiricismo abstrato. Estes métodos de análise (mais correto seria dizer: essas filosofías) ideologicamente tratam as organizações como se fossem entidades de valor neutro e, como conseqüência, acabam por conduzir à seguinte situação:

a) ao nível operacional, sustentam que seria suficiente para cada indivíduo isolado ser mais eficiente, pois a eficiência organizacional seria assim obtida. Ou então, o que vem a ser o mesmo, definem eficiência organizacional como um agregado das eficiências individuais, desconsiderando, portanto, as ligações sinergísticas que prendem esses indivíduos a outros membros da organização. A realidade, deste modo, deixa de ser organizada e estruturada e passa a ser uma simples pilha ou agregado de elementos independentes;12 12 Um exemplo típico, onde a premissa de agregação é utilizada, pode ser encontrado em Hesketh, José Luiz, Ph. D. Diagnóstico organizacional. Petrópolis, Vozes, 1978. Aqui, na introdução (p. 13), o desempenho organizacional (d) é definido como "...a somatória dos diversos desempenhos individuais dos membros da organização (di)", segundo a expressão:

b) ao nível dos valores sociais, os métodos funcionalistas ou empiricistas prescrevem cegamente uma superadaptação do individuo ao seu meio-ambiente, desconsiderando completamente as projeções reais dele como um ser humano autodeterminado que, , através de sua ação criadora, é capaz de participar na transformação de seu mundo.

5. Assim, e levando-se em consideração os princípios anteriores, o diagnóstico emancipador rejeita as seguintes práticas comuns:

a) a de ajustar indivíduos ou grupos a sistemas ou organizações, que são aprioristicamente considerados em estado constante de equilíbrio (ou steady state permanente);

b) a de retificar condutas pessoais que são gratuitamente rotuladas de transgressoras por grupos dominantes;

c) a de trabalhar apenas ao nivel das técnicas e dos métodos (o que, como todos sabem, é ditado por qualquer doutrina tecnocrática), sem uma análise cuidadosa dos conteúdos de valor envolvidos em uma dada situação organizacional.

6. O diagnóstico emancipador rejeita certas versões falsificadas e anglo-sáxãs de conscientização, que só servem para promover a regressão de complexas realidades políticas a simples problemas psicológicos ou pessoais. Esta posição maquiavélica tende a ver as realidades políticas como se fossem entidades separadas, bem distantes dos problemas de relacionamento pessoal e interpessoal.

7. O diagnóstico emancipador afirma qué é simplório, artificial e irresponsável permanecer na posição de se analisarem as organizações como um indivíduo de fora, evitando-se, deste modo, envolver-sé com problemas reais. Sustenta, também, que é incorreto pregar uma destruição acrítica, a priori, e sistemática, de instituições; promover a crítica fácil e gratuita; o desespero; e práticas tresloucadas.

8. Contrário a certas interpretações funcionalistas e maniqueístas, o diagnóstico emancipador preocupa-se em não estimular processos de transformação que acabem por causar um vácuo institucional, o qual, geralmente, passa a ser preenchido por estruturas de poder dotadas de maior força alienante.

9. O diagnóstico emancipador rejeita a prática do radicalismo verbal. Não se pode pretender que alguém possa mudar o status quo de uma organização ou criar novas formas de vida humana associada apenas pelo emprego de slogans ou chavões. As palavras devem ser não só esclarecedoras como também emancipadoras.

10. O diagnóstico emancipador valoriza a autodiagnose, a auto-avaliação e a autogestão. Para nós, a atualidade e possibilidade real da autogestão estão objetivamente situadas naquela esfera de liberdade que nos permite rejeitar condições mutiladoras, e que, através do papel crítico da consciência do homem, nos permite agir como seres humanos autodeterminados.

3. UMA SEGUNDA DEFINIÇÃO ÉTICA: QUEM É O CLIENTE?

Do mesmo modo que medicina se faz em estreito contato com o paciente, o diagnóstico administrativo dever-se-ia fazer no embate diário da vida das organizações. O refúgio da vida acadêmica ou o envolvimento com as chamadas pesquisas científicas são importantes, à medida que possam ampliar a nossa compreensão e servir de apoio aos processos e atividades administrativas essenciais. Se isto for verdadeiro, para realizarmos algo de realmente significativo tomar-se-ia indispensável ter acesso a algum tipo de organização. Neste sentido, tomar-se-ia crucial a definição de quem é o beneficiário de nossos serviços técnicos - quem é o cliente? No caso do médico, esta resposta é evidente e imediata, pois existe um valor mais alto como o de salvar vidas humanas. No caso do analista de organizações, a situação é bem mais delicada; este profissional tem de lidar com vários seres humanos, vários grupos sociais, interesses adquiridos, e diversas configurações de poder. Não existe, neste caso, um valor tão indiscutivelmente claro como o de salvar vidas humanas.

Neste contexto, o problema de se definir uma ética profissional, em trabalhos de diagnóstico organizacional ou consultoria administrativa, assume a maior importância. Na prática, o que certos analistas têm feito é atuar como assistentes de diretorias, isto é, sob o pretexto de realizarem uma pesquisa científica, extraem informações de vários setores subalternos e, incontinenti, passam esses dados aos altos escalões da organização.13 13 De nada adianta a justificativa de que os dados são globais, pois, no contexto da organização, certas respostas são facilmente identificáveis. Outro ponto a ser considerado é o da obrigatoriedade de resposta, em virtude dos vínculos funcionais ou hierárquicos. Tal procedimento seria mais apropriado a um especialista em informações do que a um pesquisador científico.

A solução parcial para este dilema foi encontrada, por volta de 1950, por um grupo de pesquisadores do Instituto Tavistock, Inglaterra, em um clássico trabalho de consultoria e pesquisa que ficou conhecido pelo nome de projeto Glacier.14 14 Para maiores detalhes sobre o projeto Glacier, veja os números de 1950 da revista Human Relations, Londres. Pela primeira vez, foram estabelecidos novos padrões na relação existente entre análise administrativa, ou trabalhos de consultoria, e os interesses da organização. Chegou-se à conclusão de que o cliente não era mais o presidente da organização ou qualquer outra pessoa que tivesse tido a iniciativa de contactar os analistas. Foram rejeitadas, também, fórmulas abstratas e idealistas, tais como "nosso cliente é a organização inteira" ou "nós trabalhamos para o bem de todos os membros".

A julgar-se pela literatura divulgada, os pesquisadores do Tavistock, quando contactados por algum interessado, apresentavam as suas idéias sobre intervenção planejada e pediam a constituição de um grupo de trabalho, representativo dos vários segmentos da organização.

Como foi assinalado por E. Jaques, os analistas do Tavistock "...são responsáveis perante o grupo de trabalho e a ele prestam contas".15 15 Jaques, Elliott. Studies in the social development of an industrial community (The Glacier Project). Human Relations, 3 (3):225, 1950. Assim, o grupo de trabalho, uma entidade bem visualizável e tangível, passa a ser o cliente.

A solução encontrada pelos pesquisadores do Tavistock, sem dúvida alguma bem engenhosa, para o seu tempo, apresenta, não obstante, algumas limitações. Na prática, o grupo de trabalho torna-se uma unidade de coleta de dados e um meio de implementação, ou melhor, uma unidade de apoio (ou suporte) para a ação dos analistas. Não é exigido do grupo de trabalho um esforço de apreensão e interpretação das suas condições básicas de vida. Como tal, busca, criatividade, engenhosidade, características indispensáveis a um verdadeiro trabalho de grupo, não são consideradas.16 16 Veja o nosso artigo Abordagem sócio-técnica: um rápido balanço. EAESP/FGV, mimeogr. 1979. Assim sendo, o grupo de trabalho acaba funcionando sob a tutela de uma dada configuração de poder e de acordo com as premissas funcionais, concedidas pelos analistas. Deste modo, não há nenhuma decodificação da realidade. Não há praxis de ação-reflexão. Não há processos de denúncia-proposta. E, assim, não há uma real conscientização e, como conseqüência, não há criatividade coletiva.

A solução imaginada pelos analistas do Tavistock, sem dúvida alguma, de longe superior às práticas correntes de desenvolvimento organizacional, choca-se com alguns dos princípios éticos estabelecidos anteriormente. Registraríamos, apenas, o conflito com os seguintes itens: de 1 a 6; 8 e 10. Por este motivo, essa solução, a despeito do seu charme e elegância, não pôde ser aceita por nós.

Foi Paulo Freire, juntamente com um grupo de pesquisadores do Inodep, que apontou na direção de uma possível análise emancipadora. O que ele chama pedagogia emancipadora é, fundamentalmente, um diálogo crítico dotado de uma lógica interna própria. Em benefício de uma simplificação didática, poderíamos distinguir três instâncias de um único e articulado movimento, que seriam: expressão e descrição da realidade; crítica e criatividade.

O primeiro momento caracteriza-se pela delimitação de um universo de conceitos e temas. Nesta fase, o diagnóstico pode dirigir sua atenção para palavras carregadas de conteúdos existenciais, para as expressões típicas de um grupo social, para padrões distorcidos de conceituação e linguagem, para as típicas descrições de situações existenciais ou de trabalho, e para qualquer outro tema que seja considerado importante por um grupo de pessoas. Em resumo (e considerando-se também os outros dois momentos), o diagnóstico emancipador visa, fundamentalmente, a apreender as relações existentes entre temas e conceitos e a sua base real, isto é, entre os primeiros e as suas realidades políticas, sociais e culturais.

Portanto, a diagnóstico emancipador é, essencialmente, um processo de decodificação de situações reais e, quando aplicado à vida das organizações, de leitura de sistemas produtivos e métodos de trabalho.

Em virtude de sua lógica interna e, também, de questões práticas da vida das organizações, é necessário que esse processo de decodificação seja conduzido, a princípio, por pequenos grupos. Mais tarde, contudo, esse processo poderá atingir um nível de criatividade coletiva.

Nesse sentido,, a constituição destes grupos de trabalho segue os seguintes critérios:

1. Participação de todos os membros da organização; primeiro, naquelas condições de trabalho, ou no nível, que as pessoas identifiquem como sendo o mais favorável, confortável, ou de maior familiaridade; segundo, em condições ou níveis coletivos, os quais poderão apresentar as seguintes formas: reunião de grupos, assembléias, congregações, associações, processos eleitorais, etc.

2. Garantir a expressão e integridade de diferentes perspectivas que possam existir no meio-ambiente interno ou externo da organização.

Para que esses critérios se tornem realidade, é necessário dotar os grupos de trabalho de vários requisitos ou componentes estruturais. A combinação, re combinação, ou separação desses componentes devem ser realizadas de acordo com as necessidades práticas e situações concretas de cada organização. Assim sendo, as seguintes combinações de elementos podem ser antecipadas:17 17 Veja Seguier, Michel, op. cit. p. 89-92. .

A. Grupos de trabalho - constituídos por pessoas que exibem um objetivo comum e, freqüentemente, ocupam o mesmo espaço social.

B. Grupo de coordenação - constituídos por pessoas que tomam decisões que afetam toda a organização, desempenhando, em geral, funções de coordenação ou administração. Segundo a equipe do Inodep, esse grupo exibe, freqüentemente, uma conduta ambivalente, ou seja, as intervenções para a mudança são, ao mesmo tempo, desejadas e rejeitadas. Os modelos de realidade desse grupo apresentam muitos ingredientes de racionalização e de mistificação, e sua expressão final pode reduzir-se a uma forte resistência a mudanças.

C. Testemunhas ideais - são pessoas que apresentam alguns atributos que a seguir discriminaremos. A participação dessas pessoas nos grupos (sejam de trabalho, coordenação ou mistos) é feita mediante seleção e convite do próprio grupo. A idéia fundamental é a de agregar novas dimensões ou perspectivas que contribuam, eventualmente, para enriquecer o processo de leitura das condições concretas de vida e de trabalho. Assim, as seguintes pessoas poderiam ser consideradas:

1. Adversários ou qualquer pessoa que tenha uma posição crítica em relação à organização; ou, alternativamente, qualquer membro que tenha deixado a organização em anos recentes.

2. Qualquer pessoa que esteja trabalhando em uma organização semelhante e que tenha uma atitude positiva em relação à nossa própria instituição.

3. Representantes da população sobre a qual nossa organização está tendo algum impacto direto.

4. Representantes de outras instituições que tenham alguma relação de proximidade com a nossa organização.

5. Especialistas de fora da organização.

6. Outras testemunhas ideais. Algumas vezes, em virtude da natureza do problema a ser resolvido, pode ser necessário convidar outros representantes ou especialistas.

D. Grupo de intervenção - especialistas internos, responsáveis pela promoção e ativação - em bases dialógicas - dos processos de leitura e mudança.

Pois bem, agora podemos afirmar que o nosso cliente é o grupo concreto com o qual nós, como membros do grupo de intervenção, estivemos trabalhando. Este grupo pode ter diferentes combinações estruturais, que refletiriam as condições particulares de organizações específicas, e que seriam, de imediato, reveladas por uma análise preliminar.

Portanto, o princípio ético fundamental do grupo de intervenção é o seguinte: toda informação ou dado gerado pelo grupo a ele retorna.

No caso de os grupos contarem com a participação de membros da administração, é evidente que os demais membros teriam controle sobre o que é, ou pode ser dito. Outra vantagem é a de se poder, nessas circunstâncias, dissipar qualquer mal-entendido.

A despeito disso, temos que admitir, a bem da verdade, que a presente solução está longe de ser perfeita. Pode ocorrer a situação em que certas opiniões ou críticas geradas nos grupos de trabalho sejam, desonestamente, passadas à alta administração. Neste caso, tal conduta seria facilmente detectável e imediatamente condenada pelo grupo. Se isto ocorrer, poderíamos dizer que, mesmo nessa circunstância, os membros de uma organização estariam em melhores condições do que aquela que é criada pela aplicação de questionários deliberadamente estruturados para fins de controle.

Em suma, a presente solução para o dilema - quem é o cliente? - não é isenta de reparos e aperfeiçoamento. Entretanto, somos de opinião que ela já representa um grande avanço em relação às práticas de diagnósticos administrativos e de desenvolvimento organizacional em franca utilização.

3.1 Clientes potenciais

Muito provavelmente organizações comerciais típicas, com altas taxas de acumulação de capital, não terão interesse muito grande pela presente abordagem, com exceção, talvez, daqueles casos onde a legislação em vigor estabelece a criação de empresas comunitárias ou organizações cogeridas.

Não obstante, é nossa impressão que certos setores comerciais, de baixas taxas de acumulação de capital, e organizações não voltadas para lucro (non-profit organizations), especialmente essas últimas, poderiam tranqüilamente adotar a presente abordagem.

Em um país com relativo grau de pluralismo econômico, com o Brasil, seria possível antecipar os seguintes clientes potenciais: instituições educacionais; instituições sócio-políticas como, por exemplo, sindicatos, grupos de ação comunitária; cooperativas; grupos profissionais, tais como arquitetos, engenheiros, agências de propaganda; burocracias do Governo e companhias estatais; instituições especiais do Governo, tais como grupos de planejamento, sistemas de saúde, institutos de pesquisa.

Podem existir outros setores que tenham escapado à nossa atenção. Somente a prática, no entanto, pode dar uma resposta final às nossas expectativas.

4. AS CARACTERÍSTICAS BÁSICAS DO DIAGNÓSTICO EMANCIPADOR

Nas suas bases teóricas, o diagnóstico emancipador é uma abordagem multidisciplinar que se apoia, entre outras coisas, na ciência política e na economia, que ajudam a compreender determinadas estruturas globais; na sociologia e na psicologia social, que propiciam a analise dos elementos constitutivos dos sistemas de valores e crenças; na antropologia cultural, que fornece alguns conceitos integradores; e em um distinto processo cognitivo que utiliza qualquer fragmento de informação, e o qual se poderia chamar de dialógico.

Como foi assinalado por Paulo Freire, este processo é expresso por um diálogo que requer um pensamento crítico e é também capaz de gerar um pensamento crítico.18 18 Freire, Paulo. Pedagogy of the opressed. op. cit. p. 81. Para Freire, "sem diálogo não pode haver comunicação, e sem comunicação não pode haver uma verdadeira educação".19 19 Ibid. p. 81. Como é por ele enfatizado, uma educação emancipadora não é "...conduzida por 'A' para 'B' ou por 'A' acerca de 'B', mas, ao contrário, por 'A' juntamente com 'B', mediados pelo mundo - um mundo que condiciona e desafia ambas as partes, dando lugar a perspectivas e opiniões acerca dele".20 20 Ibid. p. 82.

Como deixamos claro anteriormente, no processo dialógico "...o objeto da ação é a realidade a ser transformada com o auxílio de outras pessoas - não as pessoas a elas mesmas. Os opressores seriam aqueles que agem sobre as pessoas para endoutriná-las e ajustá-las a uma realidade que tem que permanecer intocável".21 21 Ibid. p. 83.

Nessa perspectiva, e como já tivemos a oportunidade de mencionar, o diagnóstico emancipador é um distinto processo de investigação que compreende os seguintes momentos de um único e articulado movimento:

1. Primeiro momento: expressão e descrição da realidade.

Como foi notado anteriormente, este momento representa, respectivamente, a verbalização e articulação de idéias, conceitos e temas manifestados por um cliente particular. Aqui, o diagnóstico começa com a análise do material expresso pelo grupo de trabalho ou coordenação (ou misto), o qual é, ao mesmo tempo, simbólico e concreto. Freqüentemente, este material já revela as regras de decodificação ou a leitura que se faz das situações de vida e de trabalho. Inclui, também, os conteúdos de valor e as opções existenciais dos participantes, em relação ao seguinte: sua posição na sociedade geral; seu conceito de autoridade; seu modelo de homem; sua noção de futuro; e suas preocupações éticas e estéticas fundamentais.

2. Segundo momento: crítica do material expresso.

Aqui, a intenção é a de trazer ao plano da consciência o material expresso anteriormente. Procurar examinar a distância que algumas vezes existe entre aquilo que é dito e aquilo que é feito; mostrar alguns obstáculos potenciais e/ou prováveis contradições, na situação de trabalho do cliente-grupo.

3. Terceiro momento: criatividade.

O que, em essência, significa que a solução e o curso de ação são estabelecidos pela automobilização dos recursos estratégicos disponíveis ao cliente-grupo. Implica, também, um movimento do grupo em direção a um modo de existência mais coerente, ético e autêntico.

Assim, como foi ressaltado, o diagnóstico emancipador rejeita as práticas correntes de análise e avaliação organizacionais, promovidas por profissionais estranhos à instituição, os quais, em virtude de um viés tecnocrático, são incapazes de encontrar uma alternativa realmente emancipadora. Mesmo quando esses diagnósticos grandiloqüentes exibam um trabalho extenso e detalhado e se materializem por um relatório compreensivo e do tipo fácil-de-ser-lido. Quase sempre, esses processos formais de diagnóstico acabam afetando apenas os níveis mais altos da organização, com um impacto muito pequeno, ou até nulo, sobre o nível de consciência, os processos sustentadores da vida, e as formas de vida humana associada.

Por outro lado, o diagnóstico emancipador rejeita também as mini-avaliações - centradas nas tarefas - do tipo conseguir-que-o-trabalho-seja-feito. Tal avaliação de processos administrativos - se fosse criteriosamente realizada - poderia muito bem ter alguma importância. Entretanto, a exagerada acumulação de informações de cunho pessoal, como também a quase exclusiva ênfase em funcionalidade, acabam por submergir o analista em um mundo de particularidades, dando lugar a uma conseqüente falta de visão - global e integral - de mundo. Neuróticos, ou as pessoas que sofreram lavagem cerebral, são conhecidos por apresentarem horizontes bem limitados.

Por isso, o produto final de um diagnóstico emancipador não é necessariamente um relatório (muito embora, dependendo das circunstâncias, quando algum material escrito for necessário, este será entregue ao cliente-grupo). Os resultados alcançados aparecem nos processos responsáveis por um dado nível de consciência e nas formas de vida humana asociada. Os alvos-centrais de um diagnóstico emancipador são - má-consciência e modos alienados de existência. Como será comentado a seguir, os resultados alcançados manifestam-se como vividos e visíveis transformações na maneira como um cliente-grupo decifra a sua própria realidade, percebe possibilidades objetivas emergentes, encontra soluções criadoras, ou, em suma, mobiliza os seus recursos estratégicos.

Nesse sentido, o diagnóstico emancipador para se realizar e servir de base a uma transformação criadora deve voltar sua atenção para as seguintes grandes áreas de leitura da realidade: estruturas globais de uma sociedade nacional; o contexto ou situação de uma organização; objetivos e estratégia da organização; estrutura e mecanismos internos da organização; táticas e métodos da organização.

Como foi assinalado pela equipe Inodep, essas grandes áreas de leitura constituem a seqüência lógica mais desejável do processo dialógico. Entretanto, a experiência prática tem demonstrado que diferentes tipos de organizações ou instituições podem revelar diferentes seqüências ou padrões de decodificação. Desde que o diagnóstico emancipador é conduzido por um grupo concreto, tendo um modo específico de vida humana associada e apresentando um tipo particular de consciência, o ponto de partida da investigação seria aquela área ou seqüência mais familiar e mais aceitável para o cliente-grupo.

Assim, a equipe do Inodep nos revela, por exemplo, que instituições educacionais demonstram uma grande preocupação por questões relacionadas com métodos pedagógicos, tais como: processos de participação, gestão democrática, relação professor aluno, reelaboração de programas, ensino não massificado, processos de grupo, etc.

Nessa linha de raciocínio, a equipe do Inodep descobriu que instituições educacionais exibem comumente um padrão de decodificação que é o seguinte: interessam-se primeiro por métodos e táticas; em seguida, por estruturas e mecanismos internos; por objetivos e estratégia; por situação e contexto, e, após, por estruturas globais da sociedade. Este padrão de leitura, como pode ser constatado, é precisamente o reverso da chamada seqüência lógica.

Por outro lado, instituições sócio-políticas parecem revelar o seguinte padrão: estruturas globais; objetivos e estratégia; métodos e táticas; contexto-situação; estrutura e mecanismos internos. Instituições comunitárias, por exemplo, teriam predominantemente o seguinte padrão: objetivos e estratégia; estrutura e mecanismos internos; métodos e táticas; contexto-situação; estruturas globais.22 22 Para uma descrição mais detalhada dos diferentes padrões ou seqüências, veja Seguier, Michel, op. cit. p. 62-70.

Em síntese, e idealmente falando, a seqüência logicamente desejável seria a seguinte: os membros de uma organização conscientemente apreenderiam as estruturas fundamentais de uma sociedade nacional; conseqüentemente, eles seriam capazes de identificar, com propriedade, as situações e contextos organizacionais; assim, eles estariam habilitados a conceber estratégias de médio e longo prazo; eles seriam capazes de delinear os necessários processos e estruturas, de acordo com as estratégias; e finalmente, haveria um contínuo processo de criatividade, quer dizer, de procura de melhores e diferentes maneiras de mobilização dos recursos estratégicos da organização.23 23 Ibid. p. 70.

De acordo com Michel Seguier, a equipe do Inodep jamais encontrou esta seqüência lógica em qualquer das instituições pesquisadas. Em realidade, o que vem primeiro é a ação de grupos concretos, apoiados em algum meio social, e buscando maior compreensão e controle de suas condições básicas de vida e de trabalho.

Este fato demonstra-nos que um processo dialógico de reconhecimento e transformação criadora da realidade deve, necessariamente, ser sensível às possíveis variações concretas de uma dada instituição. Com efeito, de modo a atender as peculiaridades de uma organização, o diagnóstico emancipador é dotado dos seguintes recursos básicos:

1. Recursos pedagógicos: que implicam o reconhecimento das fases da instituição, dos elementos básicos de certos processos sociais, dos momentos do processo dialógico, dos ritmos de intervenção, das técnicas de acompanhamento.

2. Chaves de decodificação ou leitura: são o diagnóstico propriamente dito, que, a seguir, descreveremos.

3. Instrumentos especiais de análise: que são recursos auxiliares, os quais só fazem sentido se estiverem articulados a uma pedagogia emancipadora e ao processo dialógico de leitura da realidade. Estes recursos podem ser inventados, modificados e rejeitados pela própria atividade do grupo de trabalho.

Como o presente artigo é centrado na idéia de diagnóstico, ocupar-nos-emos apenas daquilo que foi chamado de chaves de leitura.

5. CHAVES DE LEITURA24 24 Seguier, Michel, op. cit. p. 10-1.

As chaves de leitura não são procedimentos ou etapas formais de um método convencional de investigação. Elas são, antes, indícios, dicas, que nos ajudam a descobrir um possível padrão ou discernir sobre as características substantivas de uma dada realidade. Basicamente, as chaves de leitura objetivam tornar explícito um quadro de referências, bem como revelar as possíveis discrepâncias de determinados processos organizacionais. Usualmente, este resultado pode ser obtido examinando-se as já citadas áreas de leituras.

Como já apontamos, não existe uma seqüência típica. Por conveniência, vamos seguir a seqüência que começa pelos aspectos mais globais. Contudo, assim procedendo, devemos estar preparados para as seguintes situações problemáticas:

1. Se o diagnóstico empreendido por um grupo particular focalizar apenas os problemas globais de uma sociedade, o discurso será, necessariamente, teórico, sem qualquer relação concreta ou compromisso existencial com as condições imediatas de vida e trabalho de uma instituição.

2. Se o diagnóstico enfatizar apenas a situação imediata de uma organização, a análise perderá de vista as influências recíprocas que existem entre forças sociais mais amplas e os contextos imediatos, bem como as influências mútuas que existem entre estes e as ações planejadas da instituição, ou seja, a implementação de objetivos e estratégia.

3. Se apenas os objetivos e estratégia forem considerados, corre-se o risco de o diagnóstico reduzir-se a grandiloqüentes declarações de metas e boas intenções, as quais, no entanto, jamais serão implementadas

4. Se o diagnóstico visualizar apenas a estrutura e os mecanismos internos, corre-se o risco de aumentarem-se a conduta antiética, os expedientes, os golpes; ou, em outras palavras, contribui-se para o jogo do espertalhão ou falso malandro, que sabe como conduzir um pseudocompromisso político, mas que é, por isso mesmo, incapaz de apreender e modificar o código operacional de grupos sociais ou organizações.

5. Se o diagnóstico focalizar apenas questões de método, o provável resultado será: novas receitas, novos modismos e recomendações técnicas superficiais.

Assim, se tivermos sempre presente esses problemas potenciais, poderemos nos ocupar, de um modo mais eficiente, das questões relativas à leitura dos ambientes internos e externos de uma organização.

5.1 A caracterização das estruturas globais de uma sociedade nacional

Qualquer sociedade apresenta vários e complexos componentes estruturais, problemas cambiantes e modos específicos de lidar com a sua própria variedade e particularidade.

Não obstante, os membros de uma organização devem procurar identificar alguns componentes estruturais básicos, os quais podem ter uma importância crítica para a própria sobrevivência da instituição. De um modo bem simplificado, é possível realizar-se duas distinções básicas:

5.1.1 Diferenciação horizontal

Qualquer sociedade apresenta estratos sociais e diversos grupos sociais. Entretanto, alguns segmentos da sociedade podem ter uma maior importância para as atividades de uma instituição. Assim, se uma instituição, digamos uma cooperativa, está lidando com fazendeiros, seria importante que os seus membros levassem este fato em consideração quando de uma possível prestação de serviços, ou venda de produtos. A falta de cuidado, neste caso, na definição da posição social de uma organização pode trazer alguns problemas, tais como o de adotar atitudes e valores urbanos, os quais se expressariam na maneira como a cooperativa programa as suas atividades (estando fechada em horários ou ocasiões mais importantes para o fanzendeiro), projeta seus edifícios (layout com excessivas barreiras burocráticas); ou definem seu sistema administrativo de informações (que pode não considerar as particularidades da produção agrícola).

5.1.2 Diferenciação vertical ou funcional

A grande maioria das sociedades possui setores verticais, tais como: administração, educação, forças armadas, política, igreja, grupos étnicos ou lingüísticos. Estes setores são chamados de verticais porque eles abrangem indivíduos ou grupos sociais oriundos de diferentes estratos sociais. Geralmente, estes setores funcionais têm a propriedade sociológica de conceder aos seus integrantes uma visão de mundo particular, ou seja, pessoas que apresentam elementos comuns na leitura da realidade e, conseqüentemente, apresentam alguns objetivos e valores comuns.

5.2 A caracterização do contexto ou situação da organização

As organizações não têm uma relação direta com todos os setores básicos de uma sociedade. Elas ocupam um contexto determinado, o qual, por sua vez, pode ser definido em termos da sua localização vertical e horizontal. Simplificadamente, define-se, portanto, o contexto de uma organização como aquela parte da sociedade nacional que constitui o seu meio ambiente imediato.

A análise da situação ou do contexto revela, freqüentemente, importantes discrepâncias entre a organização e seu meio-ambiente. Algumas dessas discrepâncias decorrem da falta de adequação dos processos organizacionais, com respeito à sua localização vertical e horizontal.

A análise da situação procura, portanto, estabelecer um padrão de adequação mínima em relação a processos sociais críticos, que, em seguida, mencionaremos. Lembre-se, porém, que uma adequação total não é nem possível nem desejável e, também, que qualquer instituição progride através da superação de discrepâncias e crises. Deste modo, a análise da situação ou do contexto procura examinar as possíveis discrepâncias que possam ocorrer entre:

A. A organização e seu contexto

Por exemplo: procura-se revelar qual a identidade da organização, ou seja, o que os seus membros entendem, o que ela é, o que ela quer ser, e como eles percebem as características básicas de sua "clientela".

B. Os objetivos da organização e seu contexto ou situação

Por exemplo: certos grupos de ação comunitária, que têm por objetivo ajudar os pobres, mas que, entretanto, só trabalham com as elites.

C. Os objetivos que são declarados e aqueles que são realmente perseguidos

Por exemplo: é bem reveladora a comparação entre objetivos declarados e recursos realmente alocados ou que aparecem no orçamento.

D. Os objetivos e a estrutura interna

Por exemplo: certas instituições sócio-políticas, tais como sindicatos, partidos, e grupos de ação comunitária, que estão engajados em uma luta pela democracia, mas que, no entanto, apresentam estruturas hierárquicas rígidas e ditadores ideológicos internos.

E. Os objetivos e os métodos utilizados

Por exemplo: certas instituições que têm um objetivo declarado de servir a comunidade e que permanecem fechadas em importantes horas do dia.

A análise dessas questões permitiria encontrar-se padrões de adequação mínima em relação a importantes processos sociais, como os seguintes:

1. Padrão de identidade: precisar a identidade dos membros da organização.

2. Padrão de oposição: descobrir obstáculos potenciais e oportunidades potenciais.

3. Padrão de totalidade: avaliar o senso de missão de organização e certos valores integradores.

4. Padrão relacionado ao processo de envelhecimento e ao grau de burocratização: avaliar, dentro de uma perspectiva histórica, a relação entre situações cambiantes e os objetivos da instituição.

5.3 A caracterização da estratégia organizacional e dos pólos de tensão

O diagnóstico do contexto propicia uma melhor idéia sobre os campos de ação da organização, ou melhor, qual seria a amplitude do seu impacto e quais as suas situações-limite. Aqui, o que é considerado seria uma possível discrepância entre o declarado objetivo de ação planejada e o impacto real e alcance das ações da organização; ou, em outras palavras, entre a situação real da organização e o universo temático de seus membros. A confrontação que se verifica entre a organização e seu contexto imediato (ou a sociedade em geral) pode gerar vários pólos de tensão. Estes poderiam ser apreendidos, indagando-se sobre os seguintes temas:

A. Necessidades básicas: ou seja, como a organização atende as necessidades de seus membros.

B. Situações limitantes:

B.1 O problema da autoridade, que não pode ser abordado apenas por uma delimitação de campos de força, mas o que deve ser investigado são os mecanismos institucionais de legitimação do poder.

B.2 O problema do segredo, que está intimamente relacionado ao problema da autoridade e implica, freqüentemente, a sua própria mistificação.

B.3 O problema do dinheiro, que conduz, evidentemente, à análise das suas características administrativas, tais como: de onde ele vem? Como circula? Quem tem o controle dele? Como é distribuído? Mas, sobretudo, o que se quer analisar seriam certas ambivalencias relacionadas com o dinheiro; por exemplo, certas instituições que se dizem não voltadas para o lucro, mas que, no entanto, adotam práticas operativas extremamente gananciosas.

C. O grau de variedade requerida: tolerância interna ou externa para diferentes padrões e estilos de conduta.

Procura-se discutir questões relacionadas com o pluralismo versus intolerância organizacional. O pressuposto básico por trás dessa dicotomia é também examinado; ou seja, se para existir criatividade institucional seriam necessários graus relativos de tolerância.

D. A dialética dos grupos: mecanismos de inclusão versus exclusão.

Procura-se esclarecer as questões relativas aos motivos implícitos ou explícitos, de inclusão institucional. Examinam-se, também, as formas de integração institucional, bem como se analisam as ortodoxias relativas aos problemas de inclusão/exclusão.

5.4 A caracterização da estrutura e mecanismos internos da organização

A. Os processos sociais conflitantes

Procura-se examinar certos processos conflitantes como, por exemplo, a contradição existente entre liberdade pessoal e estruturas sociais ou administrativas.

B. Os processos de redução cognitiva: a ocultação da esfera política pela esfera psicológica e vice-versa.

Algumas vezes, os participantes de uma organização manifestam certas condutas cujo significado exato não está claro, nem para eles, nem para os circundantes. Neste sentido, a leitura desta situação procura distinguir o que é emocional, pertencente à esfera das relaçõs pessoais, daquilo que é político, pois advém de uma dada estrutura organizacional. É necessário também esclarecer em que medida estas duas esferas se interpenetram.

C. O emprego de analisadores

O analisador seria tudo aquilo que pudesse ajudar a revelar a estrutura interna de grupos sociais e instituições. Pode ser, também, considerado um catalisador de pessoas e instituições. O analisador pode ser uni fato, uma pessoa, uma ação específica, ou um incidente qualquer.

6. COMENTÁRIOS FINAIS

A partir de uma posição de indignação moral em relação ao presente estado da teoria das organizações e suas disciplinas aplicadas (por exemplo, diagnóstico organizacional, design de organizações, e sistemas de informações), decidimos empreender um exercício de auto-esclarecimento. Para isto, adotamos uma definição de administração que não tem o objetivo deliberado de manipular a conduta humana. Para nós, os seres humanos não são objetos, ou seja, controláveis por alguma mão invisível ou algum mecanismo, intangível e auto-regulável, de ameaças. Para nós, o homem é um sujeito: um ser autodeterminado que é capaz de participar na transformação de seu mundo. Com a sua capacidade criadora, ele é capaz de transformar estreiteza em profundidade.

Este é, portanto, o calcanhar de Aquiles de nossa abordagem, porque ela se baseia no papel ativo da consciência humana e na sua capacidade para transformar o estatuto existencial das pessoas. Por outro lado, isto é também o problema fundamental de epistemologia, ou seja, a precisa caracterização do lado ativo da consciência humana no processo de transformação das condições materiais.

Em termos práticos, e baseando-se, uma vez mais, no trabalho da equipe do Inodep, gostaríamos de mencionar algumas limitações e algumas potencialidades do presente método. A sua aplicação pode conduzir aos seguintes resultados.25 25 N. do A. Como mencionamos, na introdução, este título é baseado, quase que integralmente, na obra citada de Michel Seguier, p. 98-119. Nada impede, porém, que no futuro, em virtude de experiências adicionais, venhamos a modificar presente conjunto de chaves.

1. Ao fechamento de instituições.

2. À criação de novas formas de associação e novos grupos de trabalho.

3. À modificação do status jurídico da organização.

4. À substituição de diretores ou supervisores.

5. A novas configurações de poder.

6. A diferentes tipos de atividades e diferentes meios de ação.

7. À criação de novos campos de força.

8. À liberação do discurso e novas bases para os processos de aprendizagem.

9. À ampliação de horizontes.

10. À nova consciência política e melhores bases para a implantação de estratégias.

11. À nova consciência acerca de possíveis papéis anti-sociais desempenhados pela organização.

12. À melhor cognição de alternativas estratégicas.

13. Ao estabelecimento de novas formas de associação, baseadas no autodiagnóstico, auto-avaliação e autogestão.

  • 1 Hobbes, Thomas. Leviathan. Collier Books, 1973. p. 41.
  • 3 Levinson, Harry. Organizational diagnosis. Harvard University Press, 1972. p. X.
  • 4 Guerreiro Ramos. Administração e estratégia do desenvolvimento. Fundação Getúlio Vargas, 1966. p. 205-6.
  • 5 Veja Freire, Paulo. Uma educação para a liberdade. Editora Textos Marginais, 1974; Kosik, Karel. Dialética do concreto. Paz e Terra, 1976;
  • M. Sweezy, Paul. Teoria do desenvolvimento capitalista. Zahar, 1976. p. 62-8.
  • 7 Pinto, Álvaro Vieira. Consciência e realidade nacional. Apud: Freire, Paulo. Pedagogy of the oppressed. The Seabury Press, 1970. p. 89.
  • 10 Seguier, Michel. Crítica institucional y creatividad colectiva. Paris, Inodep, 1976.
  • 15 Jaques, Elliott. Studies in the social development of an industrial community (The Glacier Project). Human Relations, 3 (3):225, 1950.

apêndice I

  • 1
    Hobbes, Thomas.
    Leviathan. Collier Books, 1973. p. 41.
  • 2
    Veja Guerreiro Ramos.
    Introdução critica à sociologia brasileira. Editorial Andes, 1957. p. 79.
  • 3
    Levinson, Harry.
    Organizational diagnosis. Harvard University Press, 1972. p. X.
  • 4
    Guerreiro Ramos.
    Administração e estratégia do desenvolvimento. Fundação Getúlio Vargas, 1966. p. 205-6.
  • 5
    Veja Freire, Paulo.
    Uma educação para a liberdade. Editora Textos Marginais, 1974; Kosik, Karel.
    Dialética do concreto. Paz e Terra, 1976; M. Sweezy, Paul.
    Teoria do desenvolvimento capitalista. Zahar, 1976. p. 62-8.
  • 6
    Citado por Guerreiro Ramos.
    Introdução crítica à sociologia brasileira, op. cit. p. 33.
  • 7
    Pinto, Álvaro Vieira.
    Consciência e realidade nacional. Apud: Freire, Paulo.
    Pedagogy of the oppressed. The Seabury Press, 1970. p. 89.
  • 8
    Veja Freire, Paulo.
    Teoria y prática de la libertad. In:
    El Mensa je de Paulo Freire. Textos selecionados pelo Inodep, Editorial Marsiega, Madrid.
  • 9
    Teoria y prática de la libertad. op. cit. p. 36.
  • 10
    Seguier, Michel.
    Crítica institucional y creatividad colectiva. Paris, Inodep, 1976.
  • 11
    Freire, Paulo.
    Teoria y prática de la libertad, op. cit. p. 57-8.
  • 12
    Um exemplo típico, onde a premissa de agregação é utilizada, pode ser encontrado em Hesketh, José Luiz, Ph. D.
    Diagnóstico organizacional. Petrópolis, Vozes, 1978. Aqui, na introdução (p. 13), o desempenho organizacional (d) é definido como "...a somatória dos diversos desempenhos individuais dos membros da organização (di)", segundo a expressão:
  • 13
    De nada adianta a justificativa de que os dados são globais, pois, no contexto da organização, certas respostas são facilmente identificáveis. Outro ponto a ser considerado é o da obrigatoriedade de resposta, em virtude dos vínculos funcionais ou hierárquicos.
  • 14
    Para maiores detalhes sobre o projeto Glacier, veja os números de 1950 da revista
    Human Relations, Londres.
  • 15
    Jaques, Elliott. Studies in the social development of an industrial community (The Glacier Project).
    Human Relations, 3 (3):225, 1950.
  • 16
    Veja o nosso artigo Abordagem sócio-técnica: um rápido balanço. EAESP/FGV, mimeogr. 1979.
  • 17
    Veja Seguier, Michel, op. cit. p. 89-92. .
  • 18
    Freire, Paulo.
    Pedagogy of the opressed. op. cit. p. 81.
  • 19
    Ibid. p. 81.
  • 20
    Ibid. p. 82.
  • 21
    Ibid. p. 83.
  • 22
    Para uma descrição mais detalhada dos diferentes padrões ou seqüências, veja Seguier, Michel, op. cit. p. 62-70.
  • 23
    Ibid. p. 70.
  • 24
    Seguier, Michel, op. cit. p. 10-1.
  • 25
    N. do A. Como mencionamos, na introdução, este título é baseado, quase que integralmente, na obra citada de Michel Seguier, p. 98-119. Nada impede, porém, que no futuro, em virtude de experiências adicionais, venhamos a modificar presente conjunto de chaves.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1980
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