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O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia

Resumos

As críticas do projeto Writing Culture, endereçadas ao texto etnográfico, além de não atingirem o método antropológico por excelência, a pesquisa de campo nos moldes malinowskianos, ajudaram a disseminá-la nas humanidades e nas artes. A pesquisa de campo tradicional, contudo, mostra-se inadequada aos novos temas de investigação da antropologia em um mundo mais complexo, integrado e frgmentado produzido pela globalização. Este trabalho, originalmente escrito para uma conferência, sugere a reinvenção do imaginário da pesquisa de campo antropológica a partir de sua apropriação pelo teatro e pelo cinema. Baseado no trabalho do cenógrafo venezuelano Fernando Calzadilla, o autor propõe a substituição do distanciamento e da limitação espacial da mise-en-scène malinowskiana pela cumplicidade entre observador e observado e pela pesquisa em campos multilocalizados.

pesquisa de campo; etnografia; antropologia e teatro; reflexividade crítica; pesquisa de campo multilocalizada


Writing Culture criticism, addressed to ethnographic text, did not affect the anthropological method itself, fieldwork as conceived by Malinowski. Furthermore, this criticism helped to spread Malinowskian fieldwork to humanities and arts. Traditional fieldwork, however, does not suit to the new topics of anthropological inquiry in a more complex, integrated and fragmented world produced by globalization. This paper, originally written for a conference, claims the reinvention of the imaginary of anthropological fieldwork based on its appropriation by theater and film arts. Grounded in his exchanges with the Venezuelan scenographer Fernando Calzadilla, the author propounds the replacement of distanced and spatially limited Malinowskian mise-en-scène for a multi-sited fieldwork built on complicit collaborations.

fieldwork; ethnography; anthropology and theater; critical reflexivity; multi-sited fieldwork


ARTIGOS

O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia1 1 Texto com base em trabalho apresentado pelo autor no Congresso "Fieldworks: Dialogues between art and anthropology", Tate Modern, Londres, 26-28/09/2003. As interpolações entre colchetes são de responsabilidade do próprio Autor, salvo as traduções de títulos de filme ou livro e as expressões em inglês que seguem a tradução de algum termo, em geral neologismo. (N. do T.)

George E. Marcus

Joseph D. Jamail Professor e Chair of Anthropology na Rice University, Department of Anthropology em Houston, Texas, EUA

RESUMO

As críticas do projeto Writing Culture, endereçadas ao texto etnográfico, além de não atingirem o método antropológico por excelência, a pesquisa de campo nos moldes malinowskianos, ajudaram a disseminá-la nas humanidades e nas artes. A pesquisa de campo tradicional, contudo, mostra-se inadequada aos novos temas de investigação da antropologia em um mundo mais complexo, integrado e frgmentado produzido pela globalização. Este trabalho, originalmente escrito para uma conferência, sugere a reinvenção do imaginário da pesquisa de campo antropológica a partir de sua apropriação pelo teatro e pelo cinema. Baseado no trabalho do cenógrafo venezuelano Fernando Calzadilla, o autor propõe a substituição do distanciamento e da limitação espacial da mise-en-scène malinowskiana pela cumplicidade entre observador e observado e pela pesquisa em campos multilocalizados.

Palavras-chave: pesquisa de campo, etnografia, antropologia e teatro, reflexividade crítica, pesquisa de campo multilocalizada.

ABSTRACT

Writing Culture criticism, addressed to ethnographic text, did not affect the anthropological method itself, fieldwork as conceived by Malinowski. Furthermore, this criticism helped to spread Malinowskian fieldwork to humanities and arts. Traditional fieldwork, however, does not suit to the new topics of anthropological inquiry in a more complex, integrated and fragmented world produced by globalization. This paper, originally written for a conference, claims the reinvention of the imaginary of anthropological fieldwork based on its appropriation by theater and film arts. Grounded in his exchanges with the Venezuelan scenographer Fernando Calzadilla, the author propounds the replacement of distanced and spatially limited Malinowskian mise-en-scène for a multi-sited fieldwork built on complicit collaborations.

Key words: fieldwork, ethnography, anthropology and theater, critical reflexivity, multi-sited fieldwork.

Os profissionais da antropologia e das artes enfrentaram-se em algumas ocasiões durante a história das diferentes modernidades e dos modernismos do século XX, e mesmo antes. Mas, é claro que o mais recente embate que conduz aos interesses desta conferência, no qual as cenas e os procedimentos da própria pesquisa de campo etnográfica são questionados, tem uma nítida origem nas chamadas críticas de Writing Culture dos anos 1980. Como parte de um momento, então muito mais disseminado, de efervescência interdisciplinar, essa colaboração bastante efetiva de estudiosos situados, por formação, em pontos muito diferentes das artes, humanidades e ciências sociais permitiu um exame crítico revelador do mecanismo textual de produção de conhecimento de autoridade sobre os outros e sobre as culturas. Ao fazê-lo, incentivou, e tem incentivado até o presente, uma esperança e um imaginário por tipos constantes de colaborações recíprocas altamente convergentes como um modus operandi do trabalho intelectual [aqui, estamos trabalhando no interior desse imaginário muito recente de trabalho intelectual], por um lado; e, por outro, que esse trabalho pode tornar a atividade em questão, a etnografia e a pesquisa de campo que a produz, algo inteiramente diferente das formas assumidas por ela no interior da tradição empiricista da qual surgiu – uma tradição comprometida com uma função documental e uma representação naturalista, impulsionadas pela participação e observação distanciadas e disciplinadas nos e dos mundos vitais de outros tomados formalmente como "objeto" de pesquisa.

Nesta palestra, pretendo examinar algumas das atuais ironias, tensões e possibilidades, manifestadas neste momento, da relação entre antropólogos e artistas em sua atração mútua por uma certa experiência disciplinada de investigação que coloca buscas intelectuais diretamente em contato com os modos do mundo.

Antropólogos, por mérito próprio, estavam abertos a essa crítica e ficaram aliviados em que, aparentemente, ela fosse hermeticamente textual e não tocasse a profissão quase religiosa de sua atividade de pesquisa de campo – uma formação folclórica de cultura profissional sobre a qual irei falar mais. Ela, no entanto, teve efeitos profundos na pesquisa de campo, não tanto sobre como era feita, metodológica e empiricamente [ela de fato reforçou o que chamo a mise-en-scène malinowskiana clássica, que tem criado problemas no presente e que também pretendo discutir], mas em como era pensada e concebida, bem como ampliou as comunidades intelectuais para as quais a pesquisa de campo se tornou um atraente objeto de interesse e de potencial apropriação. Para grande ambivalência dos antropólogos, as práticas que, caracteristicamente, os definia e os tornava uma corporação nas ciências sociais, viraram moda no mundo das artes e nas humanidades. Assim, os tropos clássicos da pesquisa de campo foram remitologizados conforme as sensibilidades e teorias do momento, e não apenas para antropólogos, mas também para outras comunidades intelectuais que a consideraram útil para seus projetos e apertos. Em certo sentido, desde então a antropologia vem lidando com essa revitalização e apropriação combinadas de seu método clássico. Antropólogos ficaram tanto desdenhosos como lisonjeados com o mimetismo. Além disso, eles ainda não avaliaram como esse fluxo no intercâmbio entre antropologia e artes pode ser benéfico nas condições contemporâneas, ainda pobremente articuladas, em que a pesquisa de campo é feita, as quais, finalmente, estão remodelando o poderoso imaginário malinowskiano da pesquisa de campo, o qual permaneceu como método para a antropologia.

A ferramenta e doutrina intelectual partilhada que definiu a colaboração no projeto Writing Culture e, desde então, espalhou-se pelo discurso teórico, pelos textos interpretativos e pelas obras de arte como uma espécie de marca definidora foi o exercício de uma reflexividade crítica aguda e por vezes incansável, que, primeiro, pretendia desmascarar e transgredir um regime hegemônico de modos naturalistas de narração e representação e, depois, incentivar diferentes tipos de relações e de comunidades normativas de produção de conhecimento no próprio ato de pesquisa ou de criação artística. A reflexividade crítica respondeu aos impulsos revolucionários/reformistas da vida intelectual de esquerda/liberal no período extremamente conservador dos anos 1980 e 1990. Agora, nas confusões do pós-guerra fria de esperanças e pesadelos da nova ordem mundial, esses impulsos duradouros carecem totalmente de qualquer limite social contemporâneo, e o exercício da reflexividade crítica está menos a serviço de visões políticas normativas que dos meios de descobrir o que pode ser a crítica em novos arranjos sociais, cujos contornos políticos e culturais ainda não estão claros.

A utilização dessa ferramenta ocorreu de modo bastante diferente nos domínios em que foi empregada autoconscientemente. Na produção de obras de arte e de performances, ela tem sido um meio poderoso e aberto de introduzir o propósito de crítica social e cultural em diversas manifestações. Em nome da quebra de todas as formas de representação e atuação naturalista [o antinaturalismo como um grito de guerra duradouro da crítica e da produção de arte modernistas], ela tem rompido limites, questionado efeitos e levado a arte para domínios onde nunca esteve. Na antropologia, a reflexividade crítica foi o meio de tornar visível e, deste modo, apontar para além dos tropos da escrita etnográfica, mas ao invés de romper com a mise-en-scène da pesquisa de campo, como o cronotopo a partir do qual toda esta escrita é imaginada [talvez não houvesse, no mundo dos anos 1980, o ímpeto, na verdade, a necessidade de destruir esse cronotopo, como há hoje], ela terminou por reforçá-la e foi por ela ludibriada. A reflexividade crítica levou, sobretudo, a gêneros de auto-etnografia de grau e qualidade variados, nos quais a cena malinowskiana de pesquisa de campo foi feita e refeita de acordo com critérios exploratórios acerca das condições de produção do saber antropológico além das fronteiras da diferença cultural e da tradução, mas falhou em conceber novas estratégias, formas e normas de prática para enfrentar os mundos mais complexos, paralelos e fragmentados, com os quais muitos projetos de pesquisa de campo devem, hoje, negociar.

Enfim, a reflexividade crítica, em sua forma antropológica, não pôde romper com o propósito de documentação e interpretação realista ou naturalista historicamente imbuído na etnografia e que dela emerge. Relações em pesquisa de campo podem ser concebidas de maneira diferente, e o velho naturalismo empiricista da representação etnográfica pode estar sendo profundamente solapado pela prática da reflexividade, mas a própria forma genérica permenece resolutamente associada à função documental. Em minha opinião, essa persistência do propósito realista não é tanto uma coisa má ou condenável, mas é uma dimensão inevitável, ou até desejável, do trabalho intelectual, principalmente em forma de etnografia. Há muito, Raymond Williams, inspirado pelo teatro brechtiano e pela possibilidade do que designou estratégias críticas subjuntivas na arte de representar, contestou aqueles que atacam o realismo como uma forma burguesa e a ele não propõem alternativa específica alguma, salvo um tipo diferente de crítica. Apenas flertando momentaneamente com círculos de expressão e recepção de vanguarda, a força, o apelo e a efetividade da antropologia dependem da capacida de fixar a expressão realista em formas inusitadas e críticas. A tradição da pesquisa de campo está à altura disso, mas unicamente em novas configurações. Artistas, que se viram atraídos para a pesquisa de campo em seu modo crítico-reflexivo, enxergam esse potencial em suas práticas antropológicas. Os próprios antropólogos, em minha opinião, não o enxergam, ou não o fazem de modo tão claro. Nessa diferença repousa, creio, a direção para ulteriores discussões e colaborações estimulantes entre artistas e antropólogos quanto à prática da pesquisa de campo.

Em meados dos anos 1990, a apropriação artística dos métodos etnográficos, estimulada pelas críticas de Writing Culture, que também repousavam no apelo a políticas de identidade, que seguiram essas críticas, foi submetida a um comentário crítico incisivo em um ensaio bem curto de Hal Foster, "Artist as Ethnographer?" ["Artista como etnógrafo?"], inserido em um volume que Fred Myers e eu editamos. Foster afirmou que o outro cultural ou étnico substituiu a classe operária, em cujo nome o artista luta. O que era o local da pesquisa de campo etnográfica tornou-se o local da transformação artística, que também é o local da potencial transformação política. A clássica mise-en-scène malinoswskiana da antropologia define um lugar de marginalidade e alteridade que, para a política de identidade que sucedeu a crítica do projeto Writing Culture, se tornou o espaço primário da subversão da cultura dominante. Nessa política cultural da marginalidade, desempenhada pela obra de arte, Foster vê o perigo de clientelismo ideológico, para o qual Walter Benjamin advertira.

Adicionalmente, Foster previu que a próxima luta pela cultura não estaria situada em espaços marginais, ou enclaves, mas em um campo de imanência definido pelo funcionamento de um capitalismo multinacional globalizante, no qual antigos modelos geopolíticos de centro e periferia (em cujos termos também a etnografia foi fundada e se desenvolveu) não teria mais lugar. "Hoje, o artista como pesquisador de campo pode buscar trabalhar com comunidades estabelecidas – diz Foster – com as melhores intenções de engajamento político e transgressão institucional, só em parte, para ter esse trabalho recodificado por seus patrocinadores como proselitismo social, desenvolvimento econômico, relações públicas ou arte."

Esse pendor pelo etnográfico também é acompanhado por alguns desenvolvimentos da arte avançada nas metrópoles anglo-americanas. Nos últimos 35 anos, Foster nota o deslocamento da investigação dos componentes objetivos da obra de arte para suas condições espacias de percepção, em primeiro lugar, e, depois, para a base corpórea dessa percepção – mudanças observadas desde as obras minimalistas do início dos anos 1960 até a arte conceitual, a arte performática, a body art e as obras site-specific , nos anos 1970. Nesse percurso, a instituição artística não pôde mais ser descrita simplesmente em termos de espaço físico (estúdio, galeria, museu); ela também era uma rede discursiva de outras práticas e instituições, outras subjetividades e comunidades. E quais foram os resultados para a arte? O mapeamento etnográfico de determinadas instituições, ou de uma comunidade afim, é uma forma elementar assumida pela arte site-specific hoje. Mas as novas obras site-specific ameaçam tornar-se uma categoria de museu – um instrumento para a crítica mundana bem-comportada. Aqui, valores como autenticidade, originalidade e singularidade, banidos como tabus cruciais da arte pós-moderna, retornam como propriedades do local, da vizinhança ou da comunidade da qual o artista se ocupa. Tais obras servem aos propósitos daqueles que as patrocinam, diz Foster, a exposição se torna o espetáculo onde o capital cultural é acumulado. E ele termina com este cenário, que admite ser uma caricatura:

Um artista é contatado por um curador a respeito de uma obra site-specific. Ele, ou ela, vai até a cidade para mobilizar a comunidade, indicada pela instituição, a colaborar. No entanto, há pouco tempo, ou dinheiro, para muita interação com a comunidade. Não obstante, um projeto é concebido e se realiza uma instalação no museu e/ou uma obra na comunidade. Poucos dos princípios do observador-participante da etnografia são observados, muito menos criticados. E apesar das boas intenções do artista, apenas um envolvimento parcial do outro localizado [sited other] é efetuado. Quase naturalmente, o foco passa da investigação cooperativa para uma "autoconfiguração etnográfica" na qual o artista não é tanto descentrado quanto o outro é configurado à maneira artística.

Embora concorde com muitos dos argumentos de Foster, gostaria de indicar três objeções a suas críticas:

1. Ao dirigir sua crítica aos artistas como etnógrafos, Foster parece assumir a perspectiva e a voz do que poderia ser o antropólogo tradicional, com seu toque de ressentimento: os artistas só estão brincando com a séria atividade da etnografia, aquém do padrão exigido, no interesse de acumular capital simbólico no etos experimental do empreendimento artístico. Talvez isso seja verdade para a instalação site-specific, mas uma acusação tão genérica de má-fé ou ingenuidade não se justifica. Deve-se admitir o fato de que a pesquisa de campo empregada em alguns projetos artísticos é, de um modo sofisticado, bem concebida e adequada aos seus propósitos. Isto sugere que, uma vez que a pesquisa de campo/etnografia tenha se disseminado por comunidades mais amplas como uma prática ideal, como ocorreu com as críticas do projeto Writing Culture, então suas virtudes não podem ser exclusivas à antropologia – ou, ao menos, uma apropriação benevolente dela é a orientação mais sábia a se adotar. Além disso, no caso de algumas áreas da arte, como no teatro e cinema, que desejo abordar logo mais, é importante reconhecer que, desde muito, há práticas investigativas e preparatórias que, embora similares à pesquisa de campo quanto à forma, têm, de fato, genealogia e propósito completamente independentes no modo como se encaixam em uma configuração característica das práticas artísticas. É com esses casos e essas arenas de produção artística, uma vez identificados, entendidos e respeitados como paralelos mas separados da voga do mimetismo (mesmo que cuidadoso) de práticas antropológicas, que os antropólogos podem aprender algo válido com relação as consideráveis instabilidades da aplicação do modelo tradicional de pesquisa de campo em seus projetos atuais. [Há aqui um tópico tangencial, de importância e interesse consideráveis, sobre os perigos da inveja mútua, ou do querer-ser, que discussões recentes entre a antropologia e a arte às vezes produz. Foster também examina esse fenômeno e suas fontes comuns como parte de suas críticas. Prefiro encarar essa questão em termos de instâncias específicas de projetos em colaboração, ambas históricas e recentes, envolvendo determinados artistas e antropólogos que ocupam a mesma, tradicionalmente concebida, cena malinowskiana de pesquisa de campo. O problema não é tanto a postura acadêmica distanciada de inveja mútua, mas a criação de tendências, inclusive mais fortes, de exorcizar o terceiro presente – o nativo local para quem a pesquisa de campo comum é orientada. Essas colaborações intelectuais são com freqüência bem-sucedidas, mas ao preço de como os nativos se tornam "objeto" dessas colaborações.]

2. É ao padrão da modalidade tradicional de pesquisa de campo antropológica – o que chamei a mise-en-scène malinowskiana –, que Foster responsabiliza o mimetismo artístico da pesquisa de campo, e com efeito é essa modalidade tradicional que artistas acham atraente apropriar, como Foster explicou em detalhe. Para os artistas, a pesquisa de campo fora da antropologia é uma prática estável – contudo, invalidada por sua associação profunda com a produção de uma forma distinta de naturalismo documental. Entretanto, há um espaço, especialmente se reimaginado conforme as críticas do projeto Writing Culture, no qual uma arte de interesse pode ser feita. Mas, a partir do que acontece na antropologia contemporânea (antropologia que é marcadamente diferente, até mesmo da dos anos 1990, em alguns dos seus mais recentes interesses), a pesquisa de campo como uma prática exclusiva é cada vez mais instável, como demonstrarei. A própria pesquisa de campo – quais são são suas fronteiras espaciais e seus limites temporais, quais são suas formas, o que se quer hoje dos "informantes", como é construída, delineada e concebida durante o aprendizado –, em vez do texto etnográfico e sua forma, é atualmente o objeto de experimentação na pedagogia e prática antropológicas, principalmente para etnógrafos estudantes em formação, na medida em que desenvolvem novos tópicos em circunstâncias completamente diferentes das de seus professores e antepassados. Embora não mereça o termo crise (como na crise da representação dos anos 1980), certamente há um sentimento disseminado mas ainda pobremente articulado – especialmente entre os estudantes – de que o etos da pesquisa de campo e os modos de inculcá-la na cultura profissional não encontram as realidades de sua execução nas circunstâncias atuais de investigação. Nesse sentido, a crítica emergente da pesquisa de campo em antropologia está onde a crítica aos textos etnográficos estava antes de ser enunciada pela iniciativa de Writing Culture nos anos 1980. Do lado da antropologia, ao menos, a questão é que valor pode ter o exemplo das apropriações de sua prática central pelo mundo da arte, embora em sua forma tradicional, para sua própria situação atual de reimaginar a modalidade tradicional de pesquisa de campo, talvez até incorporando aspectos de estilos de investigação mais amplos, constitutivos de alguns tipos de obras de arte que incorporaram, elas mesmas, a pesquisa de campo em seus processos? Que repercussão as apropriações experimentais das modalidades tradicionais de pesquisa de campo em antropologia feitas pelo mundo da arte, para seus propósitos complexos, podem ter para uma antropologia que, por necessidade, está passando da mise-en-scène malinowskiana para a reinvenção dela? Gostaria de pensar que há muito mais nessa conjuntura de reinvenção que a antropologia pode aprender de certos domínios artísticos, onde o que parece pesquisa de campo foi incorporado a práticas de investigação mais complexas. Um exame dessas práticas artísticas tem muito o que mostrar para a antropologia, enquanto ela enfrenta a ulterior diminuição de sua função documental característica e se envolve em projetos para os quais a modalidade clássica de pesquisa de campo é insatisfatória. Creio que novas técnicas, ou ao menos uma nova estética da técnica, mesmo de um tipo formal, são necessárias para aperfeiçoar a mise-en-scène malinowskiana, as técnica que já são cultivadas por algumas artes que mostraram afinidade e desejo por aspectos da própria arte da etnografia em seus próprios processos. Mas que artes? [O que me leva ao terceiro ponto acerca de Foster.]

3. Gostaria de concordar que a apropriação da pesquisa de campo etnográfica pela tendência de arte site-specific e de instalações, às quais ela parece adequada, é vulnerável, da maneira como Foster caricaturou em sua crítica. Entretanto, onde encontro apropriações similares ou práticas paralelas à pesquisa de campo etnográfica, nos bastidores, por assim dizer, é no teatro e no cinema, que não são tão vulneráveis à espécie de crítica que Foster fez à arte site-specific com pretensões etnográficas. Embora a contribuição do que parece com a pesquisa de campo nas fases preparatórias da produção teatral ou cinematográfica possa ser tão curta quanto (e aparentemente superficial, do ângulo da auto-estima e sensibilidade antropológicas no modo clássico), não é tão facilmente assimilada quanto o capital cultural de instituições culturais mais poderosas e ricas. Ao contrário, o que é investigação etnográfica nas complexas ações coletivas que resultam em uma produção teatral ou cinematográfica está profundamente imiscuida nesses processos, de tal modo que, o que parece um momento ou fase da pesquisa de campo etnográfica em tais esforços, talvez deva ser repensado, ampliado ou prolongado em termos do poderoso conceito de pesquisa de campo que regula a cultura profissional da antropologia. Trabalhar com o que se parece com pesquisa de campo nos ofícios de teatro e de cinema, aplicando-lhes uma perspectiva metaetnográfica, poderia oferecer para a antropologia tanto um canal novo para continuar as discussões e colaborações com a arte, para além das balizas desse intercâmbio nos anos 1990, como fornecer um modelo apropriado de prática alternativa para enfrentar os desafios atuais das modalidades tradicionais de pesquisa de campo. A questão não é tornar a pesquisa de campo antropológica uma forma de teatro – mais do que já é – mas usar experiências e técnicas deste para reinventar os limites e as funções da pesquisa de campo em antropologia.

Minha experiência e opinião pessoais quanto ao valor da prática teatral para uma etnografia realista começou com os comentários de Raymond Williams, em um livro de entrevistas de 1981, sobre o potencial das técnicas do teatro brechtiano para resgatar a tradição realista da ciência social e da escrita histórica esquerdistas. Ele delineou o que, para mim, seria um projeto de etnografia crítica baseada em roteiros exploratórios de possibilidades em locais de pesquisa de campo – a substituição do indicativo pelo modo subjuntivo para a pesquisa de campo etnográfica, mas ainda na tradição realista. O que me impressionou foi como as técnicas de uma das maiores correntes do teatro modernista podem ser empregadas para esse propósito em uma atividade como a etnografia. Nos anos seguintes, através da crítica do projeto Writing Culture, e depois, mantive o interesse e a atenção pelas dimensões paraetnográficas das investigações, dos workshops, e dos processos pelos quais é planejada a aparência de produções fílmicas e teatrais, bem como pela pesquisa de que resultam estilos de atuação. Por exemplo, eu estava particularmente interessado na construção de A batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, e no trabalho de pré-produção para diversos filmes do diretor independente norte-americano John Sayles, especialmente Matewan. Ao mesmo tempo, quanto ao teatro, comecei a prestar atenção na história das colaborações entre artistas de teatro e antropólogos, os últimos quase sempre no papel de dramaturgos. Havia os exemplos conhecidos de Colin Turnbull e a dramatização de seu primeiro livro e as colaborações de Victor Turner com Richard Schechner, ao final da vida e da carreira do primeiro. Mais recentemente, aproveitei um rico material de como produções teatrais incorporam investigações etnográficas ao acompanhar o ingresso de Dorine Kondo no mundo do teatro asiático-americano e, especialmente seu trabalho, nos anos 1990, como membro de um grupo de dramaturgos, na criação e produção da peça de Anna Deaver Smith Twilight : Los Angeles, 1992 [Crepúsculo: Los Angeles, 1992] (para a qual Kondo produziu uma narrativa dialógica incluída em um dos volumes de minha série Late Editions de anuários que documentam os anos 1990 como fin-de-siècle). A obra teatral de Smith é produzida por meio da pesquisa mais etnograficamente engajada que conheço no teatro contemporâneo, fazendo do processo dramatúrgico do qual Kondo participou um acesso único ao comentário e debate acerca da pesquisa de campo construída no processo da própria produção teatral.

Enfim, no final dos anos 1990, envolvi-me no co-patrocínio, em Houston, de uma série de instalações de um grupo de artistas cubanos e venezuelanos. Uma delas, Market from here, era baseada nos temas da crítica de Writing Culture, na natureza da pesquisa de campo e na reflexividade do antropólogo. Foi criada pelo artista e crítico cubano Abdel Hernandez e por um importante cenógrafo do teatro venezuelano, Fernando Calzadilla. A instalação foi criada, após meses de pesquisa de campo cooperativa, em Catia, o mercado urbano de Caracas, e foi recriada em Houston. Admirava a parte de Cazadilla nesse projeto, especialmente a tradução de sua pesquisa de campo no plano da instalação. Posteriormente, mantive uma troca ativa com Calzadilla e meu interesse transferiu-se para o seu trabalho como criador de produções teatrais na Venezuela e em outros lugares, pelo qual angariou uma reputação considerável. O profundo conhecimento teórico e prático de Calzadilla sobre todos os elementos da produção teatral apenas elevou o nível de nossa discussão sobre cenografia. Relacionados ao meu pensamento sobre a situação da modalidade tradicional de pesquisa de campo em antropologia e sobre a necessidade de reinventá-la para o âmbito dos projetos de pesquisa, que sobretudo os jovens antropólogos estão assumindo, achei aspectos de minha discussão com Calzadilla durante os últimos três anos muito relevantes para pensar esses problemas da pesquisa de campo em antropologia, além de seu relato de como a pesquisa de campo serve ao seu ofício e da imagem mais ampla de produzir teatro pessoalmente satisfatório, de um modo que muitas narrativas recentes de pesquisa de campo em antropologia não têm sido. Ainda não está completamente claro, para mim, o que na atividade de Calzadilla como cenógrafo preenche uma sensação de necessidade na reimaginação da pesquisa de campo em antropologia, mas quero dedicar os resíduos dessa conversa para especular um pouco sobre isso. Depois de uma discussão sobre o que na mise-en-scène malinowskiana requer a reinvenção de suas normas e formas, quero retornar ao meu intercâmbio com Calzadilla para centrar-me brevemente em um exemplo particular que discutimos, a preparação da montagem de uma peça de Garcia Lorca em Caracas em 1994.

Agora, quero mudar de assunto e dar uma noção do que, nos últimos anos, tornou os ideais reguladores tradicionais da pesquisa de campo em antroplogia instáveis, um objeto a ser reinventado ou reimaginado. Em parte, isso se deve à falência do caráter folclórico dominante, a partir do qual, por muito tempo, a pesquisa de campo foi regulada, concebida e idealizada para articular algumas dimensões que sempre estiveram na mise-en-scène malinowskiana, mas que agora são mais importantes do que nunca; e à inadequação deste caráter para orientar, principalmente, os aprendizes de etnógrafo nos tipos de pesquisa que cada vez mais estão realizando – não está claro, baseado nos velhos tropos normativos, o que deva ser a experiência da pesquisa de campo nesses projetos e que tipos de dados ela deve gerar. E parte da desestabilização tem a ver com as condições que estão dando nova forma aos projetos de pesquisa e demandando tanto mais como diferentes intensidades do velho etos, em sua visão e imaginação do que é a pesquisa de campo. Nesse caso, dificilmente pode-se aplicar o termo crise, como na crise de representação dos anos 1980; mas, como ocorreu com o aumento das tendências críticas reflexivas, difusamente articuladas antes da crítica da escrita dos anos 1980, há agora uma situação comparável com a pesquisa de campo – a mise-en-scène malinowskiana não é, de modo algum, um termo ou marco vazio mas apenas cobre as formas e normas que efetivamente assume quando aplicado hoje.

Em meu trabalho recente, tenho utilizado argumentos de outra ordem sobre essa mudança de natureza da pesquisa de campo, principalmente para estudantes em novos âmbitos temáticos, agrupados em torno da noção do que os campos multilocalizados [multi-sited] dos projetos contemporâneos fazem à concentrada mise-en-scène malinowskiana, e em torno do conceito de cumplicidade como redefinidor da relação nuclear de colaboração em pesquisa de campo, de que sempre dependeram as pretensões de autoridade do conhecimento etnográfico.

Primeiramente, a respeito da situação do modo folclórico pelo qual a pesquisa de campo foi constituída em cultura profissional da antropologia e do papel-chave que ele desempenhou na iniciação dos estudantes em projetos de pesquisa de campo definidores de suas carreiras.

Não usei, um punhado de vezes, descuidadamente o termo mise-en-scène em referência ao imaginário que medeia e regula a manifestação de método em antropologia. A pesquisa de campo tem sido um objeto de reflexão, intensamente teatral ou fílmico, da antropologia com um nítido estilo visual desde sua estréia e consolidação ideológica com Malinowski, como um símbolo-chave, rito de iniciação e método antropológico [a saber – já no começo de Argonautas do Pacífico Ocidental, no qual a pesquisa de campo é evocada e suas práticas inculcadas, Malinowski salmodia: "Imagine-se, de repente, sentado, rodeado por todos os apetrechos, sozinho em uma praia tropical perto de uma aldeia nativa, enquanto a lancha ou escaler que o trouxe navega até desparecer de vista"]. Antropólogos sempre imaginaram a pesquisa de campo, uns dos outros e ao ensiná-la aos iniciandos, não apenas como histórias, contos do campo, mas como imagens e roteiros, mesmo em momentos mais analíticos. Um regime de método tão dramatúrgico é tanto mais efetivo quando a experiência de pesquisa de campo de fato corresponde, ao menos aproximadamente, ao imaginário que antropólogos entrevêm a partir do que mutuamente relatam de experiências distantes, que são apenas deles. Há uma grande recompensa posta na etnografia que é capaz de escolher cenas nas quais se pode entrar por meio de experimentos mentais concretamente visualizados e situados. No momento, gostaria apenas de salientar que há uma afinidade ou adequação particular em pensar o ofício cenográfico como uma forma de etnografia.

Outro aspecto característico, se não peculiar, do saber profissional sobre a pesquisa de campo em antropologia é de que ele é muito particular às fases iniciais da experiência de pesquisa de campo, quando é constantemente evocado (como em Malinowski) sob a imagem do "primeiro contato" e da exaltada alteridade mental. A experiência de pesquisa de campo do iniciando é quanto o imaginário está enviesado, mesmo quando exprime a experiência de pesquisadores calejados. Mas e quanto a pesquisa continuada de um antropólogo que trabalha em determinado local por uma década, ou por décadas? Há, na antropologia, algum modelo de método que se assemelhe à pesquisa de campo virtuosa? Ou que, ao menos, seja reconhecível como pesquisa de campo de acordo com a mise-en-scène malinowskiana?

Minha hipótese é que as obras tardias dos antropólogos maduros geralmente operam livres dos tropos de suas obras anteriores. E argumentaria que, de algum modo, pesquisas de campo iniciatórias, em certos âmbitos em que muitos antropólogos mais jovens estão trabalhando hoje, requerem algo da idéia aberta e difusa do que pode ser a pesquisa de campo, idéia que parece ser característica da pesquisa de campo virtuosa, apenas se articulada ao imaginário tradicional no qual os etnógrafos em formação são treinados. Portanto, é um problema de pedagogia. Estudantes ingressam na antropologia inspirados por teorias sociais e culturais complexas, bem como pelos exemplos das segundas ou terceiras obras maduras de antropólogos experientes que admiram e querem emular, e então se defrontam com uma cultura de método ainda poderosa, insistindo que façam algo menos ambicioso. Aqui, prenuncio minha tese ao sugerir que há aspectos do ofício cenográfico, especialmente a cenografia que incorpora a pesquisa de campo do tipo malinowskiano, que são úteis de se cogitar tendo em vista um imaginário alternativo para a pesquisa de campo que possa levar em consideração a aporia do que é a pesquisa de campo em obras de maturidade, obscurecida pelo forte viés do contato inicial com a mise-en-scène malinowskiana. As normas de pesquisa de campo precisam ser libertadas do enfático e vigoroso estar lá do imaginário clássico da pesquisa de campo.

Agora, mudando para os desafios efetivos ao imaginário da pesquisa de campo tradicional, o que no mundo (hoje) levou a pesquisa de campo a se envolver em locais de investigação múltiplos e heterogêneos e em formas de colaboração, baseadas na cumplicidade, que mudaram significativamente o que os antropólogos querem dos "nativos" como "objeto" de pesquisa e comprometeram profundamente as pretensões de autoridade do conhecimento etnográfico, mesmo aqueles revisados ou reexemplificados pelas críticas reflexivas dos anos 1980? O entendimento convencional desses desenvolvimentos repousa em algumas suposições sobre a natureza da pós-modernidade, que circularam amplamente nas arenas de efervescência interdisciplinar nas últimas duas décadas, sobretudo quando as culturas e populações estabelecidas se fragmentaram, tornaram-se móveis e transnacionais, bem como mais cosmopolitas (ou, ao menos, mais invadidas ou ingeridas!) localmente; assim, a pesquisa de campo teve simplesmente de acompanhar, quando pôde, esses processos no espaço. Além disso, o peso da crítica política e ética da relação tradicional na pesquisa de campo que gera os dados etnográficos, como foi revelada pelas provas reflexivas escrupulosas da perspectiva pós-moderna, quebrou o tantinho de inocência e ingenuidade necessárias para manter a distância na relação entre o etnógrafo e o "objeto" – por isso, a cumplicidade. Um estado de ambigüidade e uma aliança de aparência imprópria agora atravessam a mise-en-scène da pesquisa de campo, assinalando uma perda de inocência e de ingenuidade, no encalço das revelações pós-modernas. Com isso, tanto a intensidade do foco quanto a integridade da relação que modelou a cena malinowskiana foram postos em xeque.

Embora seja solidário a essa compreensão tradicional dos desafios à autoconfiança tradicional da pesquisa de campo, eles não surgem apenas das complexidades de um mundo pós-moderno ou, atualmente, globalizado. Afinal, muitos antropólogos podem facilmente continuar fazendo a mesma coisa de sempre, e muitos fazem, e em muitas situações é até válido fazê-lo. Mas minha impressão do que, hoje, produz multilocalização [multi-sitedness] e relações de cumplicidade em projetos de pesquisa de campo tem mais a ver com a auto-estima da antropologia, com a diminuição de sua função documental característica em meio a muitas formas de representação, mais competitivas e apropriadas quando comparadas a sua. De fato, todo projeto de etnografia se insere nos locais de pesquisa de campo através de áreas de conhecimentos colaterais, correspondentes, os quais não pode ignorar ao abrir seu caminho em direção às cenas preferidas da vida comum, cotidiana, com as quais, tradicionalmente, está à vontade. Só essa condição torna a pesquisa de campo intrinsecamente multilocalizada, logo heterogênea, e também cúmplice de alguns "objetos". O problema fundamental aqui é confrontar a política de conhecimento, que qualquer projeto de pesquisa de campo envolve, e a tentativa do etnógrafo de marcar posição em relação a esta política, fazendo do próprio lugar parte do plano de investigação da pesquisa de campo.

Assim, desde os anos 1980, qualquer antropologia crítica merecedora do nome não apenas tenta falar a verdade ao poder – poder como conceitualizado e teorizado; verdade como subalterna e entendida no interior da vida cotidiana de pessoas comuns observadas de perto –, mas também tenta entender o poder e suas agências, nos mesmos termos etnograficamente empenhados e nas mesmas fronteiras de pesquisa de campo nas quais o subalterno está incluído. A própria compreensão etnográfica, nos termos de Bourdieu, como um segmento dominado no interior do dominador, sugere uma modalidade alternativa relevante para as circunstâncias da pesquisa de campo atual, na qual incorporar uma perspectiva de segunda ordem em discursos, com freqüência, coincidentes, aparentados, oficiais, especializados e acadêmicos como correspondentes ao do próprio etnógrafo é uma reinvenção essencial e complexa da mise-en-scène tradicional. Sem dúvida, isso é o que mais conta na luta para tornar a pesquisa de campo contemporânea mais multi-localizada e política. O que também a torna um pouco alienada e um pouco paranóica de um modo tanto inevitável quanto produtivo.

A antropologia crítica intensamente reflexiva posterior aos anos 1980 é adequada para incorporar as culturas do racional como uma parte estratégica de seus locias de pesquisa de campo. Com efeito, se houve um grande sucesso das críticas dos anos 1980, foi criar uma antropologia dos conhecimentos atuais e de sua distribuição, de um modo completamente novo e original. Em certo sentido, toda antropologia, desde então, tem sido, da maneira mais eficaz, uma crítica íntima das prárticas difusas do conhecimento ocidental em nome de comunidades específicas de sujeitos mal-representados, excluídos, aliciados ou vitimizados por essas práticas. A inovação que surge da pesquisa de campo contemporânea é tratar tais poderes/conhecimentos como objetos de pesquisa de campo equivalentes em suas conexões, complexas e obscuras, com as cenas da vida cotidiana, o meio favorito cultivado pela etnografia clássica. Mas, para ser efetiva, tal pesquisa de campo tem de fazer algo mais do que apenas a descrição e a interpretação distanciadas, embora reflexivas, desse campo complexo de engajamentos. No momento, um discurso e uma retórica difusos, por vezes copiosos, de redenção moral ocupam esse espaço vazio de uma alternativa, de uma função alternativa inteiramente imaginada e concebida para a etnografia. Ao cabo, talvez essa retórica seja substituída por técnicas mais ativas, moldadas num arco de idéias entre a experimentação e o ativismo. É nesse momento que considero que os conceitos e ofícios de montagem, criação e atuação dos mundos do cinema e do teatro talvez sejam estimulantes. [Se possível, mencionar o jogo inspirador de Paul Farmer, relatado em um livro recém-lançado por Tracey Kidder: um médico e antropólogo, Farmer, trabalha entre o Wall Street do establishment médico – a Harvard Medical School – e uma clínica no miserável Haiti, ele desafia as modalidades de assistência com uma série de intervenções e táticas que são teatrais, efetivas e extremamente humanas.]

Assim, a antropologia, em meio a essa transição, quanto ao que a pesquisa de campo deva fazer e do que ser capaz, está carente de práticas que lhe sirvam de exemplo, que façam avançar e produzam formas de conhecimento nesses espaços de investigação reconfigurados. Nessa conjuntura, é isso que algumas práticas artísticas, como a cenografia, que tem uma afinidade com a modalidade clássica de pesquisa de campo, podem devolver à antropologia, e, ao fazê-lo, posteriormente desenvolver também o intercâmbio entre arte e antropologia, regulado pelo interesse mútuo na pesquisa de campo.

Assim, a etnografia crítica contemporânea se orienta pelos imaginários de outros especialistas e trabalha em novas áreas do poderoso conhecimento oficial ou especializado, exercitando para encontrar "objetos" de pesquisa mais tradicionais para si. Mas o que ela quer com as colaborações cúmplices que faz com os "objetos" equivalentes nesses domínios? E o que faz da cena etnográfica? Isso claramente não diz respeito a uma etnografia de culturas de elite, mas antes ao acesso à construção de um imaginário para a pesquisa de campo que só pode ser moldado por alianças de cumplicidade com criadores de conhecimento visionário, que já estão na cena ou no interior dos limites do campo. Os imaginários de criadores de conhecimento que precederam o etnógrafo são a matéria de que são feitos os sonhos dos pesquisadores de campo contemporâneos. Mas quais são as práticas/estéticas da técnica que acompanham tais investigações de campo multilocalizadas, cúmplices? Com isso, voltamos, em conclusão, ao humilde, delicadamente sutil, ofício de cenógrafo.

Eis um exemplo colhido das minhas trocas com Fernando Calzadilla: seu relato de como preparou a cenografia de A casa de Bernarda Alba, de García Lorca, para uma produção de 1994, em Caracas. Como Calzadilla afirma: "Os princípios básicos da produção eram sobre descoberta, desvelamento; evitando artificialidades, expor as narrativas que compõem nosso imaginário coletivo; transformar fatos cotidianos em atos excitantes; dar suporte à peça, pois tudo começa com ela, e evitar uma proposta naturalista que funcionaria simplesmente como um décor. Não houve adaptação do texto original: foi García Lorca até a última vírgula Dia após dia, aqueles de nós diretamente envolvidos na produção, intuitivamente, sabíamos que a peça deveria ser situada em uma cidade venezuelana". Em conseqüência, Calzadilla e sua esposa passaram três meses em duas comunidades com uma tradição de 400 anos de vida rural, fechada e conservadora: "Essas cidades partilham uma característica incomum na Venezuela: permaneceram perdidas no tempo, indiferentes ao frenesi modernizante causado pela economia do petróleo nos anos 1930". Seu relato do período que passou nessas cidades assemelha-se em muito com a experiência inicial de pequisa de campo na mise-en-scène malinowskiana. Dadas as pressões do tempo na produção teatral, foi um período inusualmente longo para esse tipo de pesquisa de campo preparatória, que não é uma atividade tão incomum na dramaturgia venezuelana: "Três meses parecem um período particularmente longo se você o compara com o tradicional período de seis semanas de ensaio/produção que a maioria das companhias profissionais de teatro concedem", diz Calzadilla. Quanto a isso, ele potencialmente concorda com a crítica de Hal Foster, endereçada aos artistas site-specific, sobre a brevidade e superficialidade da prática da pesquisa de campo. Mas, no caso de Calzadilla, a pesquisa de campo, desse tipo emblematicamente tradicional, só pode ser avaliada pelas transformações que sofre no planejamento da montagem da peça de Lorca. Desde o início, a pesquisa de campo tinha sua razão de ser no texto complexo da peça de Lorca e no papel que, nele, a cenografia desempenha. [A imersão de uma experiência de pesquisa de campo tradicional e delimitada no interior de um planejamento multilocalizado maior é instrutiva – a idéia de planejamento pode mudar as normas e formas da pesquisa de campo, conforme a direção que, circunstancialmente, ela tome – em trabalhos maduros ou em qualquer trabalho multilocalizado, ela só avança à medida que é criticada pela montagem.]

Simples e materialmente, a pesquisa de campo de Calzadilla produziu objetos e artefatos com os quais planejou a montagem e o aspecto visual da produção. Mais sutil, porém, é uma certa sensibilidade originada da pesquisa de campo – e não a habilidade de representar outros –, que migra ou se tranfere para outra situação de trabalho intelectual – no caso da cenografia, criando um singular espaço-tempo local para a representação do texto da peça de Lorca em Caracas. Isso é pesquisa de campo, como indiquei antes, adequada aos propósitos do cenógrafo, talvez não aos tradicionais da antropologia, mas que envolve um sentido claro de ética, função e propósito. O que é reconhecível como pesquisa de campo antropológica aqui é organicamente imbuído em um processo mais amplo de planejamento. Calzadilla prossegue, descrevendo seu principal efeito criativo na encenação dessa peça: "Eu estava numa situação delicada, andando numa corda bamba entre realidade e ilusão, e tinha de arrumar o hic et nunc da atuação. Tive de criar um espaço onde esses elementos se tornassem significantes, e não uma amostra de nosso bom trabalho como pesquisadores de campo. Assumi o risco, apoiado pelo resto da trupe, de expor a estrutura da casa, removendo todas as paredes em uma peça cujo tema central é o confinamento e a opressão. O que fizemos, com esse passo, foi criar uma ficção no interior da realidade da atuação, assim nossa experiência de pesquisa de campo não foi traduzida diretamente, mas mediada por um espaço irreal que centrava a atenção no drama, contrastivamente, e não nos objetos. Se tivéssemos apresentado os objetos em um ambiente naturalista, eles se transformariam em peças de colecionador, enfeites. A presença massacrante do objeto real em um espaço naturalista teria salientado o aspecto ficcional dos personagens corporificados, ao invés de amparar as atrizes em suas atuações – uma objetificação da pessoa, especificamente crítica quando o elenco é todo feminino. Do que precisávamos, era salientar a realidade do evento, a realidade dos atores e do drama que iriam representar. Traduzir a experiência da pesquisa de campo no palco, para criar um espaço onde os atores pudessem representar o mito (nesse caso, o texto de Lorca), dando-lhes material suficiente para resistir e relacionar-se com as características, físicas ou não, do espaço em questão".

Calzadilla deixa claro que a contribuição mais substantiva da pesquisa de campo para a produção não está no que a platéia pode literalmente ver, mas em constituir o que ele chama as narrativas internas da produção, ignoradas pela platéia, que se originam das "matérias-primas" fornecidas pela pesquisa de campo. Calzadilla conta: "Elas podem parecer totalmente sem conseqüências para a atuação mas sei, a partir de conversas com as atrizes e da resposta da platéia, que não são. A peça foi premiada por melhor iluminação e cenografia e algumas atrizes foram premiadas pela atuação em Bernada. Lembro como uma atriz identificou seu personagem tão intensamente com o espaço que lhe dei que ela continuava acrescentando coisas, tornando o espaço dela". Calzadilla prossegue, dando detalhes primorosos de como a montagem criou um imaginário eficaz e visceral para a produção – por exemplo, ele descreve quais foram os efeitos de sua decisão em construir um chão de ladrilho verdadeiro no palco sobre a qualidade emotiva do movimento, algo que a platéia não podia ver mas que conformava um ambiente, devido à sensação dos pés descalços no ladrilho.

A etnografia antropológica, obviamente, não é cenografia, embora às vezes eu gostaria que fosse, mas dadas as difíceis situações que o paradigma da pesquisa de campo em antropologia atualmente enfrenta, acho que o ofício da cenografia, como praticado por Calzadilla, entre outros, pode fornecer inspirações, mais do que simples analogias, para sua reinvenção. Posso apenas me referir brevemente a algumas delas:

1. Calzadilla desessencializa os tropos da pesquisa de campo clássica, ao empregá-los e incorporá-los em um processo mais amplo de investigação e de trabalho intelectual. É o que inevitavelmente acontece na pesquisa de campo multilocalizada contemporânea – o ultrapassar dos limites da mise-en-scène malinowskiana – sem que o resultado seja pre-concebido ou nomeado. A movimentação de Calzadilla entre os contextos de trabalho e as funções cambiantes de investigação é algo que é experimentado com regularidade nos projetos de pesquisa de campo contemporâneos. A pesquisa de campo em antropologia necessita, para o seu imaginário, de um diferente cronotopo de realização; por muitos outros aspectos a cenografia é um bom modelo a se considerar.

2. Quando novos projetos de pesquisa ultrapassam locais isolados e propósitos puramente documentais, um conceito de planejamento, como é usado em ofícios como a cenografia (e há muitos modos de atividade artística que empregam a idéia do planejamento), pode dar uma idéia de processo que poderia ser usada em antropologia para afetar a situação privilegiada da pedagogia no treinamento de estudantes em seus primeiros projetos etnográficos. Antropólogos gostam de seus meios folclóricos de inculcar a pesquisa de campo na cultura profissional, mas a invocação da morte deve lhes dar mais e diferentes coisas para conversar. Assim, o conceito e exemplo do planejamento poderia, de maneira aplicada, incorporar conceitualmente a mise-en-scène malinowskiana em um regime de conjuntos alternativos de expectativas, da pesquisa de campo à escrita, para o processo etnográfico em antropologia.

3. O processo de Calzadilla dá ênfase à idéia e à realidade das colaborações – de vários tipos e condições –, na verdade, o processo de trabalho do cenógrafo é um emaranhado de colaborações progressivas desde o início de qualquer projeto. A idéia de colaboração como núcleo da produção do conhecimento etnográfico foi criticamente salientada pelas críticas dos anos 1980, mas, posteriormente, a ênfase recaiu sobre um gênero específico, um estilo de escrever etnografia. No espaço multi-localizado, colaborações e cumplicidades definem a política do conhecimento, que também conforma o planejamento da investigação. O que Calzadilla conhece a partir da pesquisa de campo, apenas como a colaboração inicial, leva a uma série complexa de outras colaborações, que nunca são menos do que preeminentes no relato de seu trabalho e dos resultados delas. A etnografia contemporânea parece operar de um modo bastante similar, mas ainda não de acordo com as normas e formas que ela narra para si mesma profissionalmente. Isso, obviamente, cria novos problemas para assegurar a autoridade do conhecimento especializado e para a ética de estabelecer relações em um campo complexo de colaborações. Mas o regime de colaborações, no nível que é praticado em círculos artísticos que produzem teatro e cinema, é algo a que a antropologia deve aspirar, como de costume.

Trazendo-as mais para perto, as discussões entre antropólogos e artistas sobre seu interesse mútuo em pesquisa de campo, parece-me, podem avançar mais longe nessa conjuntura, ao incitarem, por um lado, a desestabilização da modalidade tradicional de pesquisa de campo em antropologia, que está ocorrendo inexoravelmente, e, por outro, as práticas manifestas de pesquisa de campo em configurações variadas de uma profusão de atividades artísticas específicas. Em particular, o que, em minha opinião, parece certo hoje, ao menos para a antropologia em seus apuros com o método, é tentar aprender algo com os mais humildes porém mais sutis ofícios, como a cenografia envolvida com a platéia, os bastidores e a cena das realizações artísticas do teatro e do cinema.

Tradução de André Pinto Pacheco

Nota

Aprovado em maio de 2004.

  • 1
    Texto com base em trabalho apresentado pelo autor no Congresso "Fieldworks: Dialogues between art and anthropology", Tate Modern, Londres, 26-28/09/2003. As interpolações entre colchetes são de responsabilidade do próprio Autor, salvo as traduções de títulos de filme ou livro e as expressões em inglês que seguem a tradução de algum termo, em geral neologismo. (N. do T.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Nov 2004
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2004
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