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Partidos políticos e redemocratização: notas para debate

NOTAS E COMENTÁRIOS

Partidos políticos e redemocratização: notas para debate* * Comunicação apresentada ao Seminário sobre Reformulação Partidária, realizado na EAESP/FGV, em 24 de abril de 1980.

Bolivar Lamounier

Pesquisador do CEBRAP e professor de ciência política da PUC/SP

A conexão entre sistema de partidos e democracia é uma questão controversa. O primeiro marco histórico na reflexão sobre este problema consistiu em superar a noção de uma democracia sem partidos e em constituir o conceito de um sistema partidário, vale dizer, da competição política institucionalizada. A julgar pelos debates contemporâneos no campo socialista e pela frustração diante de certas experiências revolucionárias no Terceiro Mundo, parece também próximo o descrédito da idéia de uma democracia que se nutre apenas das disputas internas no seio de um partido único.

Estamos porém longe de uma conceituação universalmente aceita sobre as relações positivas porventura existentes entre sistema partidário e democracia. A questão pode ser formulada em dois níveis distintos. Primeiro, o das funções de um sistema partidário competitivo, independentemente de sua forma; segundo, o das vantagens e desvantagens de diferentes formas ou tipos de sistema partidário, tendo-se em vista que, até certo ponto, a opção entre esses é um campo aberto para o exercicio da imaginação política.

Para que serve um sistema partidário competitivo? Esta indagação parece pertinente, entre outras razões porque estamos depositando grandes esperanças na criação de tal sistema, precisamente no momento em que, nos EUA e na Europa, não poucos autores elaboram diagnósticos pessimistas sobre o futuro dessa forma de organização. Segundo um estudo recente, "diversas pesquisas vêm suscitando dúvidas sobre se os partidos políticos continuarão a desempenhar no futuro o mesmo papel que desempenharam no passado. A crescente parcela do eleitorado que não se afilia a qualquer dos partidos existentes, a freqüente escolha de candidatos em partidos diversos, os êxitos que vêm sendo obtidos por candidatos independentes e por terceiros partidos em paises até então solidamente bipartidários, o dramático aumento de respostas do tipo não sei nas pesquisas pré-eleitorais, para não mencionar o enfraquecimento dos governos partidários na Europa - todos estes indícios parecem sugerir que os partidos estão perdendo seu significado aos olhos dos eleitores."1 1 Maisel, Louis, ed. The Future of political parties. Sage, 1975. p. 9. Tal como no Brasil no final dos anos 50 e início dos 60, fala-se com freqüência na marcha progressiva da decomposição partidária.

Mesmo pressupondo que sistemas partidários competitivos retenham sua vitalidade, podemos entretanto perguntar: em que sentido são eles essenciais à democracia? Parece-me que a resposta pode ser dada em três níveis distintos. A competição partidária:

a) assegura (ou reforça) o caráter formal da representação política, impedindo sua identificação total com qualquer conceito substantivo, particular, desse vinculo;2 2 Pitkin, Hanna. The Concept of representation. Berkeley, 1972.

b) é um mecanismo institucional para a substituição relativamente pacifica dos detentores (formais) do poder;

c) assegura uma contínua possibilidade da expansão dos conflitos (ao contrário dos sistemas burocrático-corporativos), o que lhes confere caráter público e valoriza os recursos políticos (a começar pelo voto) mesmo dos grupos sociais menos participantes.3 3 Schattschneider, E. E. The Semi-Sovereign people. Holt, Rinehart, 1960.

Mesmo sè as considerações precedentes forem aceitáveis, no plano abstrato, cumpre-nos ainda discutir se os partidos que se estão formando, no Brasil, têm uma probabilidade razoável de se consolidarem como um sistema partidário competitivo. A julgar pela denúncia, pelos partidos de Oposição, de uma possível intenção mexicanizante na estratégia política do Governo, essa possibilidade estaria ameaçada. Este é, a meu ver, um caso em que a retórica prejudica a tentativa de projetar as tendências futuras. O grau de hegemonia exercido no México pelo Partido Revolucionário Institucional não pode ser alcançado, no Brasil, pela via eleitoral normal, tendo-se em vista o grau de dissenso já existente entre as principais instituições da sociedade civil. Isto quer dizer que as alternativas são mais ou menos as seguintes:

a) um Estado sem partidos - ou melhor, sem eleições minimamente significativas - no caso de um retrocesso violento;

b) retorno ao bipartidarismo, de fato ou de direito, dependendo do uso que o Governo vier a fazer dos recursos institucionais que ainda lhe asseguram a iniciativa política;

c) um multipartidarismo atrofiado, ou parasitário, que resultaria do acoplamento dos atuais partidos, e/ou de outros que se venham a formar, à presente estrutura de poder, que efetivamente impede o acesso dos partidos aos recursos político-institucionais necessários ao exercício das três funções antes assinaladas;

d) um multipartidarismo competitivo, caso o processo de redemocratização se consolide e avance a ponto de redistribuir os recursos político-institucionais a que se faz alusão no item anterior.

Vejamos rapidamente algumas questões que se abrem diante de cada uma destas hipóteses. A hipótese a não é, como vimos, de mexicanização, mas sim de fechamento, por ser praticamente inconcebível a compatibilização do atual sistema eleitoral com uma situação de hegemonia incontratável do atual grupo dirigente. Tampouco parece plausível que a adoção do voto distrital pudesse conduzir a tal resultado. O fechamento conduziria, isto sim, a uma situação de alta incerteza política, na medida em que tanto o Governo quanto a Oposição teriam sua coesão imediatamente abalada e ver-se-iam desprovidos de meios públicos apropriados para restabelecê-la a curto prazo.

A segunda hipótese - retorno ao bipartidarismo - é cogitada apenas por setores de Oposição, e apenas como expediente tático para contrapor-se à adoção, pelo Governo, de certas medidas, tais como a sublegenda nas eleições para os governos estaduais e o voto distrital. Observe-se, entretanto, que o bipartidarismo de fato - ou melhor dizendo, a bipolarização de forças - receberá impulso não menos apreciável caso se mantenham algumas das atuais tendências:

a) o esvaziamento do Partido Popular, que se pro punha a ser uma espécie de centro métrico do espectro ideológico;

b) a orientação plebiscitária do voto urbano;

c) a debilidade dos partidos e do poder legislativo como loci de decisão sobre os problemas mais urgentes e significativos.

A alta probabilidade do modelo bipartidário, tal como acabamos de descrevê-lo, com vantagens competitivas para a Oposição no terreno eleitoral, foi obviamente a razão principal que levou o Governo a promover a reformulação partidária, induzindo o nascimento do modelo c, que é o de um pluripartidarismo com debilidades congênitas. Este, de certo modo, foi o modelo vigente no Brasil de 1945 a 1965.4 4 Souza, Maria do Carmo. Estado e partidos políticos no Brasil. Alfa-Ómega, 1976. Mas sua repetição, na situação atual, implicaria pelo menos duas diferenças básicas, que importa assinalar:

1. Havia, no início daquele período, uma coalizão conservadora (PSD, UDN, PR...) com suficiente apoio eleitoral e suficiente coesão no que dizia respeito aos seus interesses econômico-sociais básicos. Seu equivalente contemporâneo dificilmente poderá contar com o mesmo apoio eleitoral, o que implicará maior tentativa de tutela sobre o legislativo e o sistema partidário.

2. A tutela e a debilidade decisória dos partidos, nas condições atuais, submetê-los-á a uma desmoralização ainda mais rápida e severa, tendo-se em vista os níveis de mobilização - agora muito mais altos - e a desconfiança já existente em relação aos partidos em alguns setores sociais significativos, tais como o meio sindical e os movimentos religiosos voltados para a organização de base.

3. À luz destes dois fatores, entre outros, parece pois evidente que o modelo dos pluripartidarismo parasitário, caso perdure, em vez de resolver, agravará os impasses dos últimos anos.

Seria o caso, então, de encararmos como certa e isenta de problemas a alternativa do pluripartidarismo competitivo? Como certa, certamente não, pois ela depende do aprofundamento do processo de redemocratização que estamos vivendo, cujas frutrações e incertezas ninguém desconhece. Mesmo se pudéssemos contar, porém, com a consumação do retorno à democracia dentro de um prazo aceitável, alguns riscos e dificuldades estariam, desde já, à vista. A primeira é o truísmo de que a competição partidária democrática exige sempre que um elevado grau de legitimidade seja atribuído aos procedimentos políticos enquanto tais; ou seja, que os diferentes grupos sociais se disponham a aceitar decisões adversas, desde que tomadas por meio de procedimentos que eles mesmos consideraram previamente legítimos. Ora, é evidente que o jogo democrático só merecerá apoio de grupos e camadas divididas por vastas desigualdades econômicas enquanto resultar, com uma probabilidade razoável, em políticas substantivas que lhes sejam satisfatórias.

O problema a que acabamos de aludir assume, no Brasil e nas condições atuais, uma configuração particularmente desfavorável. Certa rigidez ideológica, ou seja, uma tendência a formular problemas de um modo não-negociável, é comum e talvez inerente aos partidos políticos. Essa Característica deve-se a diversos fatores: à natureza da representação no Estado atual, que não se baseia em estamentos, mas sim em entidade até certo ponto artificiais, como os próprios partidos políticos; a certos efeitos do sistema eleitoral, quando este favorece a independência dos partidos entre si; e assim por diante. É porém certo que, no caso brasileiro, a própria vigência do autoritarismo, já há 15 anos, associada à gigantesca concentração das decisões de governo e dos instrumentos de política econômica, contribuiu decisivamente para acentuar essa característica. A estratégia gradualista da redemocratização exerce, sob certas condições, papel positivo de reconstituir o realismo político; mas passa a ter efeitos opostos quando começa á criar, pelo retardamento excessivo, uma atmosfera de frustração e de desconfiança generalizada.

Estas considerações não têm como objetivo fomentar o pessimismo e o desânimo. Ao contrário, a tentativa de discernir os riscos inerentes a cada uma das alternativas é uma condição necessária para que eles sejam equacionados e enfrentados através da ação política concreta.

  • 1 Maisel, Louis, ed. The Future of political parties. Sage, 1975. p. 9.
  • 2 Pitkin, Hanna. The Concept of representation. Berkeley, 1972.
  • 3 Schattschneider, E. E. The Semi-Sovereign people. Holt, Rinehart, 1960.
  • 4 Souza, Maria do Carmo. Estado e partidos políticos no Brasil. Alfa-Ómega, 1976.
  • *
    Comunicação apresentada ao Seminário sobre Reformulação Partidária, realizado na EAESP/FGV, em 24 de abril de 1980.
  • 1
    Maisel, Louis, ed.
    The Future of political parties. Sage, 1975. p. 9.
  • 2
    Pitkin, Hanna.
    The Concept of representation. Berkeley, 1972.
  • 3
    Schattschneider, E. E.
    The Semi-Sovereign people. Holt, Rinehart, 1960.
  • 4
    Souza, Maria do Carmo.
    Estado e partidos políticos no Brasil. Alfa-Ómega, 1976.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1980
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