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Educação e hegemonia de classe: as funções ideológicas da escola

RESENHAS

Afrânio Mendes Catani

Educação e hegemonia de classe - as funções ideológicas da escola.

Por José Carlos Garcia Durand, org. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. 288 p.

A presente coletânea, organizada por José Carlos Garcia Durand, reúne cinco textos, antecedidos por bem cuidadosa apresentação, a respeito das relações entre educação e poder, dois temas que se cruzam em níveis relativamente distintos: "o da formação da força de trabalho e o da transmissão da ideologia". E se confundem a partir do reconhecimento de que "a escola faz as duas coisas inesparadamente...". Em outros termos, esses textos, que têm como referencial a sociedade capitalista contemporânea, procuram, através de caminhos diferentes, examinar "...o modo pelo qual a educação colabora na produção de consenso necessário à reprodução da estrutura de classes sociais".

Há dois artigos de autoria de Pierre Bourdieu e sua equipe de colaboradores, que desde o inicio da década de 60 vem produzindo textos de sociologia educacional: "A Comparabilidade dos sistemas de ensino" (Bourdieu & Jean Claude Passeron) e "As Estratégias de reconversão" (Bourdieu, Luc Boltanski & Monique de Saint Martin); há os de Noéle Bisseret ("A Ideologia das aptidões naturais") e de Jean Launay ("Elementos para uma economia política da educação") e, por último, o de Michel Amiet ("A Propósito de 'A Escola capitalista na França', de Christian Baudelet e Roger Establet"). Todos eles dizem respeito a investigações ou proposições teóricas elaboradas na França, tendo por objeto mais imediato de observação o sistema escolar francês. Todavia, sua divulgação no Brasil tem grande utilidade, pois trata-se de material inovador para a explicação de uma função universalmente cumprida por todo sistema escolar em toda formação social: "...onde a vigência de relações do dominação impõe sua transfiguração ideológica ou s.¡a dissimulação cultural".

O texto de I unay e o de Bourdieu-Passeron estabelecem um rico debate com os teóricos do capital humano, cujos pressupostos ganharam prestígio em muitos meios acadêmicos e em órgãos de governo e de cooperação internacional. Segundo essa óptica, "...o que importa é o que a instrução custa (aos estudantes e à 'sociedade') e o que rende, em termos da renda-salário dos diplomados e de aumento de produtividade da força de trabalho para o sistema econômico. Uma preocupação, enfim, toda presidida por uma ratio de rentabilidade, a cuja sombra não foi difícil perceber, no esforço de crítica, a operação das exigências de acumulação de capital e o fortalecimento do uma postura tecnocrética a respeito de ensino". Nos dois textos citados procura-se, embora de pontos de vista diferentes, dar conta das ilusões e das limitações implicadas no pensar a escola unicamente como instância formadora de forca de trabalho, bem como no pensar essa formação como se fora independente das relações capitalistas de produção. Além disso, conforme destaca o Prof. Durand na "Apresentação", é nesse período que se avança cm proposições a respeito das relações entre escola, cultura, ideologia e poder, com a publicação de La Reproduction (éléments pour une théorie du systéme d'enseignement)1 1 Bourdieu & Passeron. La Reproduction (éléments pour une théorie du système d'enseignement). Paris, Minuit, 1970. Trad. em português. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975. e do ensaio de Louis Althusser, Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado.2 2 Althusser. Louis. Idéologie et appareils idéologiques d'Etat. La Pensée, Paris, (151), juin 1970. Trad. em português. Lisboa, Presença, 1974. Segundo Althusser, a instância ideológica escolar contitui-se no "... principal aparelho ideológico de Estado do capitalismo desenvolvido". Ou seja, a escola é vista como a instituição que suplanta a Igreja, a família e outras agências na formação de consenso.

Bourdieu, em seus trabalhos (A Reprodução é um caso tipico), procura entender o "processo produtivo", isto é, o modo escolar de inculcaçao ideológica, investigando as classificações escolares enquanto classificações sociais disfarçadas e, conseqüentemente, a exclusão escolar como exclusão social legitimada. A partir daí, "... ganha importância a compreensão dos efeitos de um sistema de recrutamento e de promoção que faz apeio, cada vez mais intensiva e sofisticadamente, apenas a 'aptidões naturais'." Isto é, procura-se difundir a crença nos conceitos de "aptidão" e de "vocação", observando-se como a escola colabora, a seu modo, no jogo social da formação das imagens sociais da natureza de cada classe ou grupo social. Um exemplo do que se está afirmando pode ser observado no artigo "Precisamos é de técnicos", publicado no semanário Veja, de 20 de fevereiro de 1980, onde a exclusão escolar é vista como exclusão social legitimada. Pode-se ler no artigo que "... o vestibular se destina justamente a selecionar um pequeno número de jovens talentosos que desejam continuar os estudos por mais alguns anos e depois ingressar no mercado de trabalho.(...) Eu me pergunto onde é que vão parar todos esses 85 mil reprovados (no vestibular do Cesgranrio) só porque não conseguiram 25% de acerto sobre o total das provas. Sem falar nos 28 mil que obtiveram baixas médias e vão disputar as únicas 3 mil vagas que sobraram. Não creio que o problema seja de sistema educacional que não proporciona mais vagas (...) ou da própria estrutura do vestibular. Mas da consciência do brasileiro em reconhecer que não há chances iguais para todos. Não tem sentido haver 130 mil vagas para todos entrarem, porque não há campo para tantos doutores. O nosso país precisa muito mais de técnicos, bons profissionais na érea de nível médio. Incorreto é não haver escolas técnicas suficientes para profissionalizar essa massa que não vai conseguir chegar à universidade" (grifos meus, AMO . Segundo o artigo sugere, os jovens deveriam ser encaminhados diretamente para as profissões técnicas, de acordo com as necessidades do país, pelos encarregados de planejar a educação a nível nacional. Assim, "os melhores alunos vão para as universidades e os menos destacados para o nível médio.(...) Qualquer profissão bem desempenhada é desejável. Seja de padeiro, telegrafista, eletricista ou professor. O importante é fazer bem o trabalho" (grifos meus, AMC).

O artigo citado nas ''nhãs anteriores, publicado em Veja, representa, na realidade, não um ponto de vista isolado, singular, mas sim o da classe dominante, aqui entendida em uma acepção mais ampla, conforme enxerga Bourdieu: englobando tanto os proprietários dos meios de produção, grandes e pequenos, quanto os quadros dirigentes dos vários setores e de vários níveis do aparelho de Estado e os tantos grupos que se incumbem da produção cultural. "Por certo, internamente a esse âmbito, os grandes industriais e comerciantes ocupam posição dominante, e os demais, em graus variáveis, posições derivadas."

É importante destacar, de acor do com Bourdieu, o que vem a ser a ideologia de dom ou da vocação. Por ideologia de dom pode-se entender as representações segundo as quais os grupos dominantes, tanto a nível econômico quanto de direção política e de produção cultural, se percebem como produto de um recrutamento social baseado em aptidões que transcendem a qualquer treinamento formalizado. "Ela está na raiz da crença banalizada na condição de 'elite' da fração mais rica da classe capitalista, assim como das minorias que comandam os diversos aparelhos de direção política e de produção cultural". Valendo-se de Karl Mannheim (Ideologia e utopia), Durand salienta que no caso da dominação política, esta exige intuição "forma superior de conhecimento" - que só se refina "no convívio prolongado com o poder...", com aqueles que de há muito o de têm. Dessa maneira, nas práticas escolares, na relação entre professores e alunos, "o aristocratismo da inteligência, implicando a rejeição de utilitário eda burocracia, as manifestações 'espontâneas' da 'criatividade', a afirmação da gratuidade de saber e o enlevo pelas manifestações elegantemente 'naturais' na escrita e na expressão oral compõem, enfim, o modelo acabado do bom professor e do bom aluno".

Bourdieu, na realidade, não atribui às determinações econômicas o peso que lhes confere a tradição marxista. Para ele - veja-se por exemplo várias passagens de "As Estratégias de reconversão" - a eficácia do econômico sobre o futuro das classes e grupos sociais se manifesta "... através das previsões que os agentes fazem do seu futuro provável, com o que então as leis da economia passam a ter a sua eficácia mediatizada pelo subjetivo; isto é, apresentam-se como profecias auto-realizadoras, ou seja, dá-se privilégio às determinações simbólicas do econômico". Uma distinção importante entre a concepção de Bourdieu e a dos autores marxistas incluídos na coletânea (Bisseret, Launay, a dupla Baudelet e Establet, resenhada por Amiet) diz respeito ao peso que estes conferem à oposição de interesses entre capital e trabalho na determinação das tendências de transformação dos sistemas de ensino e das lutas que se organizam pelo controle do aparelho escolar. Na tomada de posição marxista, segundo Durand, "... o referencial

é sempre a oposição dicotômica entre burguesia e proletariado, e as determinações básicas da transformação são situadas ao nível das relações entre os homens na produção material". Para Bourdieu, os interesses de classe não têm o peso explicativo que lhes atribuem os marxistas. Embora o autor de A Reprodução não possa negar a evidência do processo de concentração de capital (econômico), longe está de admitir a tese da polarização das classes sociais. "Sua atenção está voltada para a observação das estratégias a partir das quais os grupos e formações de classe (tanto no dominio da classe burguesa quanto entre os trabalhadores) reagem à concentração do capital econômico, formando e acumulando tipos alternativos de trunfos sociais capazes de assegurar, mantendo ou melhorando, sua posição na apropriação dos bens econômicos. Entre esses trunfos se incluem tanto o capital cultural formado, não só, mas principalmente, na escola e o capital de relações sociais, conversível à renda econômica pela possibilidade que oferece de acesso a postos."

No entender de Pierre Bourdieu o discurso não se constitui no espaço por excelência da existência da ideologia. Segundo ele, "se os efeitos ideológicos das práticas sociais superam em muito a consciência dos agentes, impõe-se a mais intensiva e extensiva observação das práticas como o recurso para captá-los, exigência a que não têm como escapar as práticas socialmente definidas como pedagógicas. Exemplifique-se para deixar mais claro: para ver como a escola de fato opera, é preciso levar em conta um elevado número de elementos mobilizados na ação escolar: o uso/não uso de uniformes, a arquitetura e o uso do espaço escolar, a valorização/desvalorização da linguagem, as exigências explícitas ou veladas em relação ao estilo e à escrita, o respeito/desrespeito à disciplina e a horários, as antecipações professorais sobre o destino escolar e social dos alunos, as referências dos professores à cultura e aos hábitos familiares dos alunos e tantos outros elementos que contribuem para a interiorização, no estudante, de um sistema de disposições capaz de tornar realidade naturalmente aceita o seu futuro social provável. Consiste, portanto, em não tomar qualquer elemento envolvido na ação pedagógica como evidente".

Acredito que poderia falar e/ou destacar muitos outros aspectos acerca de Educação e hegemonia de classe - as funções ideologias da escola. Contudo, acho que as presentes transcrições e notas ordenadas já oferecem ao leitor um panorama razoável do que encontrará na coletânea organizada por José Carlos G. Durand, cujo segundo volume deverá aparecer em breve, com textos de Grignon, Chamboredon, Prévet e Saint-Martin, da equipe de Pierre Bourdieu. Ao final da "Apresentação" o Prof. Durand sugere ao leitor que não souber por onde começar seus estudos que leia o texto de Bourdieu-Passeron, "A Comparabilidade dos sistemas de ensino", sugestão essa acertada, uma vez que "As Estratégias de reconversão" (Bourdieu-Boltanski-Saint -Martin), nesta mesma coletânea, é de leitura bastante árdua e, em certo sentido, deseslimulante para os não familiarizados com a terminologia que se utiliza. Assim, gostaria, também, de dar a minha sugestão àqueles que já tenham lido o ensaio sobre a comparabilidade dos sistemas de ensino e se interessaram pela maneira como as idéias são ali desenvolvidas: leiam "Reprodução cultural e reprodução social", de Pierre Bourdieu,3 3 Bourdieu, Pierre, Reprodução cultural e reprodução social. In: Micelli, Sérgio, org. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 295-336. texto leve, escrito em linguagem relativamente simples (o que não é comum no que se refere aos escritos de Bourdieu), publicado originalmente em 1971, onde se examina o papel do sistema de ensino na reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural.

  • 1 Bourdieu & Passeron. La Reproduction (éléments pour une théorie du système d'enseignement). Paris, Minuit, 1970. Trad. em português. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.
  • 2 Althusser. Louis. Idéologie et appareils idéologiques d'Etat. La Pensée, Paris, (151), juin 1970. Trad. em português. Lisboa, Presença, 1974.
  • 1
    Bourdieu & Passeron.
    La Reproduction (éléments pour une théorie du système d'enseignement). Paris, Minuit, 1970. Trad. em português. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1975.
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    Althusser. Louis. Idéologie et appareils idéologiques d'Etat. La Pensée, Paris, (151), juin 1970. Trad. em português. Lisboa, Presença, 1974.
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    Bourdieu, Pierre, Reprodução cultural e reprodução social. In: Micelli, Sérgio, org.
    A Economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1974. p. 295-336.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 1980
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