Acessibilidade / Reportar erro

Quaderni del cárcere

LIVROS

Quaderni del cárcere

Gramsci, Antonio

Torino, Einaudi, 4 vols, 3.369 pp.

Marzia Terenzi Vicentini

Uma nova edição crítica

Por iniciativa do Instituto Gramsci, que conserva os manuscritos e a maior parte dos livros que pertenceram a Antonio Gramsci, saiu a nova edição dos Quaderni dei cárcere, os escritos do cárcere do grande pensador e político italiano.* * Antonio Gramsci nasceu em Ales, na ilha de Sardenha, em 1891. Sua primeira formação política é socialista: são as leituras de publicações socialistas que o irmão mais velho lhe faz conhecer desde 1905, são os contatos com o movimento socialista turinês nos anos da Faculdade que ele cursou em Turim. Brilhante aluno do curso de Letras, não consegue todavia manter um ritmo constante de estudo curricular devido às instáveis condições de saúde e a incipiente atividade política. Colaborador dos cotidianos "II grido dei popolo" e "Avanti", mantém conferências nos círculos operários, experiência essa que lhe faz sentir a necessidade de integrar a ação política e econômica com um órgão de atividade cultural, e lhe sugere a criação de uma associação proletária de cultura. Sempre com o intuito de renovar ideológica e culturalmente o movimento socialista, funda em 1919 a revista "UOrdine Nuovo" que estará à frente do movimento operário pelas propostas inovadoras e como fonte de informação dos movimentos operários internacionais, das vozes mais vivas da política e da revolução no campo da cultura. São publicados textos de Bela Kun, Zinov'ev, Lenin, Barbusse, Lunatcharsky, Romain Rolland, Eastman, Martinet, Gorki. A atividade política o afasta da linha do partido socialista até que, em 1921, é chamado a participar do Comitê central do então recém constituído Partido Comunista da Itália. Começa um período de atividade intensíssima, de novas formulações políticas e novos contatos. Gramsci é designado para manter os contatos com o Comitê executivo da Internacional Comunista e com os outros partidos comunistas europeus. Em política interna adota a linha da aliança entre as camadas mais pobres da classe operária do Norte e as massas rurais do Sul. Em 1924 é eleito deputado e em 1926 é preso pela polícia fascista. Durante o processo de 28 de maio de 1928 que o condenou a 17 anos de reclusão, o promotor público, Michele Isgrò, afirma: "Por vinte anos temos que impedir a este cérebro de funcionar". Os anos de prisão são duríssimos também pela grave doença que o obriga a longos períodos de imobilidade quase absoluta. Graças à dedicação de Tatiana Schucht e ao empenho do economista Piero Sraffa, Gramsci obtém a permissão de estudar e escrever. São os amigos que lhe fornecem os materiais necessários. Em 1933, em Paris, se constitui um comitê para a libertação de Gramsci e das vítimas do fascismo, mas Gramsci deixará a prisão em 1934 apenas para ser transferido para uma clínica. Em 1937 obtém a liberdade e se propõe a se restabelecer na ilha natal. Morre antes de realizar o projeto na tarde do 25 de abril de 1937.

A nova edição crítica, anunciada desde 1967 por ocasião do "Convegno Internazionale di Studi Gramsciani" em Cagliari, veio à luz em 1975 após um longo e acuradíssimo trabalho de preparação que permitiu a restauração filológica dos textos e sua reconstituição cronológica.

O renovado interesse pelas reedições dos escritos de Gramsci, iniciadas em 1965 com a edição completa das Cartas, organizada por Caprioglio e Fubini, explica-se à luz dos grandes debates que a obra do escritor sardo suscitou no meio cultural internacional. Entre 1956 e o fim dos anos sessenta os estudos gramscianos seguem duas linhas divergentes: de um lado, os marxistas estrangeiros, que participam do clima geral de oposição ao dirigismo ideológico e político da URSS, descobrem Gramsci e o admiram como pensador notável, o pensador marxista talvez mais original do século XX; de outro lado, os marxistas italianos, que assistem à derrota da política do partido comunista e sofrem a desilusão pela não realizada libertação nacional e pela nova pesada estagnação política, iniciam a discussão crítica quanto à versão togliattiana com a qual Gramsci tinha sido divulgado e procuram novas interpretações e ângulos de análise. Palmiro Togliatti e os intelectuais a eles próximos consideravam a obra de Gramsci como fundamento teórico de uma estratégia de luta e de uma perspectiva de transformação socialista na Itália. Esta versão, que não é completamente injustificada se pensarmos na preocupação política fundamental dos escritos de Gramsci, permitiu todavia que muito facilmente se pudesse identificar Gramsci com a política, a ele posterior, do partido comunista e, como observa Eric Hobsbawn, atribuir ao teórico as falhas que são mais propriamente de uma atuação política. Após '68 as duas correntes, a interna e a externa, parecem convergir para o mesmo interesse, com uma única preocupação: a de eliminar, nas leituras gramscianas, aquelas superposições decorrentes das variáveis do meio cultural e socio-ideológico que revelam em formas inevitavelmente contraditórias as instâncias do nosso tempo.

É neste contexto de discussão que se projeta uma nova edição, mais analítica e filológicamente mais exata, dos Cadernos.

A 1.ª edição

Os Cadernos do cárcere depois da morte de Gramsci foram salvos e conservados graças à ação de Tatiana Sehucht e foram publicados pela primeira vez, entre 1948 e 1951, pela casa editora Einaudi, em 6 volumes que organizavam as notas gramscianas em volta de grandes temas centrais, seguindo aliás indicações do próprio Gramsci. Eram estes os títulos redacionais:

1) O materialismo histórico e a jilosofia de Benedetto Croce

2) Os intelectuais e a organização da cultura

3) Risorgimento

4) Machiavel, a política e o Estado Moderno

5) Literatura e vida nacional

6) Passado e presente

Esta 1.ª edição teve o grande mérito de permitir uma forma de divulgação mais atraente que logo chamou a atenção sobre os pontos centrais e mais originais do pensamento gramsciano. A nova edição crítica, em 4 volumes, ao contrário publica os cadernos integralmente, respeitando a mais rigorosa ordem cronológica para permitir ao estudioso acompanhar a gênese e o desenvolvimento das idéias em seus nexos reais, na maneira autêntica de sua formação.

Os Cadernos

Gramsci inicia a redação dos Cadernos na prisão de Turi, a 8 de fevereiro de 1929, exatamente dois anos e três meses depois de preso. Afastado violentamente da vida pública, da intensa participação política, na prisão Gramsci sente que o estudo é uma das formas de autodefesa contra o perigo de um total aniquilamento intelectual. Numa carta a Tânia (Tatiana Sehucht) de 19 de março de 1927, escreve: "Quero, conforme um plano preestabelecido, me ocupar intensamente e sistematicamente de algum tema que me absorva e centralize minha vida interior".

Este plano se articula em quatro pontos, dos quais o primeiro parece mais significativo e de fato se tornará central no desenvolvimento dos Cadernos. Trata-se da pesquisa sobre a formação do espírito público na Itália do século XIX, isto é, "sobre os intelectuais italianos, suas origens, seus agrupamentos, conforme as correntes da cultura, seus diversos modos de pensar...". O segundo ponto é um projeto de linguística comparada; o terceiro e o quarto compreendem um estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre o gosto popular na literatura, assuntos esses que refletem a experiência de Gramsci como crítico teatral entre 1915 e 1920. Campos de pesquisa tão diversos encontram uma homogeneidade quanto ao interesse fundamental que é, nas palavras de Gramsci, "o espírito popular criativo em suas diferentes fases e graus de desenvolvimento".

O primeiro período de compilação dos Cadernos vai até agosto de 1931, quando Gramsci é acometido por uma grave crise que revela o estado de avançado desgaste de seu organismo. Neste tempo tinha iniciado e quase completado 10 cadernos, 9 dos quais de exercícios de tradução.

No segundo período, que vai do fim de 1931 ao fim de 1933, o trabalho é mais intenso. O novo plano é mais articulado e compacto; são mais 10 cadernos que ocupam um lugar central na obra gramsciana e que revelam os nexos que regem toda a sua pesquisa. Uns cadernos são de notas, às vezes uma segunda redação de cadernos anteriores, e outros, denominados "cadernos especiais", reúnem materiais preparatórios para uma série de ensaios que nunca pode escrever. São só cadernos especiais os do último período, quando Gramsci é transferido no fim de 1933 de Turim para a clínica de Formia. São 12 cadernos, a maioria incompletos.

As notas redacionais

Dado o fato de que Gramsci trabalhava simultaneamente seus cadernos, completando-os, em alguns casos, a grande distância de tempo, a presente edição manteve a ordem cronológica do início de redação de cada caderno. Ela reproduz integralmente 29 cadernos (excluindo os 4 de traduções) e reparte os escritos em textos de primeira redação (A), textos de segunda redação (C) e textos de redação única (B). Os textos A se distinguem pelos caracteres tipográficos menores e têm indicações das páginas onde se encontram as redações sucessivas; da mesma forma os textos C têm indicações dos correspondentes textos A.

As notas redacionais não estão junto ao texto, mas são condensadas em quase mil páginas que constituem o IV volume. Dino Ferreri, um dos principais colaboradores na elaboração do aparato crítico, esclarece-nos sobre o espírito que informou este tipo de trabalho redacional. A preocupação dos redatores, no dizer de Ferreri, foi a de fornecer uma edição livre de qualquer interpretação ou linhas interpretativas preconstituídas, fato esse que exclui desde o início intervenções redacionais de tipo exegético, que ofereçam chaves de leitura ou guias ao estudo. Ao invés disso foi feito todo um trabalho minucioso para encontrar as fontes utilizadas por Gramsci e para especificar a maneira de utilização das mesmas.

Em síntese, as notas do aparato crítico podem ser agrupadas pelo seguinte esquema tipológico:

1) notas referentes a fontes declaradas

2) individuação das fontes não declaradas

3) reconstituição de episódios lembrados por Gramsci os quais servem de esclarecimento a determinadas reflexões desenvolvidas com base nas leituras feitas na prisão ou nas lembranças da experiência anterior

4) concordâncias entre osas Cartas do cárcere Cadernos e

5) concordâncias, não genéricas, com os escritos anteriores à sua prisão

6) referências a outras secções do aparato crítico

7) notas de esclarecimento sobre expressões ou pessoas pouco familiares ao leitor.

As notas, como se pode observar, oferecem pontos de referência que permitem reconstituir geneticamente o desenvolvimento das idéias, a constituição das categorias teóricas e enriquecem suas significações.

Inconvenientes da nova edição?

Poder-se-ia objetar que a nova edição, respeitando a ordem cronológica dos escritos, mantenha o caráter fragmentário da pesquisa gramsciana e acabe por se destinar só para um público de especialistas. Valentino Gerratana, organizador desta edição, na revista Rinascità n. 30 de julho de 1975, dedicada à divulgação da nova edição dos Cadernos, antecipa esta possível objeção.

Gerratana se pergunta se o caráter fragmentário é um limite ou, pelo contrário, um elemento essencial ao estilo de Gramsci e avança a argumentação de que a escritura fragmentária seria funcional ao objeto de pesquisa e de luta de Gramsci. Neste caráter fragmentário o crítico descobre aquela atitude polêmica de "sarcasmo apaixonado" de que trata o próprio Gramsci quando, distinguindo entre "historicismo idealista" e "historicismo integral" desvenda suas opções estilísticas.

Elemento estilístico do primeiro é a ironia, distanciamento cético das paixões, tentativa de destruir as aspirações populares que encontram uma justificação teórica nas abstratas ilusões racionalistas herdadas da Revolução Francesa, ou seja na justiça, igualdade e fraternidade.

Elemento estilístico do segundo, isto é, do "historicismo integral, e o sarcasmo apaixonado, que não visa destruir as aspirações populares mais reforçá-las, destruindo somente sua forma ilusória. Este sarcasmo, afirma Gramsci, "deve ser considerado como uma expressão que põe em relevo as contradições de um período de transição; procura-se manter o contato com as expressões subalternas humanas das velhas concepções (con le espressioni subalterne umane delle vecchie concezioni) e ao mesmo tempo se acentua o distanciamento daquelas expressões dominantes e dirigentes até que as novas concepções, com a firmeza conquistada através do desenvolvimento histórico, venham a dominar adquirindo a força das crenças populares".

Emerge destas afirmações o núcleo, o fio condutor de toda a pesquisa de Gramsci: a crise da hegemonia burguesa, se bem que irreversível, não gera espontaneamente a nova revolução se não se constroem firmemente as condições da hegemonia da nova classe, não somente no campo econômico, quanto no político e ideológico. A solução deste problema marca todo o período de transição da velha civilização capitalista à nova civilização.

É dentro destas perspectivas de pesquisa, para Gerratana, que Gramsci recusaria qualquer exposição apodítica e predicatória de princípios e privilegiaria a passionalidade como critério de uma nova linguagem, de um novo gosto estilístico como meio de luta.

Resta saber, para nós, se realmente a passionalidade explicaria suficientemente o caráter fragmentário dos escritos gramscianos, pois não damos por certo que um discurso sistemático, por si mesmo, exclua o caráter apaixonado da pesquisa e a possibilidade de sua comunicação polêmica. É preciso também levar em consideração no que respeita à obra de Gramsci a limitação que o cárcere imprimiu às condições materiais e espirituais de pesquisa, de comunicação e intercâmbio intelectual.

Não se pode exigir naturalmente que a nova edição crítica resolva de forma unívoca todas as questões controvertidas levantadas na interpretação do pensamento gramsciano. É possível que estas controvérsias venham a receber subsídios, devidos aos novos materiais postos a disposição do leitor. O que a nova edição crítica, mesmo enquanto integral restauração filológica deveria desencorajar, é um tipo de leitura limitada por esquemas parciais, e, ao contrário, permitir uma reflexão unitária sobre o pensamento gramsciano em sua totalidade, num terreno de verificação mais fiel e seguro.

  • *
    Antonio Gramsci nasceu em Ales, na ilha de Sardenha, em 1891. Sua primeira formação política é socialista: são as leituras de publicações socialistas que o irmão mais velho lhe faz conhecer desde 1905, são os contatos com o movimento socialista turinês nos anos da Faculdade que ele cursou em Turim. Brilhante aluno do curso de Letras, não consegue todavia manter um ritmo constante de estudo curricular devido às instáveis condições de saúde e a incipiente atividade política.
    Colaborador dos cotidianos "II grido dei popolo" e "Avanti", mantém conferências nos círculos operários, experiência essa que lhe faz sentir a necessidade de integrar a ação política e econômica com um órgão de atividade cultural, e lhe sugere a criação de uma associação proletária de cultura. Sempre com o intuito de renovar ideológica e culturalmente o movimento socialista, funda em 1919 a revista "UOrdine Nuovo" que estará à frente do movimento operário pelas propostas inovadoras e como fonte de informação dos movimentos operários internacionais, das vozes mais vivas da política e da revolução no campo da cultura. São publicados textos de Bela Kun, Zinov'ev, Lenin, Barbusse, Lunatcharsky, Romain Rolland, Eastman, Martinet, Gorki.
    A atividade política o afasta da linha do partido socialista até que, em 1921, é chamado a participar do Comitê central do então recém constituído Partido Comunista da Itália. Começa um período de atividade intensíssima, de novas formulações políticas e novos contatos. Gramsci é designado para manter os contatos com o Comitê executivo da Internacional Comunista e com os outros partidos comunistas europeus. Em política interna adota a linha da aliança entre as camadas mais pobres da classe operária do Norte e as massas rurais do Sul.
    Em 1924 é eleito deputado e em 1926 é preso pela polícia fascista. Durante o processo de 28 de maio de 1928 que o condenou a 17 anos de reclusão, o promotor público, Michele Isgrò, afirma: "Por vinte anos temos que impedir a este cérebro de funcionar". Os anos de prisão são duríssimos também pela grave doença que o obriga a longos períodos de imobilidade quase absoluta. Graças à dedicação de Tatiana Schucht e ao empenho do economista Piero Sraffa, Gramsci obtém a permissão de estudar e escrever. São os amigos que lhe fornecem os materiais necessários.
    Em 1933, em Paris, se constitui um comitê para a libertação de Gramsci e das vítimas do fascismo, mas Gramsci deixará a prisão em 1934 apenas para ser transferido para uma clínica. Em 1937 obtém a liberdade e se propõe a se restabelecer na ilha natal. Morre antes de realizar o projeto na tarde do 25 de abril de 1937.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      1975
    Universidade Estadual Paulista, Departamento de Filosofia Av.Hygino Muzzi Filho, 737, 17525-900 Marília-São Paulo/Brasil, Tel.: 55 (14) 3402-1306, Fax: 55 (14) 3402-1302 - Marília - SP - Brazil
    E-mail: transformacao@marilia.unesp.br