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A humildade do universal: Habermas no espelho de Rawls

The humbleness of the universal: Habermas in the mirror of Rawls

Resumos

Pontos básicos da trajetória intelectual de Habermas são reconstruidos à luz de seu confronto com Rawls. Assinalam-se os limites da pretensão habermasiana a uma universalidade superior à rawlsiana. Argumenta-se que o livro de 1962 sobre "mudanças estruturais da esfera pública" já encerra as questões que encontrarão desdobramento mais tarde, inclusive na "teoria da ação comunicativa" de 1981. O artigo vai no sentido de uma reconstrução crítica de alguns problemas centrais do programa de pesquisa de Habermas. No final, retoma-se o confronto com Rawls.


Basic points of Habermas' intelectual trajectory are reconstructed from the standpoint of his debate with Rawls. The limits of Habermas ' claims to a greater universality of his theory as compared with Rawls' are pointed out. It is argued that already in his book of 1962 about the "structural transformations of the public sphere" may be found the questions to be further developed in his other works, including his "theory of communicative action" of 1981. The article aims at a critical reconstruction of some central problems of Habermas' research program.


CONSTITUIÇÃO

A humildade do universal: Habermas no espelho de Rawls* * Agradeço profundamente ao amigo Joaci Pereira Furtado a diligente correção de estilo, que fez com que o escrito em português ficasse efetivamente em português, e a Karin pela paciente resignação ante o seqüestro das noites e fins de semana.

The humbleness of the universal: Habermas in the mirror of Rawls

Adrián Gurza Lavalle

Docente da Universidad Iberoamericana do México e doutorando em Ciência Política na USP

RESUMO

Pontos básicos da trajetória intelectual de Habermas são reconstruidos à luz de seu confronto com Rawls. Assinalam-se os limites da pretensão habermasiana a uma universalidade superior à rawlsiana. Argumenta-se que o livro de 1962 sobre "mudanças estruturais da esfera pública" já encerra as questões que encontrarão desdobramento mais tarde, inclusive na "teoria da ação comunicativa" de 1981. O artigo vai no sentido de uma reconstrução crítica de alguns problemas centrais do programa de pesquisa de Habermas. No final, retoma-se o confronto com Rawls.

ABSTRACT

Basic points of Habermas' intelectual trajectory are reconstructed from the standpoint of his debate with Rawls. The limits of Habermas ' claims to a greater universality of his theory as compared with Rawls' are pointed out. It is argued that already in his book of 1962 about the "structural transformations of the public sphere" may be found the questions to be further developed in his other works, including his "theory of communicative action" of 1981. The article aims at a critical reconstruction of some central problems of Habermas' research program.

"Uma nova teoria procedimental e jurídica como a que aqui apresentamos é ao mesmo tempo mais e menos modesta do que a teoria de Rawls". Com a explicação dessa idéia Habermas dava por concluído, da sua parte, o seu inédito debate de 1995 com John Rawls- possivelmente o maior teórico neokantiano deste século, famoso por sua já clássica teoria da justiça como eqüidade. No diálogo critico entre ambos os pensadores, levado a cabo graças à iniciativa de Michael Kelly, editor do Journal of Philosophy,1 1 O debate compõe-se de um texto de Habermas-"Rawls' Political Liberalism"-, no qual se faz uma exegese do pensamento de Rawls, e da resposta deste último -"Reply to Habermas"-, num texto consideravelmente mais extenso, que contém tanto uma revisão do sistema rawlsiano perante aquela exegese, quanto algumas críticas a Habermas. Nas notas as referências ao debate serão feitas conforme os capítulos (em algarismos romanos) e seções (em algarismos arábicos) que organizam os textos de cada autor. não deixa de parecer estranha a afirmação escolhida por Habermas para encerrar sua complexa exegese do sistema da filosofia política de Rawls. Estranha porque, paradoxal e ironicamente, a maior modéstia de Habermas - a referida "teoria procedimental moral e jurídica" - consistiria em desenvolver uma sofisticada proposta mais universal do que a do próprio Rawls. Pois, ao focalizar exclusivamente aspectos procedimentais, sua teoria fugiria de se posicionar a respeito de questões irremediavelmente problemáticas - tais como os princípios de justiça consubstanciais à obra de Rawls2 2 Jürgen Habermas, "Rawls' Political Liberalism", Op. cit. I. 3 e III . Em sentido inverso, a menor modéstia do filósofo alemão decorreria da recusa a evitar as questões mais controvertidas da filosofia, articulando no seu sistema respostas afirmativas e não metafísicas sobre problemas como os da verdade (consensual) e a racionalidade (comunicativa). Embora Rawls tente, segundo Habermas, fugir destas questões lançando mão de uma espécie de "método de esquiva"3 3 "Method of avoidance", traduzido por Octacílio Nunes (na revista Educação e Sociedade no 57, 1996, da UNICAMP) como "método de evitação". Entretanto, esta escolha parece-me estilisticamente infeliz se comparada com uma alternativa como "método de esquiva", já em uso na tradução do texto de Rawls "Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica" realizada por Régis de Castro Andrade para Lua Nova (número 25, 1992). , que lhe permite enfrentá-las mediante o seu conceito do "razoável"4 4 Jürgen Habermas, Op. cit., II. 2 e III , o pressuposto de uma possível construção de um consenso sobreposto (over-lapping consensus) levado ao terreno da Filosofia o mantém numa disputa todos conteúdos substantivos da verdade e da racionalidade, ocultos sob a ambigüidade da referida idéia do razoável. Novamente, Rawls estaria atrelado a argumentações vazadas por um viés substantivo que reduziria as possibilidades de universalização da teoria de justiça como eqüidade. Isto é tanto pela maior quanto pela menor modéstia - palavra de aparência inócua que aqui vem a simbolizar com fina agudeza irônica as pretensões e o sentido global da obra de ambos os pensadores - a teoria discursiva procedimental habermasiana seria superior à teoria rawlsiana devido a suas; maiores condições de universalização.5 5 Concluo minhas observações com uma tese sobre o auto-entendimento da filosofia política: em condições de pensamento pós-metafísico, este deveria ser modesto, mas não do modo errado." Ibid. Final da introdução. É obvio que nesta lógica a posição de Habermas é modesta do modo certo, isto é, atinge um patamar maior de universalidade.

Sem dúvida Rawls teve muito a dizer e muito disse a este respeito, porém não é nosso propósito, neste momento, dar a palavra ao filósofo anglo-saxão nem, mais adiante, entrar fundo e diretamente no debate—mas aproveitá-lo como ótimo espelho para refletir o complexo pensamento habermasiano. De fato, o confronto com a obra de Rawls e seu pensamento sistemático, no sentido mais forte da tradição da filosofia como sistema, foi um verdadeiro teste para a teoria de Habermas, construída em mais de três décadas e meia de uma longa trajetória não linear de formulações e reformulações - obviamente não sem acidentes de percurso6 6 Uma obra como a de Habermas, que não foi desenvolvida como sistema e que atinge maior abrangência a partir da incorporação de desenvolvimentos durante décadas, normalmente tem que corrigir ou esquecer muitos dos seus passos anteriores. Podem ser lembradas, por exemplo, suas correções com respeito ao Estado de bem-estar ou à sua própria idéia da "situação ideal de fala". . Não é só a peculiar alusão de Habermas àquelas diferenças de modéstia acima citadas que autoriza a interpretar este encontro de idéias como um teste para o conjunto central de desenvolvimentos no pensamento deste filósofo e, particularmente, para suas possibilidades de universalização. O próprio Habermas participou no debate convicto de que esse desafio flutuava no ar. Alguns anos antes, avaliando que o princípio de universalização contido de forma rudimentar nas pretensões de validez do ato de fala era convincente, mas não levava de forma necessária a justificar a escolha da sua teoria entre outras semelhantes, Habermas referiu-se exclusivamente à teoria de Rawls e formulou sua relação com ela nos seguintes termos: "... tenho tentado justificar um certo princípio de universalização como um principio moral... Esses pressupostos pragmáticos necessários à argumentação, desempenham para a ética discursiva o mesmo papel que o da construção da 'posição originária' na teoria da justiça de Rawls. O debate entre estes enfoques teóricos terá de demonstrar qual destas versões da ética kantiana é a melhor"7 7 Jürgen Habermas, "Moralidad, sociedad y ética". Entrevista concedida a Torben Hviid Nielsen (1990), em María Herrera (coord.), Jürgen Habermas, moralidad, ética y política: propuestas y críticas, México, Alianza Editorial, 1993, p. 97. .

A demonstração das maiores qualidades de um enfoque sobre o outro é encargo para um trabalho titânico e até possivelmente ocioso (se visto sob a ótica dos escassos efeitos concorrenciais no trabalho teórico-filosófico) cujo grau de dificuldade, a despeito de Habermas, não é menor depois que antes do debate. Entretanto, podemos estar certos tanto de que esse debate e as réplicas nele formuladas ajudam a aprimorar o entendimento das suas próprias posições, quanto de que o debate em si será melhor compreendido à luz dos complexos teóricos de ambos os autores. Destarte, nosso proceder será reconstrutivo e, já foi dito, preocupado com o programa de pesquisa habermasiano. Partimos da premissa de que os problemas que dão corpo a esse programa e as soluções que ao longo de décadas de reflexão veio a desenvolver encontram sua origem, nitidamente, no primeiro grande trabalho de 1962 sobre as transformações estruturais da esfera pública8 8 A primeira obra publicada de Habermas, Estudantes e política, de 1961, é um trabalho esquecido pelo próprio autor e sem repercussões de importância, ainda que seja possível encontrar nela algumas preocupações que teriam continuidade ganhando peso e relevância no pensamento do filósofo - é o caso principalmente da necessária separação entre a sociedade e o Estado. . Nesta visão, a influente teoria da ação comunicativa e seus múltiplos desdobramentos, que fizeram de Habermas um dos teóricos mais importantes da segunda metade deste século, seria ao mesmo tempo um desdobramento daquele núcleo de problemas originais e não constituiria, como se acredita com freqüência, um bom início para se "discutir com Habermas". A vantagem desta premissa inicial está em reconhecer com clareza um conjunto de determinações fundamentais no pensamento de Habermas, que, com seu progressivo afastamento da Sociologia e seu deslocamento para o terreno da Filosofia, viriam a ficar ocultas na sofisticação de um complexo corpo teórico. Todavia, uma leitura crítica do programa de pesquisa habermasiano é mais prudente, sem se levar em conta o conhecimento minucioso de uma obra vastíssima e diversificada, a partir de uma crítica ao núcleo de problemas constitutivo desse programa. O esforço duplo de análise e crítica do Habermas de há trinta anos permite construir uma ponte, sob a pretensão de uma visão de conjunto, com os "pontos" principais do desenvolvimento de seu programa de pesquisa, cujo último grande avanço, por enquanto, são as contribuições de 1992 para uma teoria discursiva da lei e da democracia9 9 Jürgen Habermas, Between Facts and Norms- Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. (1992) Cambridge, Massachussets/London, The MIT Press, 1996. . A primeira, segunda e terceira partes deste ensaio estão voltadas, precisamente, para a análise, crítica e reconstrução do programa habermasiano, sob a lógica até aqui exposta. Já a quarta parte volverá ao sistema filosófico de Rawls perante a crítica habermasiana, na tentativa de pôr em jogo uma leitura menos interessada no debate em si do que nos pressupostos teóricos que organizaram sua lógica e que permitem entender qual o vínculo concorrencial entre duas obras em aparência distantes.

UM ACHADO DE CONSEQÜÊNCIAS DURADOURAS

A tradução literal do título do maravilhoso trabalho de 1962 deveria ser "A mudança estrutural da publicidade: pesquisas sobre uma categoria da sociedade burguesa". Porém, o grau de especificidade da língua alemã faz com que as mais robustas intenções dos tradutores empalideçam o significado original dos conceitos e acabem por optar pelos termos que apresentam menos contaminações de sentido nos seus próprios idiomas.10 10 A obra apareceu na versão brasileira sob o nome Mudança estrutural da esfera pública : Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984. As traduções para o castelhano e para o francês também não contam com títulos muito afortunados: Historia y crítica de la opinión pública: La transformación estructural de la vida pública e L'espace public: Archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise. No português, a utilização da idéia de esfera pública na tradução da categoria Öffentlichkeit - "publicidade" - se presta a possíveis enganos, pois aquela é uma conseqüência do processo histórico de construção da "publicidade burguesa", sendo esta última a que fornece a explicação da esfera pública. Contudo, esse problema, mais próprio das discussões conceituais da categoria "público", não ocupa nossa atenção neste trabalho, pelo que é suficiente deixar assinalada a questão apenas para justificar, por motivos de economia, o uso do termo "esfera pública"11 11 A esfera pública refere-se à institucionalidade através da qual se realizou a opinião pública da sociedade civil burguesa, enquanto a "publicidade" -Öffentlichkeit-remete ao processo histórico que explica o surgimento da sociedade civil burguesa e com ela o estatuto moderno do que é público. Em muitos casos é possível manter a idéia de esfera pública no lugar do conceito de "publicidade" sem altos custos para a interpretação; porém, não é conveniente respeitar este uso quando se trata de algumas outras formas de "publicidade" como a plebéia-"esfera pública plebéia" -, que nunca contaram com uma esfera de institucionalização própria. Isto acarretaria despropósitos analíticos que é conveniente evitar. . A pesquisa sobre as transformações estruturais da esfera pública é um notável esforço dirigido a atingir fundamentalmente três propósitos: a) uma análise dos processos históricos que tornaram possível o surgimento de uma nova configuração tipicamente burguesa da esfera pública, isto é, moderna perante à formação de uma "publicidade representativa" caraterística da ordem feudal; b) um inventário analítico para dar conta tanto das instituições burguesas, através das quais constituiu-se efetivamente a esfera pública moderna, quanto das funções desempenhadas por essa dimensão moderna no seio do Estado - nova forma da universalização política da sociedade no mundo moderno; e c) uma crítica profunda dos processos de transformação da esfera pública que viriam a solapar severamente seu potencial de emancipação social e de racionalização do poder. É possível dizer desde já que, apesar da irreversível desarticulação - diagnosticada por Habermas - das condições que deram origem à esfera pública moderna, ele mantém uma orientação reconstitutiva dessa dimensão, segundo a qual nela estariam contidos princípios transcendentais de universalização cujo resgate seria condição sine qua non para avançar na democratização das sociedades contemporâneas. Não se precisa muito para intuir repercussões dessa escolha no seu programa de pesquisa, mas se precisa, sim, ir mais fundo para avaliar o sentido e peso que elas imporiam aos futuros desenvolvimentos da teoria habermasiana.

Diferentemente da ordem feudal, que depende, para sua sobrevivência, da imposição de controles políticos e ideológicos à auto-reprodução econômica da vida social, a era do capital, na sua nascente fase mercantil, definiu as condições para que fosse possível o domínio privado sobre a auto-reprodução social. A privatização desta auto-reprodução, quer dizer, da economia, inaugura o reinado da vida privada moderna e com isto, como era de se esperar, começa a vida da nova esfera pública12 12 Jürgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, Op. cit. , pp. 27-41. Doravante MEP. . Duas tendências de longo prazo coagulam-se na institucionalização desta esfera pública moderna, constituindo-a de forma contraditória e complexa. De um lado, o processo de diferenciação decorrente da dinamização endógena do social sob a dinâmica mercantil produziu, em sentido contrário, a necessidade de uma instância de unificação ou integração social, não mais garantida pela totalidade espontânea e natural característica das ordens pre-modernas. A função integradora da esfera pública continua a ser salientada até nossos dias, a começar por Habermas, mas também por todos aqueles engajados na defesa da importância do espaço público, como possibilidade de uma convivência social civilizada. No entanto, essa qualidade é apenas uma parte do processo histórico que explica a configuração moderna desta dimensão social, sem ser a que mais diz respeito à sua contraditória especificidade burguesa. De outro lado, a independência da economia com respeito às antigas ataduras feudais expandiu-se de tal maneira que muito rápido deixou de ser compreensível como um processo social meramente privado, a ser entregue apenas ao livre arbítrio dos interesses econômicos particulares no seu atuar espontâneo libertado de qualquer regulação pelo poder. A transformação completa da sociedade por trás da realização do tráfego mercantil tornou evidente sua importância social e conquistou para ele um estatuto público, investindo a economia do caráter de matéria pública - de uma questão de interesse geral. Destarte, se constrói na sociedade moderna uma tensão reciprocamente constituinte entre a esfera pública e a esfera privada, mediadas politicamente pela intervenção do social autônomo ou sociedade civil frente ao poder: ". . . (esta) esfera privada da sociedade que se tornou publicamente relevante . . . carateriza, em contraposição à sociedade antiga, a relação moderna entre esfera pública e esfera privada mediante a formação do 'social'. "13 13 Ibid. p. 33. Seja dito de passagem, o caráter necessariamente público e ao mesmo tempo constitutivamente privado da economia coloca uma chave de leitura complexa para entender a ambigüidade das coisas públicas contemporâneas e joga para a lixeira das argumentações vulgarmente rudimentares a discussão corrente nestes dias sobre a ampliação do mercado e a redução do Estado nos termos de uma equação matemática de soma zero.

À esfera pública burguesa corresponde uma base social que lhe dá sustentação e a produz no processo simultâneo através do qual essa base constitui-se numa classe com identidade própria. Trata-se da sociedade civil burguesa independente frente ao poder, constituída por indivíduos livres e proprietários, donos das suas condições de vida, que terminaram por projetar ao entorno social a capacidade individual do juízo autônomo e fundamentado, constituindo um público raciocinante, de relações horizontais e sem mediação do poder. Esse público encontra-se no auge das casas de chá, dos círculos de leitores, dos pubs (public houses), dos jornais de crítica e culturais, que juntamente constituíram a incipiente institucionalidade de uma configuração burguesa da esfera pública de caráter não político e privado, chamada por Habermas de esfera pública literária- "publicidade literária"14 14 "Ainda antes que a natureza pública do poder público tenha sido contestada pelo raciocínio político das pessoas privadas para, afinal, ser-lhe totalmente subtraída, forma-se sob a sua proteção uma esfera pública sem configuração política-o esboço literário de uma esfera pública a funcionar politicamente." "No setor privado também está abrangida a esfera pública propriamente dita, pois ela é uma esfera pública de pessoas privadas." Ibid. pp. 44 e 45-46. . Essa esfera pública literária amadureceria até adquirir uma configuração propriamente política, através do deslocamento da crítica literário-artística para o mundo das decisões do poder e dos interesses sociais privados por elas atingidos. A nova crítica social ao poder viria a se coagular na categoria moderna da opinião pública, que concentra de tal forma o sentido da esfera pública burguesa "clássica" quer até hoje, se mantém como quesito da legitimidade política a compatibilização das ações do poder com o mandato público expressado, precisamente, na forma da opinião pública. A opinião pública é assim produto e construtora da independência de um âmbito social com efetividade de mediação para se enfrentar com a autoridade política e para fazer valer os interesses do universo de privados-proprietários-ou sociedade civil perante o Estado. Isto caracteriza, precisamente, a definição habermasiana da esfera pública burguesa original, "a esfera pública com atuação política passa a ter status normativo de um órgão de automediação da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda às suas necessidades15 15 Ibid. p. 93. . "Em conseqüências possível afirmar que "A tarefa política da esfera pública burguesa é a regulamentação da sociedade civil (por oposição a res pública). . . "16 16 Ibid. p. 69. . A dimensão pública moderna resulta uma construção emanada do amadurecimento da sociedade civil burguesa, dirigida por ela para o Estado como mediação racionalizadora do poder, através do exercício contundente da crítica-formulação esta que permite compreender a funcionalidade da esfera pública na harmonização de tensões entre a sociedade e o Estado, sem-por tal motivo deixar de ser um produto de um âmbito privado robusto que faz contrapeso ao poder e nele consegue se representar. Para entender os desdobramentos que este achado histórico-modelado sociologicamente por Habermas na sua estilização de uma esfera pública raciocinante e racionalizadora do poder-traria para o programa de pesquisa do próprio filósofo alemão, é preciso manter presente que nesta ótica a dimensão pública moderna se produz no lado da sociedade e mais especificamente no seio da sociedade civil (burguesa).17 17 No prólogo à edição alemã de 1990 de MEP, editado e traduzido na reedição da versão em castelhano de 1994 (México, Gustavo Gili, 1994), Habermas explicita com toda clareza que aquilo que foi discutido por ele como uma esfera pública política-"publicidade política"- , em 1962, hoje é debatido"... sob o título do 'redescobrimento da sociedade civil'. " ( p. 32)

O modelo habermasiano exposto até aqui sinteticamente não ficaria completo, sobretudo no que diz respeito ao nosso interesse nas suas repercussões, se não fossem contemplados os processos de transformação estrutural que tiveram lugar nas derradeiras décadas do século XIX e, principalmente, no transcurso do século XX. É desde a crítica do autor às tendências destrutoras da esfera pública que é possível atingir uma idéia global do seu modelo e dos problemas que este lhe deixou para seus futuros desenvolvimentos teóricos. São cinco os fenômenos identificados criticamente por Habermas, que interatuaram para inibir a autonomia desse "público de privados" e para desativar a esfera pública como instância de mediação crítica e encontro com o poder- sempre controlada na sua gênese a partir do social, a) A irrupção das massas no terreno da política ou a massificação da política: diferentemente do diálogo racional entre pares a ascender à esfera política na justa concorrência dialógica, as massas vieram a compensar suas desvantagens sociais oferecendo em troca, pela intervenção favorável do Estado, uma acrítica legitimidade quantitativa de um público não mais raciocinante, mas aclamatório e plebiscitário.18 18 MEP, pp. 173-174. b) A concentração de capital: o público de privados iludido na igualdade sob o princípio de livre propriedade, que fez com que existisse uma distribuição relativamente igualitária do direito à interlocução, foi banido da capacidade de se auto-representar pelo processo de concentração de capital, c) O crescente intervencionismo do Estado com dupla face: por um lado, uma vez que o capital deixou para trása esfera de uma sociedade civil de livres proprietários, o Estado começou a atuar como favorecedor do capital subordinando os interesses da outrora sociedade civil relativamente igualitária de indivíduos raciocinantes; de outro lado, o Estado, levado pelos efeitos da legitimidade quantitativa, tornou-se Estado social e começou a desenvolver um papel de gerador político do âmbito público, abolindo, assim, a diferença entre as ordens da dominação política e do social, que dera lugar à esfera pública burguesa. Nas palavras de Habermas, "somente esta dialética de uma socialização do Estado que se impõe, simultaneamente com a estatização progressiva da sociedade, é que pouco a pouco destrói a base da esfera pública burguesa: a separação entre Estado e sociedade. 19 19 Ibid., p. 170. ". . . com o que surge urna nova esfera, com concentração do capital e intervencionismo, a partir do processo correlato de uma socialização do Estado e de urna estatização da sociedade. Esta esfera não pode ser entendida completamente nem como sendo puramente privada nem como sendo genuinamente pública. " Ibid., p. 180. "d) A institucionalização corporativa de interesses: a cada vez mais reduzida influência de um público composto por vínculos quase orgânicos entre privados esparsos, impulsionou uma dinâmica de reagrupação corporativa de interesses, uma espécie de refeudalização da vida pública20 20 "Naturalmente, através disso não se restabelece a esfera pública representativa [publicidade representativa] ao velho estilo, mas ela empresta, contudo, certos traços de uma esfera pública refeudalizada... ". Ibid., p. 234-235, também Cf. pp. 229 e 263. , que de novo substituiu o público raciocinante por um público coletivo, aclamatório e de direitos delegados, e) A alienação da opinião pública: o último fenômeno a ser adicionado à lista das devastadoras transformações estruturais da esfera pública relaciona-se com a expansão incontida dos meios massivos de comunicação, sob a lógica capitalista, que veio a quebrar os pressupostos comunicativos do modelo-habermasiano da esfera pública "clássica" e a substituir de maneira monopolista os processos horizontais de construção da autêntica opinião pública pela manipulação de processos pré-formados de uma opinião não pública21 21 "Originariamente, a publicidade garantia a correlação do pensamento público tanto com a fundamentação legislativa da dominação como também com supervisão críticasobre o seu exercício. Entrementes, ela possibilita a peculiar ambivalência de uma dominação sobre a dominação de uma opinião não-pública: serve à manipulação do público na mesma medida que a legitimação ante ele. O jornalismo ["publicidade"!] crítico(a) é suprimido(a) pelo(a) manipulativo(a)." Ibid., p. 210. .

Embora a persistência dos fenômenos identificados por Habermas numa crítica dilacerada continuem a estar presentes de tal forma que impeçam pensar, por enquanto, no surgimento de um horizonte histórico de renascimento de uma robusta esfera pública - segundo seus cânones clássicos -, isto não leva o autor a encerrar sua posição num pessimismo que julga impossível ultrapassar a negatividade do seu diagnóstico. A saída por ele escolhida frente a este dilema é uma aposta pela incerta possibilidade de uma revitalização da esfera pública, lançando mão de uma ambigüidade que ainda subsiste nesta dimensão nas sociedades contemporâneas: se de um lado ela perdeu e continua a perder todo teor crítico frente ao poder, tornando-se instrumento deste último para o domínio da sociedade, de outro os quesitos da legitimidade política ainda se validam no marco simbólico da Revolução Francesa e o mandato de um público que fornece sustento à autoridade sobrevive como um pressuposto irrenunciável das democracias.22 22 A importância simbólico-política da Revolução Francesa, na possibilidade de manter o horizonte aberto para a revigorização da esfera pública, seria trabalhada com muito maior clareza vinte e sete anos depois, num texto de 1989. Cf. Jürgen Habermas, "La soberanía popular como procedimiento. Un concepto normativo de lo público", em Mana Herrera (coord.), Op. cit., pp. 27-58. A exigência da esfera pública e da opinião pública como peças fundamentais da institucionalidade política mantém o caminho aberto para as expressões autenticamente públicas recuperarem espaço frente aos processos de pré-formação dirigida da opinião pública. Isto é possível devido a uma qualidade inerente à esfera pública moderna, que coloca dificuldades para a expropriação total da participação política da sociedade. Trata-se do seu caráter aberto e dialógico, isto é, de uma semente que contém em si a possibilidade de uma universalização sob o apelo ao princípio de reconhecimento argumentativo entre indivíduos raciocinantes: "O interesse de classe é a base da opinião pública. Durante aquela fase ela precisa, no entanto, ter também coincidido objetivamente como o interesse geral, ao menos ao ponto dessa opinião, como opinião pública intermediada pelo tirocínio do público, ter podido ser por isso considerada racional.... À base da contínua hegemonia de uma classe sobre as outras, esta classe desenvolveu, contudo, instituições políticas que como seu sentido objetivo implicavam de modo crível a idéia da sua própria superação: ventas non auctoritas facit legem, a idéia da dissolução da dominação naquela leve coação que, tanto mais, se impõe na visão vinculante de uma opinião pública."23 23 MEP, p. 108. "A verdade, não a autoridade, é que faz a lei" ; frase em latim que remete à introdução da razão como fonte de legitimidade na esfera pública moderna, contrariamente ao velho domínio público feudal onde a legitimidade da lei provinha da autoridade que a ditava. Cf. também pp. 102-103. "Só à proporção do avanço de tal racionalização é que, por sua vez,.... surge e se forma uma esfera pública política... "24 24 Ibid., p. 245. .

A saída construída por Habermas mantém no terreno da teoria e da prática uma tensão terrivelmente forte entre três momentos ou "núcleos de problemas" construídos com minúcia no seu modelo: um desenho do que foi e, em conseqüência, deve ser uma autêntica esfera pública, uma crítica devastadora das tendências que desestruturaram a funcionalidade dessa esfera pública ao desvencilhar seus pressupostos internos de constituição e, por último, o imperativo de manter um desejo de revigorização dessa esfera baseado nos princípios lógicos de universalização nela contidos- além de incerta realização histórica. É de se notar que, sendo herdeiro da escola de Frankfurt, Habermas dela se diferencia de modo interessante ao se afastar do pessimismo da crítica à razão moderna e à modernidade, o que faz com que seu diagnóstico seja- para ele mesmo - passível de superação. A saída de Habermas distingue-se- e a partir daqui continuaria a se distinguir, devemos dizer -por recusar o conformismo, sendo ao mesmo tempo crítica e conservadora, num esforço de denúncia e de preservação. Esta ótica decorrente do posicionamento do autor perante os problemas concretos do futuro da esfera pública, levantados e construídos sociologicamente no trabalho de 1962, moldaria sua obra e a diferençaria nos tempos vindouros da maré de pensadores pós-modernos e seu ceticismo perante a modernidade e suas instituições políticas. Eis aqui o germe do que mais de duas décadas depois ficaria explicitado na tese habermasiana da modernidade como projeto inconcluso.25 25 Cf. as lições XI e XII da sua conhecida obra, publicada em 1985, The Philosophical Discourse of Modernity-Twelve Lectures, Cambridge, Massachusetts/London, The MIT Press, 1995, pp. 294-326 e 336-367. (Existe tradução ao português: Discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Dom Quixote, 1990). Mas antes de refletirmos diretamente nas repercussões do que aqui foi chamado de núcleo de problemas originais do programa de pesquisa de Habermas, é preciso anvançar na crítica destes problemas.

UMA HIPÓSTASE PERSEVERANTE

Conforme foi visto, Habermas arrisca uma aposta pelo resgate da esfera pública como uma luta pelo restabelecimento das condições de dialogicidade próprias ao surgimento desta dimensão social moderna, isto é, como restauração de uma opinião pública - diferente daquela que hoje impera - revigorada no seu potencial para racionalizar o poder ao constituir uma formação discursiva da vontade social. Este esforço pode ser avaliado em termos gerais desde duas óticas abrangentes, que, embora não se excluam, colocam a tônica da análise em pontos distintos. A primeira ótica diz respeito às conseqüências que o modelo habermasiano leva para uma teoria sistemática da categoria "público", o que é importante devido à enorme influência que neste terreno conquistou o estudo sobre as mudanças estruturais da esfera pública. Já a segunda ótica está voltada para o interior da teoria de Habermas e se preocupa com a pertinência de manter e universalizar este modelo de construção altamente estilizada, como o próprio Habermas gosta de dizer frente às críticas históricas que lhe foram formuladas. É a segunda destas linhas de leitura que nos interessa neste momento. E cabe reiterar desde já que a crítica ao modelo não é e nem poderia pretender ser uma crítica ao conjunto do pensamento de Habermas, tanto porque não contempla sistematicamente seus desenvolvimentos posteriores quanto porque, nestes desenvolvimentos, Habermas teve que corrigir algumas das implicações do modelo; mas é, sim, uma avaliação do conjunto de problemas originais que organizaram o programa de pesquisa do filósofo alemão e, portanto, fornece uma chave de leitura crítica para se acercar da sua obra como um todo.

O percurso da crítica segue uma argumentação que pode ser resumida num plano muito simples. Sobre o achado histórico da função democratizadora da esfera pública burguesa e dos seus princípio constitutivos, sistematizados numa bela estilização sociológica, construiu-se um modelo universal da interação social e de sua relação com o poder, isto é, uma hipóstase da sociedade civil burguesa do século XIX como sociedade em geral. Ancorar o modelo na prática política e nos pressupostos de funcionamento dessa sociedade civil produz pelo menos três conseqüências indesejáveis, a começar por algo que, sem muito rigor analítico, poderia ser chamado de "romantismo ilustrado" com respeito às massas ou à ação coletiva popular, seguindo por uma sofisticada visão da política paradoxalmente despolitizada e concluindo com os custos que este modelo impôs como recorte da realidade que exclui fenômenos particularmente relevantes da relação política entre a sociedade e o poder. Em resumo, trata-se de uma hipóstase como um pressuposto que é problemático e que acarreta como conseqüências indesejáveis um "romantismo ilustrado", uma espécie de despolitização da política e uma exclusão de fenômenos relevantes. Nos tempos seguintes, isto é, depois de 1962, os críticos de Habermas e especialmente de suaação comunicativa como uma pragmática universal, têm direcionado suas armas para colocar em questão os pontos deste percurso crítico ou alguns elementos a eles vinculados. Porém, nem sempre identificam com clareza a origem destes problemas no programa de pesquisa habermasiano.26 26 Cf., ex., Jürgen Habermas, "Moralidad, Sociedad. . ., Op. cit. e Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre questões da teoria política", entrevista concedida a Mikael Carlehedeme e René Gabriels, (1995) em Novos Estudos 47, março, 1997.

O modelo da esfera pública habermasiana se constrói sobre o referente histórico do processo pelo qual a interação dialógica de uma sociedade civil autonomizada- no econômico primeiro, depois no cultural e por último no político -termina projetando para a esfera política o acordo racional dos seus interesses, exigindo seu cumprimento ao poder através de uma opinião pública ativa e movente. Contudo, essa sociedade civil nunca foi igual ao conjunto de particulares do todo social. Mais precisamente, estava composta de determinadas camadas bem aquinhoadas da população, naturalmente homens adultos e proprietários, sempre promotores espontâneos do mercado através da sua própria forma de vida. O público de livres proprietários- "público de privados" nos termos de Habermas -, de livres-pensadores e de indivíduos autônomos politicamente, sem dúvida trazia um princípio universalizador atrás de seu apelo à razão, mas também portava uma determinada forma particular-além do mais historicamente datada -de entender e praticar tanto a política quanto as interações sociais horizontais. O modelo de Habermas tende a coagular e a universalizar as condições concretas de efetividade que fizeram possível, na gênese da esfera pública moderna, remeter ao recurso do acordo racional as diferenças de interesses próprias das camadas dessa sociedade civil. A hipóstase de Habermas é dupla: de um lado universaliza uma relação concreta e particular entre uma parte da sociedade e o poder como a relação entre sociedade e poder em geral e, de outro lado, projeta esta universalização para o presente e mantém a exigência de adequação- também normativa, por suposto-do modelo sobre uma realidade, tão radicalmente mudada nos últimos dois séculos, que não preserva nada de significativo com respeito às condições de produção e funcionamento político da sociedade civil burguesa do século XIX.27 27 Estas transformações têm sido objeto de múltiplas análises no campo da ciência política pelos impactos delas decorrentes para as instituições democráticas e mesmo para a democracia. Cf., por ex., Robert A. Dahl, Democracy and ist critics, New Haven/ London, Yale University Press, pp. 213-224. Também a Sociologia tem abordado esta questão desde a ótica da ruptura das visões unitárias do mundo, cf. a clássicaobra de Karl Manheim, Ideología y utopía, México, FCE, 1987. pp. 5-12 Já foi dito acima que a dura tensão entre o modelo altamente estilizado, o diagnóstico crítico e o imperativo de revigorização da esfera pública era o saldo de 1962. Agora é possível afirmar que, para manter a força interpretativa do modelo, o que quer dizer suas possibilidades de universalização- primeira parte da hipóstase -, Habermas teve de encontrar uma solução viável para transitar das exigências do modelo para uma realidade radicalmente mudada-segunda parte da hipóstase. Não se precisa uma intuição muito desenvolvida para postular que a resposta a este problema foi elaborada de maneira notável, precisamente, através da teoria da ação comunicativa.

Mas por enquanto convém permanecermos em 1962, para findar a análise dessa hispóstase e das suas conseqüências. O próprio Habermas percebeu agudamente que as sofisticadas exigências colocadas pelo modelo à realidade representavam o risco de ficar sem nada, isto é, de condenar de forma definitiva a esfera pública à extinção e de dar por encerradas as suas possibilidades de existência segundo os cânones contidos no modelo. Destarte e a contrapelo da sua própria crítica à refeudalização da vida pública, que acaba com o público de privados e concentra de forma perversa-mas efetiva-uma defeituosa e limitada representação social de interesses nas mãos de instituições corporativistas, Habermas teve de reconhecer a importância de um público de pessoas privadas organizadas. Com efeito, no que poderia ser considerado como a conclusão do trabalho sobre as mudanças estruturais da esfera pública, Habermas abre mão da sua própria crítica para dar lugar a um público de organizações, coletivo, corporativo, de suserania delegada, enfim, um público paradoxalmente não moderno no sentido do modelo habermasiano da esfera pública28 28 "... o mandato da opinião pública é agora expandido, além dos órgãos estatais, para todas as organizações que atuam em relação ao Estado. A seguir-se realizando essa transformação substituindo um público-não mais intato-de pessoas privadas individualmente insertas no tráfico social, surgiria um público de pessoas privadas organizadas. "Por suposto, Habermas reconhece os riscos da refeudalização e introduz de novo a exigência do mandato da opinião pública, agregando após, imediatamente: "Nas atuais circunstâncias, apenas elas [as pessoas privadas organizadas] poderiam participar de um processo de comunicação pública, fazendo uso dos canais da opinião pública interna dos partidos e associações, e sobre a base da notoriedade pública que viria se impor à relação das organizações com o Estado e também entre elas. O estabelecimento de compromissos políticos teria que se legitimar ante este processo de comunicação política." MEP, tradução da versão em castelhano, p. 257. . Ainda com as possibilidades abertas pela aceitação dos potenciais democratizadores de um público não mais de privados mas de corporações e organizações privadas, as tensões do modelo habermasiano continuam a vigorar, o que faz com que o desenvolvimento de seu programa de pesquisa esteja não só vazado quanto impulsionado por elas. A grande incógnita que permanece no ar é se os conteúdos democratizadores e universalizadores dessa esfera pública modelada, e mesmo a esfera pública, são ainda passíveis de realização nas nossas sociedades. Em 1989, mais de cinco lustros depois de concluídos os trabalhos do seu modelo de esfera pública e após ter desenvolvido os estudos mais influentes e reconhecidos do seu programa de pesquisa, Habermas declarou essa incógnita como não resolvida: "Não se sabe de verdade, se esta 'sociedade cultural' só reflete a 'força do belo' profanada com fins comercias e de estratégia eleitoral, e com isto uma cultura de massas privatista e semanticamente rarefeita; ou se a mesma poderia constituir uma caixa de ressonância para uma esfera pública revitalizada, na qual a semente das idéias de 1789 apenas estivessem por nascer"29 29 Jürgen Habermas, "La soberania popular... ". Op. cit. , p. 36. . E para "cercar" e desvencilhar este nó histórico, achado e reconstruído teoricamente em 1962, que o pensamento de Habermas continua a trabalhar até hoje.

A hipóstase do modelo habermasiano, todavia, produz conseqüências problemáticas, algumas das quais receberiam respostas através de profundas reformulações e desenvolvimentos no seu programa de pesquisa. Começaremos pelo que aqui foi chamado de "romantismo ilustrado" frente às massas e à ação coletiva popular. O modelo de uma esfera pública dialógica leva inevitavelmente a uma concepção dialógica da política, que acentua não a institucionalização para a supressão ou a homogeneização autoritária de interesses, mas seu exercício como uma prática valiosa em si para processar civilizadamente as diferenças de interesses próprias da ordem social. Uma concepção da política assim é possível porque, dentro da esfera pública burguesa, existia um vínculo genético entre o surgimento do indivíduo livre e a criação e postulação da cidadania como categoria política moderna, que fundamentava a arquitetura da novíssima institucionalidade republicana; de fato, são esses cidadãos no exercício de seus direitos para preservar seus interesses o que na obra de Habermas recebe o nome de esfera pública. Entretanto, a coagulação do cidadão como o sujeito político moderno por excelência, com sua prática política como um acordo dialógico e civilizado de diferenças, produziu-se simultaneamente como deslocamento da categoria política "povo". O povo, multidão de massas sem apelo ao princípio da diferença, abstinente de todo raciocínio literário e dado à ação coletiva não individualizada frente ao poder, dificilmente se encaixa num modelo dialógico da política. Isto explica porque a expansão desmesurada da opinião pública, sob invasão das massas na política, produz em Habermas uma melancolia pelo público formado nos supostos culturais de uma publicidade literária,30 30 "As formas de sociabilidade burguesas tem encontrado substituto ao longo de nosso século, a tendência é a mesma em todas partes, independentemente da diversidade regional e nacional: a abstinência de todo raciocínio literário e político. A discussão social dos indivíduos recua perante às mais ou menos obrigatórias atividades de grupo ... Em tomo às group activities não se constitui público nenhum ... A ocupação do ócio do público consumidor de cultura, em correspondência, tem lugar dentro do clima social e não precisa de coagular em discussões ... ". MEP, tradução da versão em castelhano, p. 192. pelo público leitor e raciocinante que projetou a experiência da vida privada burguesa para um espaço de sociabilidade que terminaria configurando a esfera pública moderna. Não parece necessário desenvolver a idéia de que uma concepção da política que privilegia supostos letrados e dialógicostem um viés de romantismo ilustrado, que impõe exigências dificilmente universalizáveis sem se produzir uma visão discriminatória de outras formas de se interatuar socialmente e de se fazer política-tipicamente aquelas da ação coletiva popular.31 31 As altas exigências da concepção habermasiana da política foram reformuladas ao longo do tempo nos termos da ação comunicativa e da uma teoria filosófica pós-metafísica, mas não diminuíram o ônus imposto aos sujeitos da participação política: "Uma esfera pública liberal necessita naturalmente de uma vida associativa livre, de um poder da mídia refreado e da cultura política de uma população habituada à liberdade; necessita do concurso de um mundo da vida mais ou menos racionalizado. A isto correspondem, do lado das estruturas de personalidade, identidades de eu pós-convencionais. " (1995) Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre.... ", p. 93.

À anterior conseqüência das exigências ilustradas corresponde o paradoxo de uma visão da política que, num certo sentido, a despolitiza. Convém nos explicarmos a este respeito: a esfera pública no modelo habermasiano é um produto histórico que opera como medição sócio-política no interior da sociedade e entre esta e o poder, portanto, não é concebida como uma criatura neutra da modernidade, nem se poderia atribuir a ela um estatuto apolítico; porém, na medida em que o caráter político desta esfera pública é resolvido por completo pela via da argumentação e das boas razões, se produz uma compreensão da política racionalizada em excesso que, neste sentido, a despolitiza. Esta concepção, que privilegia o componente da argumentação racional na política, despolitiza porque exclui outros conteúdos eminentemente políticos, tais como os interesses sociais conflitantes de caráter estrutural, impedidos de atingir o patamar da troca dialógica pela simples razão de não haver acordos possíveis apenas através do diálogo. Uma política despolitizada e concentrada só nos seus componentes deliberativos públicos precisa do suposto duplo de conflitos sempre passíveis de acordo e de sujeitos raciocinantes sinceros sempre dispostos a reconhecer a verdade dos argumentos contrários: "A manutenção de um antagonismo estrutural entre os interesses, a impossibilidade de superá-lo, ergueria barreiras muito estritas à publicidade ... a neutralização do poder social e a racionalização do domínio político no ambiente constituido pela discussão pública pressupõe, agora e sempre, a possibilidade um um consenso; pressupõe a possibilidade de uma coincidência baseada em critérios gerais e obrigatórios"32 32 Jürgen Habermas, Mudança estrutural...., Op. cit. , p. 259. . A presença de conflitos irreconciliáveis, se projetados no âmbito político por fora de uma esfera pública em que não tem cabimento sua resolução pela via da argumentação, faria explodir os pressupostos dialógicos como único expediente para constituir interesses públicos reconhecidos pelo poder e ruiria a posição de privilégio que favoreceu a sociedade civil burguesa na sua interlocução com a esfera da política. Parece claro que o pressuposto duplo, de conflitos passíveis de solução através de argumentação honesta e de indivíduos propensos ao acordo, encontra fundamento na esfera pública e, particularmente, na existência de uma sociedade civil burguesa com características e interesses homogêneos o suficiente para confiá-los a um diálogo entre iguais. Novamente, a universalização disto através de um modelo que supõe uma natureza dialógica da política apresenta problemas, como o de correr o risco de despolitizar a própria política.

O último desdobramento problemático da hipóstase acima analisada é o recorte ou exclusão de fenômenos relevantes da relação política entre a sociedade e o poder. Diz respeito aos custos do escopo escolhido por Habermas, centrado exclusivamente na sociedade civil burguesa como única produtora da esfera pública ou, com maior precisão, da dimensão moderna do público. Como esse escopo magnifica a sociedade civil burguesa e os processos a ela vinculados, considerando-a o único fator relevante na produção da dimensão do público moderna, produzem-se duas grandes e duráveis ausências no modelo habermasiano: as formas de ação política plebéia e sua obtusa persistência - chamadas por Habermas precisamente de "publicidade plebéia" - e o Estado de bem-estar e seu papel amplificador dos interesses populares revestidos de estatuto público. Sem dúvida, uma complexa e demorada dinâmica de longa duração, atrelada ao protagonismo silencioso da fala em público da sociedade civil burguesa, faz desta última o grande ator na construção da esfera pública moderna, pelo menos no que diz respeito a suas características mais duradouras e a seus princípios de universalização. Contudo, isto não pode significar que o acesso a esta dimensão social moderna e a determinação dos interesses nela reconhecidos foi uma prerrogativa absolutamente privativa da sociedade civil burguesa. Como pensar a estabilidade de uma ordem social se nela se prescinde do reconhecimento de cotas de interesses, ainda que reduzidas, das camadas dominadas ou pior aquinhoadas da população, e como reconhecer estes interesses se não coagulando-os através de sua institucionalização pública? O que ocorre é que o recorte do modelo habermasiano desconsidera outras formas de incidência na configuração pública de interesses que não as práticas civilizadas e dialógicas da sociedade civil burguesa, excluindo de vez por sua plebeidade numerosos fenômenos sócio-políticos: rebeliões, revoltas ou protestos de multidões.

A exclusão é mais surpreendente quando se considera que os séculos que vão de 1600 a 1800, precisamente aqueles em que assistimos ao nascimento da sociedade civil burguesa e da esfera pública, são ricos em levantes plebeus de todo tipo. Basta lembrar que o antecedente político mais importante para a universalização de um sistema de pesos e medidas público - hoje conhecido como sistema métrico decimal -encontra-se, precisamente, nas rebeliões plebéias urbanas desses séculos pelo acesso ao consumo de pão.33 33 Cf. Witold Kula, Las medidas y los hombres, México, Siglo XXI, 1980. Expressões políticas e da política de caráter plebeu como as assinaladas, que incidiram na configuração da esfera pública, são menosprezadas na estilização do modelo habermasiano por considerá-las historicamente subordinadas a uma manifestação mais ilustrada e civilizada da: política: o acordo raciocinante de interesses. Vinte e oito anos depois de encerrados os trabalhos das mudanças estruturais da esfera pública, no prefácio à edição alemã de 1990, Habermas adverte em dois pequenos parágrafos que não tinha dado tratamento a "... outras publicidades subculturais ou específicas de classe. . . ",34 34 Este prefácio está disponível na edição em castelhano de MEP de 1994, p. 6. às quais se referiu na obra original, sem nenhum desenvolvimento, como formas de "publicidade plebéia"35 35 Jürgen Habermas, Mudança estrutural. . . . , Op. cit. , p. 10. A tradução para o português fala de "esfera pública plebéia", o que resulta uma verdadeira contradição dentro do modelo habermasiano. Neste caso é impossível manter a tradução de Offentlchkeit por "esfera pública" sem produzir uma grande confusão. . A exclusão causada pelo escopo habermasiano coloca em questão as possibilidades de universalização do modelo e aponta de novo dificuldades que o desenvolvimento de seu programa de pesquisa e enfrentar.

Por último, é a vez de considerar a segunda grande exclusão do escopo analítico de Habermas. Não é difícil reconhecer o importante papel que o Estado de bem-estar desempenhou neste século garantindo e expandindo interesses sociais de amplos setores da população e, ainda mais, poder-se-ia afirmar que até hoje não se conhece, nas sociedades ocidentais, uma experiência mais abrangente no que diz respeito à integração social e ao nivelamento de interesses antagônicos. Porém, a valoração do Estado de bem-estar se torna um problema ambíguo para Habermas, pois se é pouco pertinente contemplar com desdém- teórico e político -a "influência democrática" deste Estado na ordem econômica, sua valoração entra em choque com a ácida crítica desenvolvida pelo autor para colocar em questão os efeitos nocivos do seu papel de produtor político do âmbito público. A expansão das funções do Estado seria uma das mudanças estruturais que, ao abolir a diferença entre este e a sociedade, teriam ferido com risco de vida a existência de uma esfera pública autêntica. A autenticidade da esfera pública em Habermas não remete tanto ao problema dos interesses nela reconhecidos quanto a sua produção desde a vida da sociedade civil, isto é, a sua autonomia, controle e espontaneidade sociais. Destarte, no modelo habermasiano se coagula, desde seu origem, uma arquitetura dual das sociedades, que as cinde entre o mundo do poder (Estado) e o mundo social (sociedade civil), restando do lado da sociedade a produção da esfera pública. Perante o dilema da avaliação e eventual incorporação teórica do Estado de bem-estar, e tendo desenvolvido um modelo dual da arquitetura social, Habermas fica, obviamente, com o pólo do mundo social. Isto se deve ao fato de que no conjunto do trabalho de 1962 apenas existam duas referências positivas e marginais sobre o papel do Estado de bem-estar na extensão de direitos sociais.36 36 "A fórmula previsão da existência coletiva' cobre uma multidão de funções novas que vem desenvolvendo o Estado social e cobre também um grande leque de interesses privados organizados coletivamente e expandidos graças ao próprio crescimento do Estado. O Estado intervém fundo, mediante leis e diversos expedientes, na esfera do tráfego mercantil e do trabalho social, porque os interesses em atrito das distintas forças se deslocam para a dinâmica política e, mediados pelo intervencionismo estatal, retroagem sobre a própria esfera privada. Por isto, vistas as coisas globalmente, não pode se negar a influencia democrática' sobre a ordem econômica: a massa de desposuidos tem conseguido, mediante intervenções públicas no âmbito privado . . . que sua participação na renda não diminua no longo prazo ..." (imediatamente depois Habermas continua com a crítica ao acoplamento das esferas pública e privada) A segunda menção diz: "A mudança de função dos direitos fundamentais que ocorre no Estado social, a transformação do Estado liberal de direito em Estado social, em general, ameniza a tendência efetiva do enfraquecimento da publicidade como princípio. . . " MEP, tradução da versão em castelhano, pp. 178 e 257.

A dualidade do modelo habermasiano, herdada do núcleo de problemas elaborados teoricamente nesse trabalho, continuaria a vigorar como uma constante do seu programa de pesquisa e nela se baseariam, em princípio, sua idéia de sociedade em dois níveis e a critica ao direito, ao Estado e à economia como colonizadores do mundo da vida- concepções desenvolvidas dentro de sua teoria da ação comunicativa. Porém, os problemas de universalização de um modelo que desconsidera o Estado, instância universalizadora por excelência das sociedades modernas, fariam com que décadas depois seu programa de pesquisa tomasse rumos inexplicáveis para muitos dos seus leitores, surpresos com a retomada positiva do direito nos escritos de finais dos oitenta e começos dos noventa.37 37 Cf, por ex., Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre ..." Op. cit., pp. 99-100. Uma vez mais, através da crítica ao núcleo de problemas originais do programa de pesquisa do filósofo alemão, chegamos aos limites colocados pela universalização de um modelo construído a partir do achado histórico de uma forma de sociabilidade e de agir político própria da sociedade civil burguesa e sua esfera pública. O programa de pesquisa de Habermas pode ser compreendido, reconstrutivamente, como um titânico esforço que leva este achado até às últimas conseqüências teóricas, defrontando-se com o desafio de desenvolver um enorme e sofisticado corpo de mediações para superar os conteúdos particularistas do modelo e avançar numa progressiva universalização rumo a uma teoria geral.

UM PROGRAMA DE PESQUISA OBSTINADO

Uma leitura reconstrutiva do programa de pesquisa de Habermas apresenta algumas dificuldades sobre as quais é bom refletirmos para evitar mal-entendidos. Até aqui foi delimitado o núcleo de problemas originais que se encontram na base desse programa e foram identificadas as críticas que apontam os limites para extrair conseqüências universais desses problemas, tal como foram elaborados teoricamente no modelo habermasiano de esfera pública. Porém, uma leitura reconstrutiva como a aqui proposta poderia ser suspeita de tentar encaixar o extraordinariamente prolífico e diversificado pensamento do filósofo alemão dentro do estreito quadro de um modelo que, se comparado com outros trabalhos posteriores, poderia ser julgado de escassa relevância teórica - além de desconsiderado pelos especialistas e mesmo pelo autor, que gostam de se centrar na teoria da ação comunicativa. Além do mais, talvez fosse de maior pertinência renunciar à pretensão de uma leitura excessivamente abrangente e se limitar a uma idéia menos ambiciosa (e também menos produtiva) de leitura da obra de Habermas, concebendo-a como um eixo teórico central-a teoria da ação comunicativa-, acompanhado de um enorme conjunto de desenvolvimentos com respeito a temas e autores diversos, sem conexão sistemática com esse eixo. Neste caso, a falta de conexão sistemática não pressuporia contradições de importância no pensamento do autor, mas simplesmente o fato de que muitos dos trabalhos não teriam sido desenvolvidos para ocupar um lugar na teoria da ação comunicativa ou nos seus desdobramentos, o que obviamente apresentaria a vantagem de diminuir o número de obras a serem consideradas para uma compreensão aprofundada do pensamento habermasiano.38 38 Uma perspectiva assim privilegiaria, por exemplo, um percurso de leitura com o seguinte: Teoria da ação comunicativa I e II (1981); Consciência moral e ação comunicativa (1983), Teoria da ação comunicativa-Complementos e estudos prévios (1984); Escritos sobre moralidade e eticidade (1986); Between Facts and Norms- Contribution to a Discourse Theory of law and democracy (1992). Neste percurso, seja dito de passagem, não se levam em conta mais de uma dezena de obras publicadas nas décadas dos sessenta e setenta. Todavia, se esta última objeção estivesse correta, seria preciso admitir que a idéia de um programa de pesquisa não é mais do que uma artifício para se referir imprecisamente ao que o próprio Habermas batizou de teoria da ação comunicativa, como uma proposta depragmática universal.

As objeções e ressalvas acima expostas parecem razoáveis e ambas encontram sustento na longa trajetória de mais de trinta livros que compõem a obra de Habermas, embora se refiram a questões diferentes: os riscos de reduzir o pensamento do autor a um modelo de duvidosa relevância teórica no conjunto da sua obra, no primeiro caso, e a maior pertinência de resolver o programa de pesquisa habermasiano simplesmente através da teoria da ação comunicativa e seus desdobramentos, no segundo. O problema é, então, saber quais as chaves mais pertinentes para uma leitura com sentido de unidade- sem redução - de uma obra que, com o passar das décadas, tem aumentado vertiginosamente: seis livros publicados nos anos sessenta39 39 Estudents and politics (1961), Mudança estrutural da esfera pública (1962), Teoria e praxe (1963), Conhecimento e interesse (1968), Técnica e ciência como ideologia (1968) e Protest-bewegung und Hochschulreform (1969). , cinco nos setenta,40 40 La lógica de las ciencias sociales (1970), Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie-Was leistet die Systemforschung (1971), Perfiles filosófico-políticos (1971), A crise de legitimação no capitalismo tardio (1973) e Para a reconstrução do materialismo histórico (1976). pelo menos treze nos oitenta e41 41 Stichworte zur 'Geistigen Situation der Zeit' (1980), Teoria de la Acción comunicativa I e II (1981), Ensayos políticos I-IV (1981), Sobre Nietzsche y otros ensayos (1982), Consciência moral e agir comunicativo (1983), Adorno-Konferenz (1983), Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos (1984), Discurso filosófico da modernidade (1985), A nova intransparencia (1985), Ensayos políticos V (1985), Escritos sobre moralidad y eticidad (1986), Identidades nacionales y posnacionales (1987), Pensamento pós-metafísico (1988), mais quatro até 199242 42 Textes e contextes (1991), Passado como futuro (1991), Between Facts and Norms -Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy (1992) e Justification and Aplication-Remarks on Discourse Ethics (1993). - isto sem contar artigos, conferências, entrevistas e outros escritos que ainda não foram compilados e publicados exclusivamente sob o nome do autor. Ademais, seja dito de passagem, deve-se ter presente que, embora muitos dos livros da trajetória intelectual de Habermas sejam- como era de se esperar -coletâneas de textos elaborados por separado, este nem sempre seria um critério satisfatório de hierarquização com respeito aos trabalhos concebidos sob uma argumentação unitária, se considerada a densidade teórica e a importância do ensaio na tradição da Escola de Frankfurt43 43 É possível lembrar, por exemplo, as consideráveis repercussões causadas pela coletânea de ensaios Para a reconstrução do materialismo histórico, cujo segundo texto, apresentado na Associação Internacional Hegel no ano anterior à publicação, deu nome ao livro. . A ótica segundo a qual foi apresentado este ensaio como uma leitura reconstrutiva do programa de pesquisa de Habermas, baseada no resgate e crítica do núcleo de problemas de 1962, contémna sua própria premissa inicial uma resposta para as ressalvas analisadas. A proposta de salientar este núcleo de problemas elaborados teoricamente no modelo da esfera pública habermasiana faz com que a obra do filósofo alemão seja interpretada - ou apropriada -não como um corpo monolítico amarrado por uma teoria ou por um reduzido número de teses fundamentais, mas como um programa constituído por problemas interligados, cuja determinação e possível resolução teórica se foi realizando através de sucessivos avanços de pesquisa em mais de um terreno e nunca de forma linear. Nesta leitura, a importância da teoria da ação comunicativa é contextualizada no interior do programa, o que, sem negar seu lugar privilegiado, todavia oferece respostas satisfatórias a questões não levadas suficientemente em conta por uma visão centrada apenas na referida teoria. Como entender, por exemplo, sem o referente de um programa de pesquisa, a presença de uma teoria da competência comunicativa em obras publicadas oito anos antes da influente teoria da ação comunicativa (1981)?44 44 Cf. Jürgen Habermas, A crise de legitimação no capitalismo tardio (1973). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, pp. 20-29 e 111-118. Ou como se relacionar com a produção das décadas dos sessenta e setenta ou com a retomada otimista do direito e do Estado que vem marcando os trabalhos do autor desde finais dos oitenta? Contudo, o fato de a premissa inicial conter respostas plausíveis perante as ressalvas, que supõem outras formas possíveis de leitura, não iria além de uma argumentação que volta a seu ponto inicial se nos considerássemos eximidos do ônus da prova, isto é, de mostrar na leitura da obra de Habermas que uma apropriação como a aqui proposta é ao mesmo tempo realizável e pertinente. Resta, então, avançar nessa direção.

No programa de pesquisa de Habermas é possível distinguir quatro linhas de trabalho, que não apenas mantêm uma clara continuidade com os achados elaborados no modelo de 1962, mas extraem conseqüências passíveis de universalização, traduzindo estes achados em verdadeiras problemáticas teóricas. Em primeiro lugar, a relação entre a sociedade e o poder mediada pela crítica de uma esfera pública autônoma e coagulada no mandato da opinião pública como quesito das democracias coloca como pano de fundo o problema da legitimidade como limite à ação do Estado. Diferentemente das visões tradicionais da legitimidade como componente indispensável da dominação política, trata-se de uma nova forma de enxergá-la como o processo por excelência de racionalização e transformação do poder nas sociedades modernas. Porém, uma avaliação séria das conseqüências desta forma de legitimidade precisaria avançar para uma teoria da legitimação como racionalização comunicativa do poder. Em segundo lugar, a modelação teórica da relação da sociedade civil burguesa com o poder, simbolizada em uma arquitetura dual das sociedades cindidas entre o mundo social e o Estado, abre a possibilidade de refletir as tensões conflitantes e estruturalmente constituintes da sociedades modernas fora do quadro analítico próprio das teorias sobre a luta de classes. Também neste caso seria necessário desenvolver avanços teóricos para explorar as conseqüências desta forma de se organizarem os conflitos de interesses nas sociedades democráticas modernas. Em terceiro lugar, a existência de uma esfera pública sustentada na sociabilidade raciocinante do mundo da sociedade civil-burguesa destaca o papel da comunicação como vínculo de unificação e reconhecimento das diferenças no seio da vida social, o que faz com que em última instância seja possível distinguir a interação da vida social a partir da produção comunicativa de sentidos. O fundamento de uma pragmática comunicativa precisaria de uma teoria da ação social, cujo desenvolvimento estivesse voltado para construção de um sólido arcabouço conceitual sobre a racionalidade lógico-universal subjacente aos atos de fala. Por último, a quarta linha de reflexão está destinada a prestar conta da subjacência de um pressuposto originado no efeito racionalizador da esfera pública, cuja permanência é indispensável para as três primeiras linhas de trabalho. Trata-se de uma concepção comprometida com o resgate positivo da razão como meio de transformação do) mundo e necessitada, ao mesmo tempo, de uma "reedificação comunicativa" da própria razão frente à defesa que dela se faz desde o essencialismo e contra os embates críticos do ceticismo, o decisionismo e o relativismo. Uma constante maior engloba essas quatro linhas interligadas de trabalho que bosquejam o programa de pesquisa de Habermas: é a que diz respeito ao progressivo abandono do terreno do conhecimento factual sociológico para se instalar no domínio normativo da filosofia. Esta constante resume a tendência à universalização do esforço intelectual de Habermas, mas. também simboliza de forma estupenda a impossibilidade de resolver no reino da história um modelo de esfera pública ancorado em pressupostos constitutivos hoje inexistentes.45 45 Esta idéia também tem sido assinalada por John Keane em La vida pública y el capitalismo tardio (México, Alianza, 1992, pp. 214 e 228-234) e por Antoni Domènech, tradutor da edição espanhola de 1981 do trabalho sobre as mudanças estruturais da esfera pública: "É típico da posterior evolução de Jürgen Habermas carregar as tintas na 'boa intenção normativa' em detrimento da exploração de seu possível encaminhamento material. " (p. 26) Seja como for, no pior dos casos deveria aceitar-se que a conjugação de ímpeto universalista e impotência histórica produziu, na exploração interrelacionada dessas linhas de trabalho, um dos programas de pesquisa mais reputados e influentes da segunda metade do século, já cristalizado como referente obrigatório para se pensar globalmente nossas sociedades.

A pulverização da esfera pública racionalizadora do poder obliteraria as possibilidades de universalizar a legitimação como vinculo emancipatório entre a sociedade e o Estado, a não ser que fosse viável a demonstração da vitalidade de novos fundamentos históricos a preservar o imperativo de uma autêntica legitimidade como sustento da autoridade política. É na caraterização sistêmica do capitalismo tardio e da especificidade de suas crises que Habermas viria a encontrar os fundamentos para resgatar a legitimidade e, com ela, a peculiar forma de relação entre a sociedade civil e o Estado distintiva da esfera pública burguesa. Por oposição ao Estado liberal do século dezenove, o Estado no capitalismo tardio não assegura apenas as condições de condução do processo de reprodução social, mas intervém decididamente quanto à promoção e realização de interesses sociais. Isto faz com que se dilua no ar sua aparênciade ente político neutro frente ao livre jogo das leis econômicas, precisando, ". . . portanto, como o estado pré-capitalista, ser legitimado, embora não mais possa depender dos resíduos de tradição que foram minados e esgotados durante o desenvolvimento do capitalismo."46 46 Jürgen Habermas, A crise de legitimação... Op. cit. , p. 51. Sem sustento metafísico ou tradicional e suspeito de parcialidade no agir, o Estado enfrenta, como limite último à sua auto-regeneração sistêmica infindável, o obstáculo da legitimação perante ao mundo da vida social cuja dinâmica socializadora baseada na comunicação é, por princípio, alheia a todo imperativo sistêmico.47 47 "À proposição de que os valores-metas dos sistemas sociais variam historicamente, precisa ser acrescentada a proposição de que a variação em valores metas é limitada por uma lógica do desenvolvimento das estruturas das visões do mundo, uma lógica que não está à disposição dos imperativos de argumentação do poder. " Ibid., pp. 25, também cf. pp. 59-61 (Grifo do autor). O Estado fica constrangido à procura de uma legitimidade somente disponível através do apelo a razões passíveis de justificação e, portanto, de reconhecimento dentro da lógica dos agentes do mundo social; embora sempre seja possível supor o caráter falso e manipulador de quaisquer razões apresentadas pelo Estado para se justificar, desde que o único requisito para a produção de legitimidade é que a sociedade acredite em tais argumentos. Eis aqui a verdadeira "inversão habermasiana" no campo das teorias da legitimidade, que lhe permitiria resgatar o "... direito formal burguês, para a universalidade da política moral."48 48 Ibid.., p. 113. O avanço de Habermas consiste em destronar a "crença" como fundamento da legitimidade e em construir um vínculo imanente entre esta e a verdade, deixando para trás o reducionismo sociológico ou psicológico que acostumavam analisá-la como o problema das razões pelas quais a sociedade acredita nos argumentos do poder49 49 Ibid., pp. 121-140. . Em última instância, as razões e motivações pelas quais se acredita estar frente a um agir ou decidir legítimos pressupõem a existência de pretensões de validade que, caso seja necessário, podem ser demonstradas até as últimas conseqüências e à luz das evidências disponíveis- por definição sempre limitadas. Se a legitimidade mantém uma relação imanente com a verdade e, ao mesmo tempo, a sociedade é a única fonte autêntica de sua produção, então Habermas consegue restaurar tanto o papel racionalizador da esfera pública sobre o poder e o potencial emancipatório da própria legitimidade quanto as possibilidades para universalizar sua concepção deliberativa da política e da democracia, pressupostas no seu modelo de esfera pública.50 50 Cf. Jürgen Habermas, "Três modelos normativos de democracia", (1991) Lua Nova 36, 1995, particularmente pp. 45-48; e Jürgen Habermas, "La soberania popular. . . ", Op. cit. , particularmente pp. 50-58.

A "inversão" operada por Habermas para relacionar imanentemente a legitimidade e a verdade confirmava o caráter dual da sua percepção da "arquitetura social", cindida entre o mundo da sociedade e o poder. Além do mais, não é fortuito- mesmo se não deixa de ser surpreendente que esse trabalho de 1973 apontava já o rumo que adotaria seu programa de pesquisa para elaborar um arcabouço teórico capaz de fornecer sustento à referida dualidade e de extrair suas conseqüências: "Um conceito de crise concebido social-cientificamente precisa apreender a conexão entre integração-sistema e integração social... . Falamos de integração social em relação aos sistemas de instituições nos quais os sujeitos da palavra de ação estão socialmente relacionados. Os sistemas sociais são vistos aqui enquanto mundos vitais que estão simbolicamente estruturados. Falamos de sistemas de integração tendo em vista os desempenhos condutores específicos de um sistema auto-regulado."51 51 Jürgen Habermas, A crise de legitimação..., Op. cit. , p. 15. (grifos do autor) Alguns anos depois, em 1981, o mundo autônomo dessa sociedade civil em pleito raciocinante com o poder, depositário da legitimidade e produtor de uma emancipação comunicativa, ganhou definitivamente o nome de "mundo da vida"- produzido simbolicamente através da ação comunicativa.52 52 Jürgen Habermas, The Theory of Communicative Action II -Lifeworld and System: a Critique of Funcionalist Reason, Boston, Beacon Press, 1987, pp. 113-152. Doravante TAC II. A distância entre a esfera pública burguesa e o mundo da vida, por suposto, não é apenas nominal. O bosquejo de uma teoria geral da sociedade53 53 Ibid., pp. 3-42. identifica um longínquo processo evolutivo que trouxe as sociedades primitivas de estágios inferiores, onde a força não argumental do poder e do sacro dominava sobre a produção de sentidos,54 54 Ibid., pp. 43-76. para patamares sucessivos de diluição lingüística das formas tradicionais de subordinação social55 55 Ibid., pp. 77-118. nos quais a interação comunicativa entre indivíduos tornou-se o processo por excelência para a construção e validação de sentidos. O mundo da vida aparece, então, como um ". . . horizonte no interior do qual ações comunicativas estão 'sempre prontas' e moventes. . . "56 56 Ibid., p. 119. , isto é, como um universo feito de interações comunicativas entre agentes não vinculados apenas por determinações heterônomas trazidas por sua cultura e sociedade, mas pelo mútuo reconhecimento implícito tanto na produção autônoma de sentidos mediada de forma comunicativa quanto na também autônoma e lingüisticamente mediada reapropriação particular da cultura e da sociabilidade por eles herdadas. Até aqui o mundo da vida ganha suficiente densidade teórica quanto ao seu estatuto funcional na ordem social como um todo, pois nele se renovam a reprodução cultural, a integração social e a socialização, mas o sentido fundamental deste esforço teórico, aliás reconhecido por Habermas como o sentido que o levou a escrever sua teoria da ação comunicativa57 57 "Quando escrevi TAC a minha preocupação central era com o desenvolvimento de um instrumento teórico para caraterizar o fenômeno da 'reificação' (Lukács). " Jürgen Habermas, "Moralidad, sociedad... ", Op. cit. , p. 106. , fica ainda um passo adiante. A crescente complexidade da evolução das sociedades levou à produção de sistemas reguladores da reprodução social que terminariam por se tornar independentes do mundo da vida, detonando de forma definitiva e irreversível a unidade da ordem social, cindida de agora em diante entre os imperativos sistêmicos- sistema administrativo e sistema econômico - e a vontade social - mundo da vida. O sentido desta formulação se descobre integramente quando se constata a persistência de uma trajetória de colonização do mundo da vida pelos sistemas e quando se percebe que esta colonização é perversa pela lógica interna de operação dos imperativos sistêmicos, pois enquanto o mundo da vida utiliza a língua para a produção de sentidos e a coordenação de ações, os sistemas econômico e administrativo fazem uso, para os mesmos propósitos, de media que perderam toda estrutura lingüística, quer dizer, do dinheiro, no caso do sistema econômico, e do poder, no caso do sistema administrativo58 58 TACII, pp. 153-197. . Aos potenciais da autonomia de uma vida privada solapados pelo sistema econômico e seu medium dinheiro correspondem a força da esfera pública amenizada pelo sistema administrativo. Neste complexo percurso teórico de mediações que culmina na crítica à colonização do mundo da vida e, como era de se esperar- com os trabalhos de 1962 -, numa aposta descolonizadora, Habermas consegue, ao mesmo tempo, preservar no nível de uma teoria geral da sociedade tensões caraterísticas da esfera pública burguesa na sua relação com o Estado- "arquitetura dual da sociedade"-, e radicalizar conseqüências universalizáveis dentro de um modelo- de muito maior elaboração teórica -de sociedade em dois níveis.

A idéia da sociedade em dois níveis é muito mais que uma proposta conceitual, como às vezes se acredita sem razão. Na verdade, trata-se de uma formulação sintética da teoria geral da sociedade de Habermas, que pressupõe, como toda teoria geral da sociedade, princípios interpretativos universais da evolução social e um diagnóstico do presente e das possibilidades de transformação para o futuro. O panorama desenhado pela teoria geral da sociedade de Habermas é, no interior do seu programa de pesquisa, um grande avanço feito de elementos novos e velhos: a realidade sistêmica, produto da complexidade da evolução social, seria, além de funcionalmente necessária, um fato incontestável e irreversível não apenas das sociedades presentes, mas também de qualquer antecipação razoável das sociedades vindouras; entretanto, o desempenho dos sistemas seria nocivo ao mundo da vida porque cego às suas necessidades e porque, armado com um automatismo pertinaz, sempre procura a satisfação dos imperativos sistêmicos. Isto sem esquecer, é claro, que os sistemas desenvolvem funções de coordenação e regulação social através de media "deslingüistificados" e, portanto, alheios à lógica de um controle comunicativo. Do lado do mundo da vida restariam a infindável produção de sentidos não administrados, potencialidades racionalizadoras dos sistemas, o sustento da autêntica legitimidade e, é óbvio, a vida social mesma na sua riqueza simbólica e associativa e na sua auto-criação autônoma; entretanto, a tendência à reificação sistêmica representaria um perigo destrutor da autonomia do mundo da vida. A teoria da sociedade em dois níveis, ao concentrar toda interação social autêntica e valiosa no mundo da vida, precisa, todavia, de um complemento capaz de estruturar, precisamente, o conceito de ação próprio do mundo da vida. Com efeito, a teoria da ação comunicativa contém primeiro uma teoria geral da ação social como ação comunicativa59 59 Jürgen Habermas, The Theory of Communicative action I-Reason and the Rationalization of Society, Boston, Beacon Press, 1984, pp. 273-337. Doravante TAC I. e depois uma teoria geral da sociedade como sociedade desacoplada em dois níveis. A altíssima valoração do mundo da vida, caraterística de Habermas desde a origem de seu modelo de esfera pública, coloca a ação comunicativa como um conceito de ação ao mesmo tempo universal-lingüístico de potenciais racionalizadores, ancorado na prática dos agentes do mundo da vida. Qualquer ato de fala competente contém uma contradição preformativa segundo a qual não é possível evitar pretensões de validade na própria fala, o que faz com que exista na estrutura da ação comunicativa um princípio de justificação racional e um princípio crítico de submetimento das razões à livre discussão. Em termos da sua estrutura lógica a ação comunicativa é universal, mas não se esgota neste nível de abstração estritamente lingüístico, começando realmente dentro do mundo da vida aí onde faz possível a coordenação autônoma de propósitos e a ação reflexiva dos agentes: "Para o modelo da ação comunicativa, a linguagem é relevante apenas desde o ponto de vista pragmático dos sujeitos de fala que, empregando frases orientadas para chegar a acordos, estabelecem relações com o mundo, não só diretamente, como nas ações teleológicas, dramatúrgicas ou normativamente reguladas, mas de uma forma reflexiva. "60 60 Ibid., p. 98. Assim, a teoria da ação social como ação comunicativa não se preocupa estritamente com a ação e sim com as condições de possibilidade de toda ação, isto é, com a mediação lógica da estrutura lingüística para chegar ao entendimento61 61 "Para evitar os mal-entendidos, eu gostaria de repetir que o modelo da ação comunicativa não iguala ação com comunicação...a ação comunicativa designa um tipo de interação que é coordenada através de atos de fala e não coincide com eles." Ibid., p. 101. (grifos do autor) . Sem dúvida, nesta, como de outra forma na linha anterior do programa de pesquisa, Habermas consegue formular, no patamar de uma teoria geral, as conseqüências universalizáveis do caráter dialógicodo seu modelo de esfera pública.

Afirmar que o mundo da vida e a ação comunicativa coincidem é mais ou menos equivalente a dizer que a razão reside do lado da sociedade, cuja natureza autônomo-comunicativa, que enfrenta a realidade sistêmica, não apenas encarna processos de resistência como também (e isto é o fundamental) representa a possibilidade de racionalizar socialmente os sistemas. Parece desnecessário deter-se sobre a evidência de que no programa de pesquisa habermasiano, particularmente no seu nexo sociedade-razão, transluz um compromisso com o resgate crítico da razão como meio de transformação do mundo. Mas, como resgatar para seu programa de pesquisa um dos conceitos mais suspeitos de levar dentro de si os destrutivos "delírios" da modernidade? A resposta é simples, embora seu amadurecimento e desenvolvimento seja, como nas outras linhas de trabalho, produto de décadas de maturação. Trata-se de avançar através de uma "re-edificação comunicativa" e crítica da razão62 62 Jürgen Habermas, The philosophical... Op. cit., p. 341. Habermas fala exatamente em reabilitar o conceito de razão. . A modernidade, as pretensões universalizantes da sua razão ilustrada, tantas vezes tida como assassina da diferença, apresenta o seu próprio princípio de superação que é, paradoxalmente, o que a une numa mesma tradição com seus críticos mais ferrenhos. O único princípio de identidade irrefragável da razão moderna é precisamente a crítica, o que acarreta a possibilidade não apenas de aceitar alterações numa posição sempre que existam bons motivos trazidos a debate por uma outra posição, mas de associar um princípio de tolerancia-operando epistemologicamente- com a razão. A reedificação crítica de Habermas constrói um conceito de razão adequado às exigências da ação comunicativa e do mundo da vida ou, mais exatamente, desenvolve o correspondente conceito de razão comunicativa.63 63 Ibid., pp. 294-326. A contrapelo das tradições filosóficas que abordam a razão como subjetivamente centrada, a razão comunicativa fundamenta o caráter inter-subjetivo da própria razão, desde o nível individual psicológico, onde o pensamento interno ocorre através de uma espécie de diálogo, até o nível da macroagregação social, onde um processo de formação de consensos sem constrangimentos ocorre dentro de uma comunidade de comunicação mantida dentro de restrições cooperativas. Pela via da razão comunicativa Habermas consegue aquilo que já havia tentado através da psicanálise64 64 É surpreendente lembrar que, em 1973, Habermas introduziu uma analogia terapêutica na relação conhecimento-interesse, baseada precisamente na teoria psicanalítica freudiana. Na terapia da psicanálise os indivíduos conversam sobre o que eles são e não sobre coisas alheias, produzindo assim um saber emancipador que, enquanto tal, tem sentido apenas para aqueles que participaram na sua produção. Nessa altura do programa de pesquisa, Habermas propunha a psicanálise como um modelo de ciência, na verdade o único existente, que reivindicava metodologicamente o exercício auto-reflexivo sem hierarquização de conteúdos desde a teoria ou desde qualquer outra exterioridade alheia aos sujeitos da fala. Cf. Jürgen Habermas, Conhecimento e interesse, (1973) Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pp. 233-262. , isto é, conciliar a razão com o homem comum, situando no centro os agentes do mundo da vida e fazendo-os coincidir com a ação comunicativa e com a razão comunicativa. Todavia, é possível manter a relação entre verdade e razão, indispensável para a autêntica legitimidade e, portanto, para os potenciais racionalizadores do mundo da vida, devido ao fato de que a razão comunicativa torna possível abandonar o conceito de verdade como correspondência à realidade e substituí-lo por outro de verdade como justificação das pretensões de validade contidas numa idéia.65 65 ". . . vou defender a tese de que a verdade pertence categorialmente ao mundo dos 'pensamentos' . . . e não ao das percepções". Jürgen Habermas, Teoría de la acción comunicativa-Complementos y estudios previos, (1984) México, Rei, 1993, p. 133, para esta linha de trabalho podem ser consultadas na íntegra, com bom proveito, suas notas sobre as teorias da verdade, pp. 161-192. Sob esta ótica a verdade não é objetiva, pois não pertence à realidade e sim aos juízos que sobre esta é possível fazer. É claro, então, que estes juízos estão sujeitos à estrutura lógica da ação comunicativa. Seguindo em sua forma peculiar a trilha de Kant, Habermas consegue reabilitar o caráter transcendental da razão a partir da expulsão, precisamente, do que ele considerou suspeito de metafísica: os grandes sujeitos da razão que não são os agentes comuns do mundo da vida, as abstrações grandiosas que não passam pela experiência simples mas viva e vinculatória destes agentes e todos aqueles deveres magnificentes que não foram produzidos por uma ação e uma razão comunicativas. Poderia parecer difícil encontrar algo de transcendental numa razão assim esbelta. Contudo, a razão comunicativa permite a Habermas afirmar que as questões morais admitem verdade, isto é, somente podem ser processadas de forma satisfatória através da ação comunicativa66 66 "O discurso prático-moral representa a extensão de cada comunidade de comunicação desde a perspectiva interna. Neste foro, apenas podem chegar a acordo justificável aquelas propostas normativas que expressem o interesse comum de todos os afetados. Neste sentido, as normas discursivamente justificadas concedem validade simultaneamente tanto ao que é interesse de todos por igual, quanto a uma vontade geral que assumiu dentro de si, sem constrangimentos, a vontade de todos. Entendida desta forma, a vontade determinada por razões morais não permanece externa à razão argumentativa; a vontade autônoma é completamente interna à razão. "Jürgen Habermas, Justification and Aplication-Remarks on Discourse Ethics. Cambridge, Massachusetts/ London, The MIT Press, pp. 12-13. (grifo do autor) . E a sua teoria, como era de se esperar, ganha através da reedificação comunicativa da razão uma renovada força universalizadora.

Antes de iniciar a última parte deste ensaio e na tentativa de não sobrecarregar mais a terceira parte, é preciso reparar em dois problemas dos quais não será possível nos ocupar aqui. Em primeiro lugar, a terceira e quarta linhas de trabalho do programa de pesquisa de Habermas adentraram na reflexão do que o próprio autor tem chamado de "ética discursiva"67 67 O livro com o qual se costumamarcar este desdobramento do programa de pesquisa habermasiano foi publicado em 1983, dois anos após a aparição da Teoria da ação comunicativa. O referido livro é Consciência moral e agir comunicativo. . Contudo, estas reflexões continuam o percurso do pensamento habermasiano no seu esforço de universalização. Só que, neste caso, trata-se de elevar os saldos da razão e ação comunicativas ao terreno da Filosofia. Destarte, na medida em que os desdobramentos para uma ética discursiva já foram bosquejados no tratamento da razão comunicativa, recentemente concluído, a ausência de tratamento maior desta matéria não é uma falta grave, pois ela permanece contida dentro da lógica das duas últimas linhas de trabalho acima expostas. Em segundo lugar, e diferentemente da ética discursiva, não seria possível afirmar que a retomada positiva do Estado e da lei, caraterística dos escritos da última década, é simplesmente uma continuidade exceptiva de contradições dentro do programa de pesquisa habermasiano. Já foi observado na segunda parte que o assunto do Estado é peculiarmente polêmico na evolução do autor. Cabe destacar, simplesmente, que o incansável esforço universalizante de Habermas o colocou perante a necessidade de recuar sobre sua própria crítica ao Estado, pois com Hegel sabemos que a universalidade sem efetividade não é mais que um fantasma. Em outras palavras, o problema é como garantir a efetividade da ação comunicativa se o mundo da vida não conta com o recurso de uma coerção com a qualidade de obrigar universalmente.68 68 "O problema das condições sob as quais as prescrições morais resultam razoáveis é um motivo para a transição da moral para o direito. " Jürgen Habermas, Justification and. .. Op. cit., p. 16. A resposta é obvia: até hoje o Estado é a única instância de universalização efetiva nas sociedades modernas. Contudo, bem vistas as coisas, é claro que o que sobressai neste último estágio do programa de pesquisa é a continuidade de um esforço que se corrige para estender ainda mais as conseqüências do seu próprio pensamento.69 69 Cf. os comentários de Gabriel Cohnao adendo editorial sobre a obra de 1992 ( Between Facts and Norms) introduzido em Jürgen Habermas, "Três modelos... ", Op. cit. , pp. 48-51.

UM TESTE DE UNIVERSALIDADE

Até agora a leitura do programa de pesquisa habermasiano tem sido reconstrutiva e, provavelmente por esta forma de proceder, não permite ainda que se faça uma idéia mais ou menos fiel do verdadeiro "macro-modelo" teórico e filosófico que foi configurado no percurso. Entrementes, o entendimento do próprio Habermas e da sua relação com outros autores, particularmente com Rawls, precisa contar com uma representação deste "macro-modelo". Nele, o universo da sociedade como um todo está cindido em dois níveis: no nível superior encontra-se a realidade sistêmica e no seu interior tudo está contido em dois sistemas, um administrativo e o outro econômico, cuja auto-reprodução opera através de media- o poder e o dinheiro - que, por definição, não precisam da língua e, portanto, são alheios à razão comunicativa. No nível inferior, caraterizado por uma produção de sentidos comunicativamente mediada, tem lugar a realidade "societal" ou mundo da vida e, no seu interior, tanto as questões particulares (da praxe) quanto as universais (da moralidade) são processadas lingüisticamente, ora como ação comunicativa ora como ética discursiva. A distância que separa a lógica de operação destes dois níveis é cada vez maior; porém, sua ruptura definitiva é impossível devido ao fato de que esta forma de "relação divorciada" mantém, entre o sistema administrativo e o mundo da vida, um vínculo constitutivo cujas exigências conhecemos sob o nome de legitimidade. A legitimidade faz com que seja possível um avanço do mundo de vida sobre a realidade sistêmica, isto é, uma racionalização que tem na norma jurídica seu melhor veículo e que se introduz via sistema administrativo para desenvolver controles não apenas sobre este mas também sobre o sistema econômico. Contudo, a relação entre estes dois níveis é de sentido duplo e os avanços ou invasões de um deles sobre outro costumeiramente provêm do lado dos sistemas, embora neste caso a invasão ou colonização acarrete patologias para o mundo da vida. Na sustentação da estrutura deste macro-modelo intervém uma teoria geral da sociedade, uma teoria geral da ação social, uma teoria da legitimidade e várias contribuições teoréticas e filosóficas de tipo discursivo sobre a moral- ética discursiva -, sobre a razão - razão comunicativa -, sobre a democracia e a política -democracia deliberativa -e sobre o direito. Em geral, poder-se-ia dizer que, como pano de fundo no desenho deste macro-modelo, Habermas constrói uma tensão entre a conservação da razão, moderna e iluminista -o projeto filosófico da modernidade -, e o progressivo esvaziamento da própria razão numa ontologia de caráter comunicativo.

Porém, não parece evidente nem automaticamente necessária a relação entre essa grande configuração, que esboça os resultados do programa de pesquisa habermasiano no seu estágio atual, e o sistema filosófico de Rawls, que fornece sustento a sua teoria da justiça como eqüidade. Em outras palavras, por que decorreria do encontro entre eles um teste de universalidade, pelo menos para o programa de pesquisa habermasiano, segundo o próprio Habermas, se aparentemente não existe um vínculo concorrencial imediato entre os dois esforços teórico-filosóficos?70 70 Falamos de vínculo concorrencial para nos referir ao fato de que, normalmente, a importância do debate entre concepções teóricas decorre delas oferecerem, como um todo ou como parte do seus desenvolvimentos, visões alternativas- concorrentes - de compreensão e abordagem de um leque determinado de problemas. Sem este vínculo concorrencial seria verdadeiramente difícil entender o interesse de Habermas no sistema rawlsiano. Embora o confronto de idéias entre ambos os pensadores tenha sido propiciado por um afortunado interesse editorial, como já foi salientado no começo deste ensaio, a pergunta pela preocupação de Habermas com debater o sistema rawlsiano é pertinente, não apenas porque em principio não e claro o vínculo entre os dois corpos teóricos, mais porque enquanto Rawls, no exercício de sua sólida tradição filosófica, dispensou qualquer referência ao programa de pesquisa habermasiano para construir seu sistema filosófico - e ampará-lo perante as críticas -, Habermas, pelo contrário, vinha se (auto)posicionando com respeito à obra do primeiro anos antes de que ocorrera o debate.71 71 Cf. Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre..." (1995) Op. cit., p. 86; fundamentalmente, Jürgen Habermas, Between Facts and. . . (1992) Op. cit. , pp. 56-66; também, Jürgen Habermas, Moralidad, sociedad... (1990) Op. cit. , pp. 86,97-98 e 112-113. O debate é de 1995. Para abordar esta questão é pertinente, primeiro, salientar do lado rawlsiano algumas das que parecem as diferenças de maior peso, que produzem opacidade na hora de procurar um vínculo concorrencial entre ambos os corpos teórico-filosóficos. A obra de Rawls é, no sentido mais estrito da palavra, produto de um filósofo político e, em conseqüência, assume rigorosamente a configuração de um todo como sistema. Aliás, dito seja de passagem, isto faz com que o ônus da consistência seja muito maior em Rawls do que em Habermas. Destarte, enquanto o programa de pesquisa habermasiano define-se por uma constelação de problemas, ao sistema rawlsiano subjaz um problema fundamental, ao mesmo tempo mais limitado e filosoficamente mais construído. Para Rawls, a tarefa da filosofia política é se debruçar sobre as questões principais que, num período histórico, resultam politicamente polêmicas e se apresentam como carentes de qualquer base compartilhada de acordo político72 72 John Rawls, "Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica", em Lua Nova 25, 1992, pp. 28-29. . É claro que dentro das questões políticas mais controversas Rawls escolheu o problema de descobrir e demonstrar a existência de fundamentos, dentro da tradição política das democracias ocidentais, para uma concepção de justiça universalizável, quer dizer, publicamente aceitável para todos os cidadãos de uma sociedade democrática73 73 Ibid., pp. 32, 38 e 50. . Do problema e do enfoque especificamente filosóficos decorrem duas diferencias de importância com respeito a Habermas. Uma é que o esforço da filosofia política rawlsiana é prático num sentido puramente normativo, enquanto no programa habermasiano há linhas apontando criticamente na direção de uma intervenção transformadora sobre o atual estado de coisas. A outra é que as elaborações filosóficas de Rawls sobre a sociedade e sobre as relações entre seus membros, particularmente sua concepção da sociedade bem ordenada como um sistema equitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais,74 74 "Na justiça como eqüidade, o entendimento da unidade social parte de uma concepção da sociedade comoum sistema de cooperação entre pessoas livre e iguais. " Ibid., p. 56, cf. também pp. 35, 39, 43 e 50. Cf. John Rawls, Teoria de la justicia. (1991) México, FCE, 1995, pp. 410-418. não constituem nem pretendem constituir uma teoria geral da sociedade ou da ação social. Trata-se de desdobramentos da concepção da justiça como eqüidade75 75 "Se percorremos a teoria de Rawls até uma de suas extremidades encontramos o ideal de pessoas morais livres e iguais; se percorremos até outra de suas extremidades encontramos o ideal de sociedade bem ordenada. " Álvaro de Vita, "A tarefa prática da filosofia política em John Rawls", Lua Nova 25, 1992, p. 12. no progressivo avanço para sua estabilização social.76 76 "Com estas observações como prefácio, podemos agora ver como os princípios da justiça se: relacionam com a sociabilidade humana. A idéia principal consiste, simplesmente, em que uma sociedade bem ordenada (correspondente a justiça como imparcialidade [eqüidade]) é, por si mesma, uma forma de união social. Na verdade, é uma união social de uniões sociais. John Rawls, Teoria de. .. Op. cit. , p. 476. O problema da estabilidade da teoria da justiça é abordado em extenso nas pp. 464-521.

As diferencias acima expostas77 77 Existe, é claro, um conjunto maior de diferencias como, por exemplo, os distintos debates e posições teóricas dominantes perante as quais definiram sua própria obra- no caso de Rawls se trata fundamentalmente do utilitarismo. Contudo, estes outros aspectos não são peculiarmente relevantes para nossos propósitos neste ensaio. foram exprimidas com simplicidade e clareza por Rawls como a distancia entre duas doutrinas, uma enquadrada rigorosamente na filosofia política e de forma particular no domínio do político, sem que nada além da categoria do político seja do seu interesse filosófico, e a outra estruturada como uma doutrina compreensiva que articula e ". . . cobre muitas coisas muito além da filosofia política"78 78 John Rawls, "Reply to Habermas", Op. cit. , I. 1 e I. 2. A citação provem do primeiro parágrafo de I. 2. . Contudo e apesar destas diferencias explicarem a dispensabilidade para o sistema rawlsiano de qualquer referência ao programa de pesquisa de Habermas, permanece no ar o problema do vínculo concorrencial que, na perspectiva do filósofo alemão, organizou o debate e, no limite, lhe conferiu o estatuto de um teste de universalidade. Quiçá a relação mais óbvia entre ambos os pensadores, porém não a mais significativa, é sua posição inconteste como os maiores exponentes da atualidade no âmbito das teorias políticas normativa. Mais que sua merecida coagulação como referentes indispensáveis do pensamento políticonormativo, é a peculiar forma do desenho e filiação filosóficas dos seus corpos teóricos que se impõe, ao nosso interesse. O sistema filosófico rawlsiano refunde a doutrina do contrato social propondo o modelo de uma sociedade justa ou bem ordenada, onde prevalece a concepção da justiça como eqüidade construída mediante um dispositivo de representação (a "posição original") que ¡permite a Rawls reformular o imperativo categórico kantiano no sentido da constituição intersubjetiva da sociedade e, é claro, da justiça.79 79 Cf. Jürgen Habermas. "Rawls' Political. . . ", Op. cit. , I. 3; e John Rawls, "Reply to. . . ", Op. cit., I. 3. Ao contrário do que poderia parecer, para um filósofo político não é suficiente inferir razoavelmente princípios gerais de justiça e depois justificá-los por seu valor intrínseco ou pelo apoio que encontram nas tradições de uma determinada cultura política. É preciso ir além disso e descobrir uma forma de universalização filosoficamente sólida e praticamente efetiva. Universalização significaria, neste sentido, tanto a demonstração lógica da aceitação universal dos princípios postuladosquanto a justificação prática da sua efetiva realização. E parece óbvio que as tradições ou qualquer outro procedimento não estritamente filosófico seriam argumentos fracos ou insuficientes para fornecer sustento a tais princípios.80 80 Há quem conhece bem a obra de Rawls e opina em sentido exatamente inverso: ". . . ou, em outros termos, qual é o peso que a situação contratual tem na justificação da teoria de Rawls? Se o que argumentei acima faz sentido, esse peso é diminuto. A justificação dos princípios de 'justiça como eqüidade' poderia, a rigor, dispensar o recurso à posição original e ao 'véu de ignorância'. " Álvaro de Vita, Justiça Liberal - Argumentos liberais contra o neoliberalismo, Rio de Jaeiro, Paz e Terra, 1993, p. 55, em geral cf. pp. 39-71 Diferentemente do imperativo categórico kantiano, sempre suspeito de "naive normativism"81 81 Jürgen Habermas, Between facts. . . , Op. cit. , p. 9, cf. , também pp. 1-9; e o ensaio sobre os usos pragmáticos, éticos e morais da razão prática, em Jürgen Habermas, Justification and... Op. cit. e duramente criticado pela pressuposição de indivíduos monológicos abstratos sem nenhuma efetividade82 82 Cf. Ana Maria Rivadeo Fernández, Epistemología y política- Apriorismo y noumenicidad en Kant, México, UNAM/ ENEP Acatlán, 1988. , a posição original de Rawls, a través do expediente do véu de ignorância que apaga a especificidade das partes, faz surgir intersubjetivamente tanto os princípios de justiça quanto a estruturação da sociedade bem ordenada. Daí o interesse de Habermas no sistema rawlsiano, o vínculo concorrencial que traz à tona o império habermasiano- também herdeiro filosófico de Kant - sobre a problemática da constituição comunicativamente intersubjetiva da ação social e da própria sociedade. O maravilhoso mérito de Rawls, dito seja antes de continuar com nossa analise, é o de ter desenvolvido um sistema filosófico que consegue resolver, ao mesmo tempo, os quesitos de uma universalização rigorosa (i) sobre a postulação deontológica de valores (ii) no contexto de sociedades pluralistas e democráticas (iii); isto é, na trilha de Kant, restaurar os princípios axiológicos sobre a justiça no controverso mundo da política, investindo-os de um caráter vinculatório sem apelar a procedimentos de índole metafísica.

No longo percurso do programa de pesquisa habermasiano, depois de décadas de desenvolvimentos rumo a novos patamares de progressiva universalização, a obra de Rawls representa para Habermas o grande sistema filosófico alternativo que, compartilhando a tradição kantiana, conseguiu estruturar intersubjetivamente urna proposta universal quanto ao mundo moral da razão prática, sem nenhum apelo de importância ao expediente estritamente procedimental da razão e ação comunicativas.83 83 Essa afirmação poderia parecer contraditória com a exigência rawlsiana da "condição de publicidade" dos termos da cooperação e obrigação sociais, porém, esta exigência responde muito mais a peculiaridades da tradição liberal, enquanto a importância do indivíduo e da formação pessoal de critério, do que as conseqüências procedimentais da teoria da ação comunicativa. Cf. Álvaro de Vita, Justiça liberal... Op. cit., pp. 26-31; e Álvaro de Vita, "A Tarefa Prática... ", Op. cit. , p. 11. Daí, a rigor, o vínculo concorrencial que levou a Habermas à tentativa de demonstrar, no debate e através da sua exegese do sistema de Rawls, que a teoria da justiça como eqüidade apresenta problemas mal resolvidos ou escamoteados, para os quais existem respostas satisfatórias dentro do seu programa de pesquisa. Habermas tece em torno de sete eixos de argumentação, que podem ser concentrados, em termos gerais, em formulações críticas sobre a posição original, sobre o processo de justificação e aceitação da justiça como eqüidade e sobre a construção do Estado constitucional impondo uma tendência a limitar a autonomia política das parte na posição original. Somente é de nosso interesse salientar o espírito destas críticas enquanto enquadradas na lógica do que aqui tem sido chamado de teste de universalidade. Abordaremos brevemente dois delas. Em primeiro lugar, sempre seguindo a interpretação que Habermas faz de Rawls,84 84 É preciso explicitar isto, pois algumas das críticas de Habermas decorrem de mal-entendidos da obra de Rawls; por exemplo, o entendimento de que existem alguns representantes dos cidadãos, que não eles, julgando e decidindo na posição original. Na verdade, Rawls se refere a partes racionais "fideicomissárias dos cidadãos, uma para cada cidadão". John Rawls, "Reply to... "Op. cit., I. 3, segundo parágrafo. o desenho da posição original apresenta o problema das partes elegerem princípios de institucionalização da vida social sob o risco de não levarem a conta o impacto de sua escolha para os cidadãos que representam; em conseqüência e fundamentalmente para garantir o resultado da escolha na posição original, se torna necessário as partes ficarem envoltas num véu de ignorância, cujo sentido é a privação sistemática de informação. A crítica de Habermas a posição original e seu receio frente a esta operação oferecem uma resposta contundente: ". . . penso que Rawls poderia evitar as dificuldades associadas com o projeto (design) de uma posição original se ele operacionalizasse o ponto de vista moral de um modo diferente, a saber, se mantivesse a concepção procedimental da razão prática livre de conotações substantivas, desenvolvendo-a de uma maneira estritamente procedimental."85 85 Jürgen Habermas, "Rawls' Political... ", Op. cit.. I. 1 e 1. 3. Em outras palavras, o que Habermas quer dizer, implicitamente, é que Rawls poderia lançar mão de um processo mais acurado de universalização se assumisse os desdobramentos procedimentais de uma ética do discurso.86 86 Ibid. No que diz respeito ao processo de justificação da teoria da justiça como eqüidade, a crítica de Habermas, como era de se esperar, se dirige novamente aos limites de sua universalização, só que desta vez se trata do problema da aceitação da referida teoria. A consistência filosófica da justiça como eqüidade descansa num arcabouço conceptual devidamente justificado: a posição original primeiro, e depois os princípios de justiça, a pessoa moral, a sociedade como sistema equitativo de cooperação, o véu de ignorância. Contudo, Rawls pareceria interessado em derivar filosoficamente não apenas a justificação mas a aceitação da sua teoria, introduzindo a idéia de um consenso sobreposto (overlapping consensus), cuja função seria a de simular com cidadãos fictícios uma discussão no fórum público- longe dos cidadãos de carne e osso.87 87 Ibid., II. 1. Insistimos em que se trata da interpretação de Habermas. Novamente, nesta como em outras críticas, Habermas sugere que Rawls enfrenta problemas, aos quais sói dar respostas pouco satisfatórias e deselegantes, devido à sua resistência a assumir uma concepção procedimentalista estrita como a contida no programa de pesquisa habermasiano.88 88 V. gr. ". . . ao moldar uma teoria universalista da justiça para questões de estabilidade política por meio de um consenso sobreposto, ele [Rawls] compromete o status epistêmico dela. Ambas as estratégias são adotadas ao custo de um programa procedimentalista estrito. Em contraste com essa abordagem, Rawls poderia satisfazer de forma mais elegante os ônus de prova em que ele incorre com seu forte e presumivelmente neutro conceito de pessoa moral se desenvolvesse seus conceitos e pressupostos substantivos a partir do procedimento do uso público da razão. " Ibid. III.

O teste de universalidade para o programa de pesquisa habermasiano ou, o que é equivalente, a demonstração de "qual destas versões da ética kantiana é a melhor" devido às suas maiores possibilidades de efetiva universalização, nem começou a ser resolvido, a despeito de Habermas ter dirigido suas críticas especialmente aos limites do procedimento rawlsiano de construção e justificação da justiça como eqüidade. Sem dúvida, o programa de pesquisa habermasiano fez evidente de novo seu ímpeto universalizador. Entretanto, o debate deixa flutuando no ar outros efeitos, e um deles peculiarmente curioso para um olhar sociológico: o estilo de debater de ambos os autores reflete nitidamente a pertença deles a horizontes ideológico-políticos diferentes. Rawls é uma encarnação idiossincrásica do bom liberalismo, respeitoso da posição do outro e interessado em precisar e trocar idéias mais que em mudar as convicções do interlocutor, enquanto Habermas representa bem a tradição da esquerda democrática, pleiteando e ansioso por convencer e vencer. Por suposto, nas três décadas e meia de avanços e desenvolvimentos do seu programa de pesquisa, Habermas tem sido, ao mesmo tempo, tanto um dos referentes mais destacados e afortunados do pensamento de esquerda quanto uma simbolização da queda histórica do patamar das exigências de mudanças da esquerda.

  • 2 Jürgen Habermas, "Rawls' Political Liberalism", Op. cit. I. 3 e III
  • 3 "Method of avoidance", traduzido por Octacílio Nunes (na revista Educaçăo e Sociedade no 57, 1996, da UNICAMP) como "método de evitaçăo".
  • Entretanto, esta escolha parece-me estilisticamente infeliz se comparada com uma alternativa como "método de esquiva", já em uso na traduçăo do texto de Rawls "Justiça como eqüidade: uma concepçăo política, năo metafísica" realizada por Régis de Castro Andrade para Lua Nova (número 25, 1992).
  • 7 Jürgen Habermas, "Moralidad, sociedad y ética". Entrevista concedida a Torben Hviid Nielsen (1990), em María Herrera (coord.), Jürgen Habermas, moralidad, ética y política: propuestas y críticas, México, Alianza Editorial, 1993, p. 97.
  • 8 A primeira obra publicada de Habermas, Estudantes e política, de 1961,
  • 9 Jürgen Habermas, Between Facts and Norms- Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. (1992) Cambridge, Massachussets/London, The MIT Press, 1996.
  • 10 A obra apareceu na versão brasileira sob o nome Mudança estrutural da esfera pública : Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.
  • 12 Jürgen Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, Op. cit. , pp. 27-41.
  • 22 A importância simbólico-política da Revoluçăo Francesa, na possibilidade de manter o horizonte aberto para a revigorizaçăo da esfera pública, seria trabalhada com muito maior clareza vinte e sete anos depois, num texto de 1989. Cf. Jürgen Habermas, "La soberanía popular como procedimiento. Un concepto normativo de lo público", em Mana Herrera (coord.), Op. cit., pp. 27-58.
  • 25 Cf. as lições XI e XII da sua conhecida obra, publicada em 1985, The Philosophical Discourse of Modernity-Twelve Lectures, Cambridge, Massachusetts/London, The MIT Press, 1995, pp. 294-326 e 336-367.
  • (Existe traduçăo ao portuguęs: Discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Dom Quixote, 1990).
  • 26 Cf., ex., Jürgen Habermas, "Moralidad, Sociedad. . ., Op. cit. e Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre questőes da teoria política", entrevista concedida a Mikael Carlehedeme e René Gabriels, (1995) em Novos Estudos 47, março, 1997.
  • 27 Estas transformaçőes tęm sido objeto de múltiplas análises no campo da cięncia política pelos impactos delas decorrentes para as instituiçőes democráticas e mesmo para a democracia. Cf., por ex., Robert A. Dahl, Democracy and ist critics, New Haven/ London, Yale University Press, pp. 213-224.
  • Também a Sociologia tem abordado esta questăo desde a ótica da ruptura das visőes unitárias do mundo, cf. a clássicaobra de Karl Manheim, Ideología y utopía, México, FCE, 1987. pp. 5-12
  • 33 Cf. Witold Kula, Las medidas y los hombres, México, Siglo XXI, 1980.
  • 44 Cf. Jürgen Habermas, A crise de legitimaçăo no capitalismo tardio (1973). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, pp. 20-29 e 111-118.
  • 45 Esta idéia também tem sido assinalada por John Keane em La vida pública y el capitalismo tardio (México, Alianza, 1992, pp. 214 e 228-234) e por Antoni Domčnech,
  • 50 Cf. Jürgen Habermas, "Tręs modelos normativos de democracia", (1991) Lua Nova 36, 1995, particularmente pp. 45-48;
  • 52 Jürgen Habermas, The Theory of Communicative Action II -Lifeworld and System: a Critique of Funcionalist Reason, Boston, Beacon Press, 1987, pp. 113-152.
  • 59 Jürgen Habermas, The Theory of Communicative action I-Reason and the Rationalization of Society, Boston, Beacon Press, 1984, pp. 273-337.
  • 64 É surpreendente lembrar que, em 1973, Habermas introduziu uma analogia terapęutica na relaçăo conhecimento-interesse, baseada precisamente na teoria psicanalítica freudiana. Na terapia da psicanálise os indivíduos conversam sobre o que eles săo e năo sobre coisas alheias, produzindo assim um saber emancipador que, enquanto tal, tem sentido apenas para aqueles que participaram na sua produçăo. Nessa altura do programa de pesquisa, Habermas propunha a psicanálise como um modelo de cięncia, na verdade o único existente, que reivindicava metodologicamente o exercício auto-reflexivo sem hierarquizaçăo de conteúdos desde a teoria ou desde qualquer outra exterioridade alheia aos sujeitos da fala. Cf. Jürgen Habermas, Conhecimento e interesse, (1973) Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pp. 233-262.
  • 65 ". . . vou defender a tese de que a verdade pertence categorialmente ao mundo dos 'pensamentos' . . . e năo ao das percepçőes". Jürgen Habermas, Teoría de la acción comunicativa-Complementos y estudios previos, (1984) México, Rei, 1993, p. 133,
  • 66 "O discurso prático-moral representa a extensăo de cada comunidade de comunicaçăo desde a perspectiva interna. Neste foro, apenas podem chegar a acordo justificável aquelas propostas normativas que expressem o interesse comum de todos os afetados. Neste sentido, as normas discursivamente justificadas concedem validade simultaneamente tanto ao que é interesse de todos por igual, quanto a uma vontade geral que assumiu dentro de si, sem constrangimentos, a vontade de todos. Entendida desta forma, a vontade determinada por razőes morais năo permanece externa ŕ razăo argumentativa; a vontade autônoma é completamente interna ŕ razăo. "Jürgen Habermas, Justification and Aplication-Remarks on Discourse Ethics. Cambridge, Massachusetts/ London, The MIT Press, pp. 12-13.
  • 72 John Rawls, "Justiça como eqüidade: uma concepçăo política, năo metafísica", em Lua Nova 25, 1992, pp. 28-29.
  • 74 "Na justiça como eqüidade, o entendimento da unidade social parte de uma concepçăo da sociedade comoum sistema de cooperaçăo entre pessoas livre e iguais. " Ibid., p. 56, cf. também pp. 35, 39, 43 e 50. Cf. John Rawls, Teoria de la justicia. (1991) México, FCE, 1995, pp. 410-418.
  • 75 "Se percorremos a teoria de Rawls até uma de suas extremidades encontramos o ideal de pessoas morais livres e iguais; se percorremos até outra de suas extremidades encontramos o ideal de sociedade bem ordenada. " Álvaro de Vita, "A tarefa prática da filosofia política em John Rawls", Lua Nova 25, 1992, p. 12.
  • 80 Há quem conhece bem a obra de Rawls e opina em sentido exatamente inverso: ". . . ou, em outros termos, qual é o peso que a situaçăo contratual tem na justificaçăo da teoria de Rawls? Se o que argumentei acima faz sentido, esse peso é diminuto. A justificaçăo dos princípios de 'justiça como eqüidade' poderia, a rigor, dispensar o recurso ŕ posiçăo original e ao 'véu de ignorância'. " Álvaro de Vita, Justiça Liberal - Argumentos liberais contra o neoliberalismo, Rio de Jaeiro, Paz e Terra, 1993, p. 55,
  • 82 Cf. Ana Maria Rivadeo Fernández, Epistemología y política- Apriorismo y noumenicidad en Kant, México, UNAM/ ENEP Acatlán, 1988.
  • *
    Agradeço profundamente ao amigo Joaci Pereira Furtado a diligente correção de estilo, que fez com que o escrito em português ficasse efetivamente em português, e a Karin pela paciente resignação ante o seqüestro das noites e fins de semana.
  • 1
    O debate compõe-se de um texto de Habermas-"Rawls' Political Liberalism"-, no qual se faz uma exegese do pensamento de Rawls, e da resposta deste último -"Reply to Habermas"-, num texto consideravelmente mais extenso, que contém tanto uma revisão do sistema rawlsiano perante aquela exegese, quanto algumas críticas a Habermas. Nas notas as referências ao debate serão feitas conforme os capítulos (em algarismos romanos) e seções (em algarismos arábicos) que organizam os textos de cada autor.
  • 2
    Jürgen Habermas, "Rawls' Political Liberalism",
    Op. cit. I. 3 e III
  • 3
    "Method of avoidance", traduzido por Octacílio Nunes (na revista
    Educação e Sociedade no 57, 1996, da UNICAMP) como "método de evitação". Entretanto, esta escolha parece-me estilisticamente infeliz se comparada com uma alternativa como "método de esquiva", já em uso na tradução do texto de Rawls "Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica" realizada por Régis de Castro Andrade para
    Lua Nova (número 25, 1992).
  • 4
    Jürgen Habermas,
    Op. cit., II. 2 e III
  • 5
    Concluo minhas observações com uma tese sobre o auto-entendimento da filosofia política: em condições de pensamento pós-metafísico, este deveria ser modesto, mas não do modo errado."
    Ibid. Final da introdução. É obvio que nesta lógica a posição de Habermas é modesta do modo certo, isto é, atinge um patamar maior de universalidade.
  • 6
    Uma obra como a de Habermas, que não foi desenvolvida como sistema e que atinge maior abrangência a partir da incorporação de desenvolvimentos durante décadas, normalmente tem que corrigir ou esquecer muitos dos seus passos anteriores. Podem ser lembradas, por exemplo, suas correções com respeito ao Estado de bem-estar ou à sua própria idéia da "situação ideal de fala".
  • 7
    Jürgen Habermas, "Moralidad, sociedad y ética". Entrevista concedida a Torben Hviid Nielsen (1990), em María Herrera (coord.),
    Jürgen Habermas, moralidad, ética y política: propuestas y críticas, México, Alianza Editorial, 1993, p. 97.
  • 8
    A primeira obra publicada de Habermas,
    Estudantes e política, de 1961, é um trabalho esquecido pelo próprio autor e sem repercussões de importância, ainda que seja possível encontrar nela algumas preocupações que teriam continuidade ganhando peso e relevância no pensamento do filósofo - é o caso principalmente da necessária separação entre a sociedade e o Estado.
  • 9
    Jürgen Habermas,
    Between Facts and Norms- Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. (1992) Cambridge, Massachussets/London, The MIT Press, 1996.
  • 10
    A obra apareceu na versão brasileira sob o nome
    Mudança estrutural da esfera pública : Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984. As traduções para o castelhano e para o francês também não contam com títulos muito afortunados:
    Historia y crítica de la opinión pública: La transformación estructural de la vida pública e
    L'espace public: Archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise.
  • 11
    A esfera pública refere-se à institucionalidade através da qual se realizou a opinião pública da sociedade civil burguesa, enquanto a "publicidade"
    -Öffentlichkeit-remete ao processo histórico que explica o surgimento da sociedade civil burguesa e com ela o estatuto moderno do que é público. Em muitos casos é possível manter a idéia de esfera pública no lugar do conceito de "publicidade" sem altos custos para a interpretação; porém, não é conveniente respeitar este uso quando se trata de algumas outras formas de "publicidade" como a plebéia-"esfera pública plebéia" -, que nunca contaram com uma esfera de institucionalização própria. Isto acarretaria despropósitos analíticos que é conveniente evitar.
  • 12
    Jürgen Habermas,
    Mudança estrutural da esfera pública, Op. cit. , pp. 27-41. Doravante MEP.
  • 13
    Ibid. p. 33. Seja dito de passagem, o caráter necessariamente público e ao mesmo tempo constitutivamente privado da economia coloca uma chave de leitura complexa para entender a ambigüidade das coisas públicas contemporâneas e joga para a lixeira das argumentações vulgarmente rudimentares a discussão corrente nestes dias sobre a ampliação do mercado e a redução do Estado nos termos de uma equação matemática de soma zero.
  • 14
    "Ainda antes que a natureza pública do poder público tenha sido contestada pelo raciocínio político das pessoas privadas para, afinal, ser-lhe totalmente subtraída, forma-se sob a sua proteção uma esfera pública sem configuração política-o esboço literário de uma esfera pública a funcionar politicamente." "No setor privado também está abrangida a esfera pública propriamente dita, pois ela é uma esfera pública de pessoas privadas." Ibid. pp. 44 e 45-46.
  • 15
    Ibid. p. 93.
  • 16
    Ibid. p. 69.
  • 17
    No prólogo à edição alemã de 1990 de MEP, editado e traduzido na reedição da versão em castelhano de 1994 (México, Gustavo Gili, 1994), Habermas explicita com toda clareza que aquilo que foi discutido por ele como uma esfera pública política-"publicidade política"- , em 1962, hoje é debatido"... sob o título do 'redescobrimento da sociedade civil'. " ( p. 32)
  • 18
    MEP, pp. 173-174.
  • 19
    Ibid., p. 170. ". . . com o que surge urna nova esfera, com concentração do capital e intervencionismo, a partir do processo correlato de uma socialização do Estado e de urna estatização da sociedade. Esta esfera não pode ser entendida completamente nem como sendo puramente privada nem como sendo genuinamente pública. " Ibid., p. 180.
  • 20
    "Naturalmente, através disso não se restabelece a esfera pública representativa [publicidade representativa] ao velho estilo, mas ela empresta, contudo, certos traços de uma esfera pública refeudalizada... ". Ibid., p. 234-235, também Cf. pp. 229 e 263.
  • 21
    "Originariamente, a publicidade garantia a correlação do pensamento público tanto com a fundamentação legislativa da dominação como também com supervisão críticasobre o seu exercício. Entrementes, ela possibilita a peculiar ambivalência de uma dominação sobre a dominação de uma opinião não-pública: serve à manipulação
    do público na mesma medida que a legitimação
    ante ele. O jornalismo ["publicidade"!] crítico(a) é suprimido(a) pelo(a) manipulativo(a)." Ibid., p. 210.
  • 22
    A importância simbólico-política da Revolução Francesa, na possibilidade de manter o horizonte aberto para a revigorização da esfera pública, seria trabalhada com muito maior clareza vinte e sete anos depois, num texto de 1989. Cf. Jürgen Habermas,
    "La soberanía popular como procedimiento. Un concepto normativo de lo público", em Mana Herrera (coord.),
    Op. cit., pp. 27-58.
  • 23
    MEP, p. 108. "A verdade, não a autoridade, é que faz a lei" ; frase em latim que remete à introdução da razão como fonte de legitimidade na esfera pública moderna, contrariamente ao velho domínio público feudal onde a legitimidade da lei provinha da autoridade que a ditava.
    Cf. também pp. 102-103.
  • 24
    Ibid., p. 245.
  • 25
    Cf. as lições XI e XII da sua conhecida obra, publicada em 1985,
    The Philosophical Discourse of Modernity-Twelve Lectures, Cambridge, Massachusetts/London, The MIT Press, 1995, pp. 294-326 e 336-367. (Existe tradução ao português:
    Discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Dom Quixote, 1990).
  • 26
    Cf., ex., Jürgen Habermas, "Moralidad, Sociedad. . .,
    Op. cit. e Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre questões da teoria política", entrevista concedida a Mikael Carlehedeme e René Gabriels, (1995) em
    Novos Estudos 47, março, 1997.
  • 27
    Estas transformações têm sido objeto de múltiplas análises no campo da ciência política pelos impactos delas decorrentes para as instituições democráticas e mesmo para a democracia. Cf., por ex., Robert A. Dahl,
    Democracy and ist critics, New Haven/ London, Yale University Press, pp. 213-224. Também a Sociologia tem abordado esta questão desde a ótica da ruptura das visões unitárias do mundo, cf. a clássicaobra de Karl Manheim,
    Ideología y utopía, México, FCE, 1987. pp. 5-12
  • 28
    "... o mandato da opinião pública é agora expandido, além dos órgãos estatais, para todas as organizações que atuam em relação ao Estado. A seguir-se realizando essa transformação substituindo um público-não mais intato-de pessoas privadas individualmente insertas no tráfico social, surgiria um público de pessoas privadas organizadas. "Por suposto, Habermas reconhece os riscos da refeudalização e introduz de novo a exigência do mandato da opinião pública, agregando após, imediatamente: "Nas atuais circunstâncias, apenas elas [as pessoas privadas organizadas] poderiam participar de um processo de comunicação pública, fazendo uso dos canais da opinião pública interna dos partidos e associações, e sobre a base da notoriedade pública que viria se impor à relação das organizações com o Estado e também entre elas. O estabelecimento de compromissos políticos teria que se legitimar ante este processo de comunicação política." MEP, tradução da versão em castelhano, p. 257.
  • 29
    Jürgen Habermas,
    "La soberania popular... ".
    Op. cit. , p. 36.
  • 30
    "As formas de sociabilidade burguesas tem encontrado substituto ao longo de nosso século, a tendência é a mesma em todas partes, independentemente da diversidade regional e nacional: a abstinência de todo raciocínio literário e político. A discussão social dos indivíduos recua perante às mais ou menos obrigatórias atividades de grupo ... Em tomo às
    group activities não se constitui público nenhum ... A ocupação do ócio do público consumidor de cultura, em correspondência, tem lugar dentro do clima social e não precisa de coagular em discussões ... ". MEP, tradução da versão em castelhano, p. 192.
  • 31
    As altas exigências da concepção habermasiana da política foram reformuladas ao longo do tempo nos termos da ação comunicativa e da uma teoria filosófica pós-metafísica, mas não diminuíram o ônus imposto aos sujeitos da participação política: "Uma esfera pública liberal necessita naturalmente de uma vida associativa livre, de um poder da mídia refreado e da cultura política de uma população habituada à liberdade; necessita do concurso de um mundo da vida mais ou menos racionalizado. A isto correspondem, do lado das estruturas de personalidade, identidades de eu pós-convencionais. " (1995) Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre.... ", p. 93.
  • 32
    Jürgen Habermas,
    Mudança estrutural....,
    Op. cit. , p. 259.
  • 33
    Cf. Witold Kula,
    Las medidas y los hombres, México, Siglo XXI, 1980.
  • 34
    Este prefácio está disponível na edição em castelhano de MEP de 1994, p. 6.
  • 35
    Jürgen Habermas,
    Mudança estrutural. . . . ,
    Op. cit. , p. 10. A tradução para o português fala de "esfera pública plebéia", o que resulta uma verdadeira contradição dentro do modelo habermasiano. Neste caso é impossível manter a tradução de
    Offentlchkeit por "esfera pública" sem produzir uma grande confusão.
  • 36
    "A fórmula previsão da existência coletiva' cobre uma multidão de funções novas que vem desenvolvendo o Estado social e cobre também um grande leque de interesses privados organizados coletivamente e expandidos graças ao próprio crescimento do Estado. O Estado intervém fundo, mediante leis e diversos expedientes, na esfera do tráfego mercantil e do trabalho social, porque os interesses em atrito das distintas forças se deslocam para a dinâmica política e, mediados pelo intervencionismo estatal, retroagem sobre a própria esfera privada. Por isto, vistas as coisas globalmente, não pode se negar a influencia democrática' sobre a ordem econômica: a massa de desposuidos tem conseguido, mediante intervenções públicas no âmbito privado . . . que sua participação na renda não diminua no longo prazo ..." (imediatamente depois Habermas continua com a crítica ao acoplamento das esferas pública e privada) A segunda menção diz: "A mudança de função dos direitos fundamentais que ocorre no Estado social, a transformação do Estado liberal de direito em Estado social, em general, ameniza a tendência efetiva do enfraquecimento da publicidade como princípio. . . " MEP, tradução da versão em castelhano, pp. 178 e 257.
  • 37
    Cf, por ex., Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre ..."
    Op. cit., pp. 99-100.
  • 38
    Uma perspectiva assim privilegiaria, por exemplo, um percurso de leitura com o seguinte:
    Teoria da ação comunicativa I e
    II (1981);
    Consciência moral e ação comunicativa (1983),
    Teoria da ação comunicativa-Complementos e estudos prévios (1984);
    Escritos sobre moralidade e eticidade (1986);
    Between Facts and Norms- Contribution to a Discourse Theory of law and democracy (1992). Neste percurso, seja dito de passagem, não se levam em conta mais de uma dezena de obras publicadas nas décadas dos sessenta e setenta.
  • 39
    Estudents and politics (1961),
    Mudança estrutural da esfera pública (1962),
    Teoria e praxe (1963),
    Conhecimento e interesse (1968),
    Técnica e ciência como ideologia (1968) e
    Protest-bewegung und Hochschulreform (1969).
  • 40
    La lógica de las ciencias sociales (1970),
    Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie-Was leistet die Systemforschung (1971),
    Perfiles filosófico-políticos (1971),
    A crise de legitimação no capitalismo tardio (1973) e Para a
    reconstrução do materialismo histórico (1976).
  • 41
    Stichworte zur 'Geistigen Situation der Zeit' (1980),
    Teoria de la Acción comunicativa I e II (1981),
    Ensayos políticos I-IV (1981),
    Sobre Nietzsche y otros ensayos (1982),
    Consciência moral e agir comunicativo (1983),
    Adorno-Konferenz (1983),
    Teoría de la acción comunicativa: complementos y estudios previos (1984),
    Discurso filosófico da modernidade (1985),
    A nova intransparencia (1985),
    Ensayos políticos V (1985),
    Escritos sobre moralidad y eticidad (1986),
    Identidades nacionales y posnacionales (1987),
    Pensamento pós-metafísico (1988),
  • 42
    Textes e contextes (1991),
    Passado como futuro (1991),
    Between Facts and Norms -Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy (1992) e
    Justification and Aplication-Remarks on Discourse Ethics (1993).
  • 43
    É possível lembrar, por exemplo, as consideráveis repercussões causadas pela coletânea de ensaios
    Para a reconstrução do materialismo histórico, cujo segundo texto, apresentado na Associação Internacional Hegel no ano anterior à publicação, deu nome ao livro.
  • 44
    Cf. Jürgen Habermas,
    A crise de legitimação no capitalismo tardio (1973). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, pp. 20-29 e 111-118.
  • 45
    Esta idéia também tem sido assinalada por John Keane em
    La vida pública y el capitalismo tardio (México, Alianza, 1992, pp. 214 e 228-234) e por Antoni Domènech, tradutor da edição espanhola de 1981 do trabalho sobre as mudanças estruturais da esfera pública: "É típico da posterior evolução de Jürgen Habermas carregar as tintas na 'boa intenção normativa' em detrimento da exploração de seu possível encaminhamento material. " (p. 26)
  • 46
    Jürgen Habermas,
    A crise de legitimação... Op. cit. , p. 51.
  • 47
    "À proposição de que os valores-metas dos sistemas sociais variam historicamente, precisa ser acrescentada a proposição de que a
    variação em valores metas é limitada por uma lógica do desenvolvimento das estruturas das visões do mundo, uma lógica que
    não está à disposição dos imperativos de argumentação do poder. "
    Ibid., pp. 25, também cf. pp. 59-61 (Grifo do autor).
  • 48
    Ibid.., p. 113.
  • 49
    Ibid., pp. 121-140.
  • 50
    Cf. Jürgen Habermas, "Três modelos normativos de democracia", (1991)
    Lua Nova 36, 1995, particularmente pp. 45-48; e Jürgen Habermas,
    "La soberania popular. . . ",
    Op. cit. , particularmente pp. 50-58.
  • 51
    Jürgen Habermas,
    A crise de legitimação...,
    Op. cit. , p. 15. (grifos do autor)
  • 52
    Jürgen Habermas,
    The Theory of Communicative Action II -Lifeworld and System: a Critique of Funcionalist Reason, Boston, Beacon Press, 1987, pp. 113-152. Doravante TAC II.
  • 53
    Ibid., pp. 3-42.
  • 54
    Ibid., pp. 43-76.
  • 55
    Ibid., pp. 77-118.
  • 56
    Ibid., p. 119.
  • 57
    "Quando escrevi TAC a minha preocupação central era com o desenvolvimento de um instrumento teórico para caraterizar o fenômeno da 'reificação' (Lukács). " Jürgen Habermas,
    "Moralidad, sociedad... ",
    Op. cit. , p. 106.
  • 58
    TACII, pp. 153-197.
  • 59
    Jürgen Habermas,
    The Theory of Communicative action I-Reason and the Rationalization of Society, Boston, Beacon Press, 1984, pp. 273-337. Doravante TAC I.
  • 60
    Ibid., p. 98.
  • 61
    "Para evitar os mal-entendidos, eu gostaria de repetir que o modelo da ação comunicativa não iguala ação com comunicação...a ação comunicativa designa um tipo de interação que é
    coordenada através de atos de fala e
    não coincide com eles." Ibid., p. 101. (grifos do autor)
  • 62
    Jürgen Habermas,
    The philosophical...
    Op. cit., p. 341. Habermas fala exatamente em reabilitar o conceito de razão.
  • 63
    Ibid., pp. 294-326.
  • 64
    É surpreendente lembrar que, em 1973, Habermas introduziu uma analogia terapêutica na relação conhecimento-interesse, baseada precisamente na teoria psicanalítica freudiana. Na terapia da psicanálise os indivíduos conversam sobre o que eles são e não sobre coisas alheias, produzindo assim um saber emancipador que, enquanto tal, tem sentido apenas para aqueles que participaram na sua produção. Nessa altura do programa de pesquisa, Habermas propunha a psicanálise como um modelo de ciência, na verdade o único existente, que reivindicava metodologicamente o exercício auto-reflexivo sem hierarquização de conteúdos desde a teoria ou desde qualquer outra exterioridade alheia aos sujeitos da fala. Cf. Jürgen Habermas,
    Conhecimento e interesse, (1973) Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pp. 233-262.
  • 65
    ". . . vou defender a tese de que a verdade pertence categorialmente ao mundo dos 'pensamentos' . . . e não ao das percepções". Jürgen Habermas,
    Teoría de la acción comunicativa-Complementos y estudios previos, (1984) México, Rei, 1993, p. 133, para esta linha de trabalho podem ser consultadas na íntegra, com bom proveito, suas notas sobre as teorias da verdade, pp. 161-192.
  • 66
    "O discurso prático-moral representa a extensão de cada comunidade de comunicação desde a perspectiva interna. Neste foro, apenas podem chegar a acordo justificável aquelas propostas normativas que expressem o interesse comum de todos os afetados. Neste sentido, as normas discursivamente justificadas concedem validade simultaneamente tanto ao que é interesse de todos por igual, quanto a uma vontade geral que assumiu dentro de si, sem constrangimentos, a vontade de todos. Entendida desta forma, a vontade determinada por razões morais não permanece externa à razão argumentativa; a vontade autônoma é completamente interna à razão. "Jürgen Habermas,
    Justification and Aplication-Remarks on Discourse Ethics. Cambridge, Massachusetts/ London, The MIT Press, pp. 12-13. (grifo do autor)
  • 67
    O livro com o qual se costumamarcar este desdobramento do programa de pesquisa habermasiano foi publicado em 1983, dois anos após a aparição da
    Teoria da ação comunicativa. O referido livro é
    Consciência moral e agir comunicativo.
  • 68
    "O problema das condições sob as quais as prescrições morais resultam razoáveis é um motivo para a transição da moral para o direito. " Jürgen Habermas,
    Justification and. .. Op. cit., p. 16.
  • 69
    Cf. os comentários de Gabriel Cohnao adendo editorial sobre a obra de 1992 (
    Between Facts and Norms) introduzido em Jürgen Habermas, "Três modelos... ",
    Op. cit. , pp. 48-51.
  • 70
    Falamos de vínculo concorrencial para nos referir ao fato de que, normalmente, a importância do debate entre concepções teóricas decorre delas oferecerem, como um todo ou como parte do seus desenvolvimentos, visões alternativas- concorrentes - de compreensão e abordagem de um leque determinado de problemas. Sem este vínculo concorrencial seria verdadeiramente difícil entender o interesse de Habermas no sistema rawlsiano.
  • 71
    Cf. Jürgen Habermas, "Uma conversa sobre..." (1995)
    Op. cit., p. 86; fundamentalmente, Jürgen Habermas,
    Between Facts and. . . (1992)
    Op. cit. , pp. 56-66; também, Jürgen Habermas,
    Moralidad, sociedad... (1990)
    Op. cit. , pp. 86,97-98 e 112-113. O debate é de 1995.
  • 72
    John Rawls, "Justiça como eqüidade: uma concepção política, não metafísica", em
    Lua Nova 25, 1992, pp. 28-29.
  • 73
    Ibid., pp. 32, 38 e 50.
  • 74
    "Na justiça como eqüidade, o entendimento da unidade social parte de uma concepção da sociedade comoum sistema de cooperação entre pessoas livre e iguais. " Ibid., p. 56, cf. também pp. 35, 39, 43 e 50. Cf. John Rawls,
    Teoria de la justicia. (1991) México, FCE, 1995, pp. 410-418.
  • 75
    "Se percorremos a teoria de Rawls até uma de suas extremidades encontramos o ideal de pessoas morais livres e iguais; se percorremos até outra de suas extremidades encontramos o ideal de sociedade bem ordenada. " Álvaro de Vita, "A tarefa prática da filosofia política em John Rawls",
    Lua Nova 25, 1992, p. 12.
  • 76
    "Com estas observações como prefácio, podemos agora ver como os princípios da justiça se: relacionam com a sociabilidade humana. A idéia principal consiste, simplesmente, em que uma sociedade bem ordenada (correspondente a justiça como imparcialidade [eqüidade]) é, por si mesma, uma forma de união social. Na verdade, é uma união social de uniões sociais. John Rawls,
    Teoria de. ..
    Op. cit. , p. 476. O problema da estabilidade da teoria da justiça é abordado em extenso nas pp. 464-521.
  • 77
    Existe, é claro, um conjunto maior de diferencias como, por exemplo, os distintos debates e posições teóricas dominantes perante as quais definiram sua própria obra- no caso de Rawls se trata fundamentalmente do utilitarismo. Contudo, estes outros aspectos não são peculiarmente relevantes para nossos propósitos neste ensaio.
  • 78
    John Rawls,
    "Reply to Habermas", Op. cit. , I. 1 e I. 2. A citação provem do primeiro parágrafo de I. 2.
  • 79
    Cf. Jürgen Habermas.
    "Rawls' Political. . . ",
    Op. cit. , I. 3; e John Rawls,
    "Reply to. . . ",
    Op. cit., I. 3.
  • 80
    Há quem conhece bem a obra de Rawls e opina em sentido exatamente inverso: ". . . ou, em outros termos, qual é o peso que a situação contratual tem na justificação da teoria de Rawls? Se o que argumentei acima faz sentido, esse peso é diminuto. A justificação dos princípios de 'justiça como eqüidade' poderia, a rigor, dispensar o recurso à posição original e ao 'véu de ignorância'. " Álvaro de Vita,
    Justiça Liberal - Argumentos liberais contra o neoliberalismo, Rio de Jaeiro, Paz e Terra, 1993, p. 55, em geral cf. pp. 39-71
  • 81
    Jürgen Habermas,
    Between facts. . .
    , Op. cit. , p. 9, cf. , também pp. 1-9; e o ensaio sobre os usos pragmáticos, éticos e morais da razão prática, em Jürgen Habermas,
    Justification and... Op. cit.
  • 82
    Cf. Ana Maria Rivadeo Fernández,
    Epistemología y política- Apriorismo y noumenicidad en Kant, México, UNAM/ ENEP Acatlán, 1988.
  • 83
    Essa afirmação poderia parecer contraditória com a exigência rawlsiana da "condição de publicidade" dos termos da cooperação e obrigação sociais, porém, esta exigência responde muito mais a peculiaridades da tradição liberal, enquanto a importância do indivíduo e da formação pessoal de critério, do que as conseqüências procedimentais da teoria da ação comunicativa. Cf. Álvaro de Vita,
    Justiça liberal...
    Op. cit., pp. 26-31; e Álvaro de Vita,
    "A Tarefa Prática... ",
    Op. cit. , p. 11.
  • 84
    É preciso explicitar isto, pois algumas das críticas de Habermas decorrem de mal-entendidos da obra de Rawls; por exemplo, o entendimento de que existem alguns representantes dos cidadãos, que não eles, julgando e decidindo na posição original. Na verdade, Rawls se refere a partes racionais "fideicomissárias dos cidadãos, uma para cada cidadão". John Rawls,
    "Reply to... "Op. cit., I. 3, segundo parágrafo.
  • 85
    Jürgen Habermas,
    "Rawls' Political... ",
    Op. cit.. I. 1 e 1. 3.
  • 86
    Ibid.
  • 87
    Ibid., II. 1. Insistimos em que se trata da interpretação de Habermas.
  • 88
    V. gr. ". . . ao moldar uma teoria universalista da justiça para questões de estabilidade política por meio de um consenso sobreposto, ele [Rawls] compromete o
    status epistêmico dela. Ambas as estratégias são adotadas ao custo de um programa procedimentalista estrito. Em contraste com essa abordagem, Rawls poderia satisfazer de forma mais elegante os ônus de prova em que ele incorre com seu forte e presumivelmente neutro conceito de pessoa moral se desenvolvesse seus conceitos e pressupostos substantivos a partir do procedimento do uso público da razão. " Ibid. III.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Out 2010
    • Data do Fascículo
      1997
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