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ESTUDOS ORGANIZACIONAIS NO BRASIL: CONSTRUINDO ACESSO OU REPLICANDO EXCLUSÃO?

O objetivo deste artigo é refletir sobre o ensino e a pesquisa nos Estudos Organizacionais (EOR) no contexto brasileiro. Cabe destacarmos que os apontamentos aqui trabalhados são apenas alguns entre os vários outros possíveis, reforçando a pluralidade de olhares, perspectivas e embasamentos epistemológicos que compõem a área. Nesse sentido, não buscamos uma definição sobre o que são ou o que devem ser o ensino e a pesquisa, mas caminhamos para o sentido de uma construção plural de direcionamentos reflexivos para que esses processos possam ser cada vez menos excludentes diante da desigual realidade brasileira.

Para refletirmos sobre nosso campo de atuação - a Administração -, é importante reforçarmos a existência de sujeitos e práticas que são políticas, que se posicionam, que se constroem e que, de modo algum, são somente determinados pelas estruturas. A construção de diversos saberes articulados que viabilizam o saber-fazer e o saber-poder das relações sociais de produção devem fazer parte do modo como a Administração é vista (Carrieri, 2014Carrieri, A. P. (2014). As gestões e as sociedades. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1, 19-57. doi: 10.25113/farol.v1i1.2592
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; Faria, 2004Faria, J. H. (2004). Economia política do poder. Curitiba, PR: Juruá.; França-Filho, 2009França-Filho, G. C. (2009). Para um olhar epistemológico da administração: Problematizando seu objeto. In R. S. Santos (Org.), A administração política como campo do conhecimento. Salvador, BA: UFBA, 119-143. ). A compreensão de que somos seres políticos possibilita que nós tenhamos consciência de nossas posições de poder na construção científica para que, em um segundo momento, possamos questionar e contestar nossas próprias práticas de ensino, de extensão, de pesquisa e consultorias. Nesse sentido, cabe refletir se nós, como professores, estudantes, pesquisadores e consultores, estamos trabalhando na expansão do conhecimento para além das fronteiras acadêmicas já estabelecidas, auxiliando na composição de outras formas de conhecer o mundo, ou se estamos apenas obtemperando nossos trabalhos em um movimento circular infinito de nós para nós mesmos, tornando-nos apenas replicantes de um conhecimento, como no filme Blade Runner (Deeley, Fancher Peoples, & Scott, 1982), que tem data para findar.

A posição que buscamos romper em relação aos estudos sobre gestão é aquela que, hermética, constrói um conhecimento inacessível a grande parte da população brasileira. Estamos considerando um cenário em que 6,8% das pessoas acima dos 15 anos, um total de 11,3 milhões, são analfabetas, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) de 2018 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019). Em termos de brasileiros que possuem ensino superior completo, a mesma pesquisa indica que são apenas 16,5% da população com 25 anos ou mais de idade. O relatório “Indicador de Analfabetismo Funcional”, divulgado em 2018 pela Ação Educativa em conjunto com o Instituto Paulo Montenegro (Ação Educativa & Instituto Paulo Montenegro, 2018), coloca que 29% das pessoas entre 15 e 64 anos são analfabetas funcionais. É nesse sentido que devemos questionar o quanto nossos trabalhos científicos em EOR são acessíveis ou o quanto, pelo menos, eles buscam ser.

Afinal, qual é o conhecimento que estamos produzindo? Sobre o que, para que e para quem estamos pesquisando? Nossa crítica ao mainstream da Administração é acessível aos 83,5% da população brasileira que não possuem ensino superior? Estamos pesquisando para nós mesmos e perpetuando um saber que criticamos ser excludente? Caso nosso movimento seja de auxiliar no processo de questionamento das estruturas de poder vigentes, como estamos fazendo isso? Estamos nos colocando como simples transmissores do conhecimento que produzimos (ou replicamos) em nossas universidades? Ou estamos realizando um processo de construção conjunta de saberes, em uma incessante troca com o ambiente desigual que nos cerca?

Ibarra-Colado (2006)Ibarra-Colado, E. (2006). Organization studies and epistemic coloniality in Latin America: Thinking otherness from margins. Organization, 13(4), 463-488. doi: 10.1177/1350508406065851
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e Souza, Costa e Pereira (2015)Souza, E. M., Costa, A. S. M., & Pereira, S. J. (2015). A organização (in)corporada: Ontologia organizacional, poder e corpo em evidência.Cadernos EBAPE.BR, 13(4), 727-742. doi: 10.1590/1679-395118624
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colocam que os processos administrativos, da gestão e dos fenômenos organizacionais são naturalizados nas teorias consideradas tradicionais na Administração. Os autores ainda consideram que esse processo exclui a conjuntura sócio-histórica de sua construção. Ademais, as teorias desenvolvidas no século XX do conhecimento administrativo realizam um movimento unilateral de edificação de uma realidade organizacional e falseamento embelezado do real perante um prisma da razão científica, natural.

Na compreensão de autores como Misoczky, Flores e Böhm (2008)Misoczky, M. C., Flores, R. K., & Böhm, S. (2008). A práxis da resistência e a hegemonia da organização. Organizações & Sociedade, 15(45), 181-193. , Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014)Carrieri, A. P., Perdigão, D., & Aguiar, A. R. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: Outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi: 10.5700/rausp1178
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, Barros e Carrieri (2015)Barros, A., & Carrieri, A. P. (2015). O cotidiano e a história: Construindo novos olhares na administração. RAE-Revista de Administração de Empresas, 55(2), 151-161. doi: 10.1590/S0034-759020150205
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e Wanderley e Barros (2018)Wanderley, S., & Barros, A. (2018). Decoloniality, geopolitics of knowledge and historic turn: Towards a Latin American agenda. Management & Organizational History, 13, 1-19. DOI: 10.1080/17449359.2018.1431551
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, o conhecimento teórico tradicional desenvolvido na Administração é anglocentrado e, antes mesmo, eurocentrado, o que inibe a possibilidade, com base no contexto local, de sermos sujeitos da nossa própria história de gestão. Para muitos desses autores, essas teorias administrativas têm como base uma espécie de “racismo epistêmico”, desconsiderando o conhecimento que não é produzido nas localidades tidas “centrais” pela incapacidade de generalizar e universalizar os modelos de gestão.

As pesquisas e teorias desenvolvidas de maneira periférica em relação à dominância europeia e estadunidense são limitadas pelo entendimento que se tem do que são organizações. As bases desse conhecimento foram obtidas a partir da comparação entre os traços que são comuns ao objeto analisado e ao que foi construído por Max Weber como tipo ideal. Assim, quase todo agrupamento humano poderá ser entendido como uma organização. Ao mesmo tempo, a supremacia do capitalismo liberal dispõe que há maneiras ótimas de se gerenciarem essas organizações e que elas se aproximam muito das elaborações que são hegemônicas nos Estados Unidos (EUA), como apontou Grey (2010)Grey, C. (2010). Organization studies: Publications, politics and economics. Organization Studies, 31(6), 677-694. doi: 10.1177/0170840610372575
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. Como efeito, é comum a consideração de que a forma estadunidense de gerenciar empresas capitalistas assume a feição de ser um conjunto neutro de técnicas que podem ser adotadas por qualquer “organização”. Assim, um modelo de gestão que foi criado no contexto específico da empresa capitalista passa a servir como fundamento para a condução de todo e qualquer empreendimento humano.

Grey (2010)Grey, C. (2010). Organization studies: Publications, politics and economics. Organization Studies, 31(6), 677-694. doi: 10.1177/0170840610372575
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relata que o questionamento da hegemonia norte-americana na produção de conhecimentos na área de EOR (e em outras áreas de conhecimento) abre espaços para trabalhos produzidos em outros lugares. Para esse autor, o afloramento de outras pesquisas revela a multiplicidade de contextos sócio-históricos nos quais os EORs se desenvolveram. Em complemento, cabe aos pesquisadores (locais) questionarem a construção hegemônica que se faz presente na área e é cotidianamente reproduzida na mídia especializada, nas editorias dos periódicos, no conhecimento produzido, nas universidades, nas pesquisas e até mesmo na escrita dos resultados empíricos encontrados.

O compromisso que temos como pesquisadores imersos em um sistema que prega, propaga e replica a desigualdade é aproximar nossas pesquisas do popular, da nossa realidade. Esse popular, ou mesmo o pequeno do ponto de vista histórico, e os movimentos que se conectam à literatura menor (Deleuze & Guattarri, 2014Deleuze, G., & Guattari, F. (2014). Kafka: Por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica.) são resistências às imposições dos sujeitos de maior poder que insistem em prescrever e estabelecer os caminhos para a organização da vida. Com esse popular, que resiste, que sofre, mas que também joga com as opressões por meio das táticas (Certeau, 2012Certeau, M. (2012). A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer (18ª ed.). Petrópolis, RJ: Editora Vozes .), é que nossas pesquisas em EOR devem estar comprometidas. Com tamanha exclusão aos meios formais de conhecimento, estarmos descomprometidos com a manutenção do mainstream da Administração é o mínimo que podemos fazer. Estudar por meio do processo e do diálogo é auxiliar a área no caminho rumo à compreensão das formas alternativas de gerir; da mesma forma, é assimilar o papel que temos dentro da hierarquia de saber e de poder para não replicarmos o sistema de exclusão que buscamos criticar.

O impacto nas sociedades atuais - como as crises econômicas que deixam de ser locais, o desenvolvimento de unidades produtivas que fomentam a escravidão e o trabalho infantil, as queimadas fomentadas pelo empresários da terra nos considerados pulmões do planeta, o constante desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a produção cada vez mais racional e mecanizada, a perseguição política ao conhecimento e o ressurgimento de ideais que valorizam o ódio e a intolerância - pode ser representado por elementos como:

[...] o relativismo e o pluralismo cultural - que por sua vez seriam caracterizados pela dissipação da objetividade e da racionalidade; pela espetacularização da sociedade; pela cultura de massa; pela naturalização do caráter efêmero e transitório de todas as coisas; pela comoditização do conhecimento. (Carrieri et al., 2014Carrieri, A. P., Perdigão, D., & Aguiar, A. R. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: Outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. doi: 10.5700/rausp1178
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, p. 699)

Diante desse cenário social, os estudos organizacionais parecem naturalizar as organizações e seus processos, buscando uma efetividade racional e desempenho da gestão organizacional, não havendo interesse nas variadas determinações da vida efetiva. Em diversos estudos, a organização, conceito abstrato, é transformada em objeto real, em realidade. Ela é naturalizda, segundo Berger e Luckmann (1998)Berger, P. L., & Luckman, T. (1998). A construção social da realidade: Tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. e Souza et al. (2015)Souza, E. M., Costa, A. S. M., & Pereira, S. J. (2015). A organização (in)corporada: Ontologia organizacional, poder e corpo em evidência.Cadernos EBAPE.BR, 13(4), 727-742. doi: 10.1590/1679-395118624
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, e passa a ser um ente, não uma criação. Nos discursos, a “organização-abstração” recebe um nome, um pronome pessoal e age. A vida organizativa dos seres humanos, como vida em sociedade, deixa de ser importante, é diluída nos discursos, deixa de existir.

Quando discutimos sobre os EORs, devemos ter em mente que estamos tratando de uma área que possui diversas epistemologias e visões de mundo. Estamos tratando, conforme nos direciona Thiollent (2014)Thiollent, M. (2014). Estudos organizacionais: Possível quadro referencial e interfaces. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 1(1), 1-14. doi: 10.21583/2447-4851.rbeo.2014.v1n1.28
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, da pesquisa em organizações, bem como de suas especificidades culturais, econômicas, políticas e sociais. Não é uma investigação que abarca somente as empresas e as instituições públicas, políticas ou sociais, mas a vida social organizada e as diversas práticas organizativas. Essa, então, considera que as organizações são compostas por sujeitos, o que auxilia em não deslocar a organização das práticas desses mesmos sujeitos. Essa concepção nos auxilia, inclusive, no processo de repensar o que é a gestão, o gerir, o administrar, fugindo de uma perspectiva totalizante.

É preciso pensar no alcance do estudo do ordinário como um trabalho de uma literatura menor confrontada com o mainstream dominante da Administração. Para Deleuze e Guattari (2014)Deleuze, G., & Guattari, F. (2014). Kafka: Por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica., a literatura menor é aquela que se contrapõe à literatura maior, não por ser reduzida ou por seu tamanho, mas pelo valor que recebe a escrita do que é tido como corriqueiro, cotidiano, diário. A literatura menor diz e conversa sobre os fazeres do dia a dia das pessoas que não ocupam cargos importantes ou poder diferenciado, ou que pertencem às classes e estamentos não privilegiados. O menor fala sobre a vida corriqueira do homem comum. Sobre a paixão pelas coisas pequenas, pelas coisas insignificantes, em que ainda sobrevivem possibilidades de resistência (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Benjamin, W (Org.), Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas). São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 197-221.).

Os EORs, como área interdisciplinar, podem ter um importante aliado no processo de reflexão que busca construir um conhecimento que seja pertinente e acessível em âmbito local, ordinário, fugindo de uma perspectiva generalizante: a História. O caminho que aqui propomos envolve a historicização das pesquisas e do ensino nos/dos EORs. É preciso repensar as fontes, os sujeitos com quem estamos trabalhando, os modos com que estamos praticando nossas atividades para, finalmente, termos pelo menos nossas intenções voltadas para o debate amplo e acessível do conhecimento de organizações para com a sociedade.

A perspectiva histórica no âmbito dos EORs pode auxiliar na aproximação com o cotidiano e os saberes desenvolvidos distantes da lógica excludente da academia. Apontamos, nesse sentido, para a valorização de saberes construídos e difundidos localmente, debruçando em investigações que sobrelevem o ordinário, contrapondo a visão hegemônica da Administração que busca silenciar saberes oriundos das experiências, e, por isso, de menor valor. A opção pelo ponto de vista histórico nos auxilia no processo de compreensão dos fazeres anônimos que compõem a diversidade brasileira, enfrentando a supremacia dos estudos que tratam dos sujeitos e eventos “magníficos” e “grandiosos”, mas a-históricos.

É possível trazermos para os EORs o entendimento de que a história é dinâmica e reconstruída no tempo presente (Neves, 2010Neves, L. A. (2010). História oral: Memória, tempo, identidades (2ª ed.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.). Ela atende aos interesses dos sujeitos de maior poder que, sob uma justificativa de neutralidade, impõem e perpetuam as prescrições excludentes do que deve ou não ser considerado conhecimento legítimo. O caminho de questionamento ontológico e epistemológico das pesquisas na Administração foram trilhados por Joaquim e Carrieri (2018)Joaquim. N. F., & Carrieri, A. P . (2018). Construção e desenvolvimento de um projeto de história oral em estudos sobre gestão. Organizações & Sociedade, 25(85), 303-319. doi: 10.1590/1984-9250857
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, em uma crítica ao chamado funcionalismo sociológico. Repensar, em nossas pesquisas, formas de gerir diferentes das ensinadas pelas escolas de Administração brasileiras, ou seja, importadas da América do Norte, nos faz reconstruir e questionar os regimes de verdade até pouco tempo inquestionáveis sobre os fenômenos organizacionais.

O estudo conjunto de História e EOR pode nos auxiliar no trabalho de pesquisa de práticas por vezes marginalizadas, investigando formas múltiplas de significações, fugindo de padrões determinísticos, destacando a expansão do conhecimento em perspectivas alternativas (Barros & Carrieri, 2015Barros, A., & Carrieri, A. P. (2015). O cotidiano e a história: Construindo novos olhares na administração. RAE-Revista de Administração de Empresas, 55(2), 151-161. doi: 10.1590/S0034-759020150205
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). A perspectiva histórica auxilia, nesse sentido, o trabalho de investigação que reconhece as incoerências das narrativas totalizantes e transparece as narrativas que não atendem a lógica dominante. É por isso que podemos pesquisar e ensinar práticas que historicamente passaram “despercebidas” aos olhos da gestão. O “despercebido” foi, geralmente, reprimido, violentado, calado, marginalizado e demarcado como outro, e, por isso, de menor valor científico. Historicizar a Administração faz com que nossos olhares se voltem para as práticas sociais, para os saberes populares, para as vivências, as afetividades, as experiências etc. que não compactuam com a racionalidade instrumental, mas, sim, são voltados para a diversidade.

Com os olhares influenciados pela perspectiva histórica, as grandes conquistas, teorias, os grandes monumentos, sujeitos e práticas são colocados em segundo plano para notabilizar formas singulares de se pensarem as organizações. Nesse sentido é que os saberes locais, suas histórias e memórias se tornam protagonistas, assim como as formas locais de gestão e as teorias erigidas e adaptadas localmente. Esse movimento caminha conforme sugeriram Wanderley e Barros (2018)Wanderley, S., & Barros, A. (2018). Decoloniality, geopolitics of knowledge and historic turn: Towards a Latin American agenda. Management & Organizational History, 13, 1-19. DOI: 10.1080/17449359.2018.1431551
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, para consideração de contextos sociais e culturais nas pesquisas em EOR.

A possibilidade de conciliar os debates sobre história com estudos que fogem dos grandes centros é estimulada por Wanderley e Barros (2018)Wanderley, S., & Barros, A. (2018). Decoloniality, geopolitics of knowledge and historic turn: Towards a Latin American agenda. Management & Organizational History, 13, 1-19. DOI: 10.1080/17449359.2018.1431551
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, mobilizando a gestão e o conhecimento organizacional para questões mais plurais. A intenção dos autores é que os estudos internacionais possam reconhecer o conhecimento produzido na América Latina, diversificando o conhecimento histórico e fomentando investigações que possam criar possibilidades até mesmo decoloniais. Os autores colocam em discussão se a virada histórica alcançou os objetivos propostos, tendo em vista que não foram abertas outras possibilidades para o debate fora de um lugar hegemônico estadunidense ou europeu. Dessa forma, os conhecimentos das margens continuam menosprezados, coadjuvantes, fazendo com que a proposta dos autores caminhe para uma geografic turn, incluindo outros espaços de discussão e alterando as possibilidades dos conhecimentos dominantes.

Gouvêa, Cabana e Ichikawa (2018)Gouvêa, J. B., Cabana, R. P. L., & Ichikawa, E. Y. (2018). As histórias e o cotidiano das organizações: Uma possibilidade de dar ouvidos àqueles que o discurso hegemônico cala. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 5(12), 297-347. doi: 10.25113/farol.v5i12.3668
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apresentam a relevância da articulação História e Administração no sentido de emergir novos modos de exercer o trabalho de pesquisa, novas formas de considerarmos os contextos históricos e de concebermos sujeitos antes desconsiderados. Ademais, acreditamos que esse movimento destacado pelas autoras se conecta também com as formas de ensinar e de estudar em EOR. Os olhares que são estimulados para vermos os que são excluídos pelos estudos do mainstream e, da mesma forma, darmos nossos ouvidos a eles, podem estimular ações que revisem e ressignifiquem os trabalhos relacionados às gestões. Elas enfatizam:

Logo, passa a ser fundamental compreender a apreensão da história, a partir das múltiplas vozes que compõem o ambiente organizacional. Não apenas a realidade dos números, mas dos sujeitos que fazem parte da organização e que através de suas práticas cotidianas constroem o cotidiano organizacional. Diante disso, entendemos que o diálogo entre história e administração é uma importante ferramenta a fim de possibilitar que novas vozes sejam ouvidas no âmbito da gestão. (Gouvêa et al., 2018Gouvêa, J. B., Cabana, R. P. L., & Ichikawa, E. Y. (2018). As histórias e o cotidiano das organizações: Uma possibilidade de dar ouvidos àqueles que o discurso hegemônico cala. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 5(12), 297-347. doi: 10.25113/farol.v5i12.3668
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, p. 300)

Na mesma linha dos trabalhos de pesquisa, o ensino relacionado à História pode reconsiderar a forma como o conhecimento sobre a gestão é discutido, questionando a influência dos sujeitos de maior poder e as localidades consideradas “centrais” que controlam a transmissão do conhecimento. Dessa forma, são selecionados discursos e memórias que devem ser perpetuadas e aquelas que devem ser esquecidas sobre determinado conhecimento, assim como desenvolvido por Pollak (1989)Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15.. Por que a maior parte das escolas de gestão brasileiras adota as discussões de Teoria Geral da Administração com Weber e a burocracia, Taylor e a Administração científica, Fayol e a Administração clássica, Ford e seus “Princípios da Prosperidade”, mas silencia trabalhos que discutem as condições degradantes dos trabalhadores em cada um desses períodos? Por qual motivo não discutimos e ensinamos também as especificidades das gestões brasileiras e a influência da exploração portuguesa em nosso território no Brasil colonial? Por qual motivo a devastação ambiental que aniquilou nossas florestas nativas não aparece nas problematizações sobre as gestões brasileiras? Por que o trabalho forçado e o extermínio das tribos indígenas sequer são citados? Por que não historicizar a Administração a partir de nossa herança escravista e refletir sobre os EORs a partir da perversidade e da crueldade que foram naturalizadas em nosso território contra a população de origem africana?

O ensino da gestão precisa considerar que a nossa história é repleta de silenciamentos e repressões que influenciaram o caráter específico do trabalho em nosso território. Diferente da grande história e da história oficial que retrata nosso povo como pacífico, o Brasil é e sempre foi repleto de tensões, guerras e repressões que influenciam, até os dias atuais, nossos regimes trabalhistas, nossas práticas sociais, nossas formas de nos relacionarmos com os demais e nossas formas de gerir. Devemos ter em mente que a maioria das pessoas de nosso país, ou seja, as mulheres, os pobres, os negros e os trabalhadores, foi silenciada por uma minoria que detém o poder, ocupando as formas consideradas legítimas de comunicação (midiáticas ou científicas). Por isso é que fazer o movimento contrário é importante. Ao invés de estarmos distantes em nossa bolha acadêmica, devemos ir para as ruas e procurar conhecer, dialogar, construir novos caminhos em conjunto com a sociedade, e não apenas sobre a sociedade.

O principal ponto com o qual gostaríamos de contribuir nessa área por meio de nossa reflexão é exatamente o de nosso título: Estamos tornando nossas pesquisas e nossos modos de ensinar acessíveis? Estamos replicando a exclusão e reforçando a desigualdade de oportunidades por meio de nossas produções ou até de nossas aulas que estão distantes daquilo que é considerado importante em nossas localidades? Longe de estabelecermos um caminho, acreditamos que é oportuno realizarmos uma autocrítica em relação à amplitude de nossas práticas e de nosso campo de conhecimento para que continuemos realizando um questionamento coerente com nossas ações, dirimindo cada vez mais as estruturas e as hierarquias de saber e de poder. Por fim, nossas formas de ensinar e de pesquisar em EOR devem estar voltadas de fato para a inexistência de barreiras. Replicar a exclusão do conhecimento e de acesso a ele por meio da linguagem, das práticas ou de objetos distantes da realidade local nada contribui para uma gestão descomplicada.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020
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