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A formação do enfermeiro crítico-reflexivo no curso de enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília - FAMEMA

La formación del enfermero crítico-reflexivo en el curso de enfermería de la Facultad de Medicina de Marília - FAMEMA

Critical reflexive education of nurses from the nursing undergraduate program offered by the School of Medicine of Marília - FAMEMA

Resumos

Objetivou-se neste estudo, captar através dos alunos do Curso de Enfermagem da FAMEMA como está sendo construído seu processo de formação, visando a constituição de um profissional crítico-reflexivo, e identificar as marcas diferenciais deste processo percebidas pelos alunos a partir da lógica do Projeto Político-Pedagógico (PPP). Os sujeitos da pesquisa foram alunos do 4º ano do Curso de Enfermagem, sendo utilizados o grupo focal e a entrevista semi-estruturada como técnicas de pesquisa. O material empírico foi organizado segundo a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo, e procedeu-se em seguida à análise temática. Evidenciou-se que os alunos conseguiram elaborar uma crítica com relação ao PPP, discriminando e percebendo problemas apontados, mudanças que ocorreram, conflitos gerados num projeto dessa natureza. Ao vivenciarem a realidade concreta, os alunos também convivem com os conflitos que permeiam as relações construídas no cotidiano, questionando o papel do enfermeiro, refletindo sobre sua postura ética, a fundamentação para a argumentação e a sustentação de sua prática na equipe.

educação em enfermagem; currículo; enfermagem


Se pretendió en este estudio, identificar a través de los estudiantes del Curso de Enfermería de la FAMEMA como está siendo su proceso de formación en la construcción de un profesional crítico-reflexivo e identificar las marcas diferenciales de este proceso identificada por los estudiantes a partir de la lógica del Proyecto Político Pedagógico (PPP). El grupo de investigación fueron los estudiantes de 4 año del Curso de Enfermería, usándose el grupo focal y la entrevista semi-estructurada como técnicas de la investigación. El material empírico fue organizado según la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo y después se realizó el análisis temático. Se evidenció que los estudiantes consiguieron elaborar una crítica en relación con el PPP, percibiendo y diferenciando los problemas que notaron, los cambios que ocurrieron y los conflictos generados en un proyecto de esta naturaleza. Al vivir esta realidad concreta, los estudiantes también conviven con los conflictos que se desarrollan en las relaciones construidas en lo cotidiano, cuestionando el papel de la enfermera, reflexionando sobre su postura ética, los fundamentos para sustentar y argumentar su practica en equipo.

educación en enfermería; currículo; enfermería


The study aimed at learning with the undergraduate students enrolled at the Nursing Undergraduate Program offered by FAMEMA about how they are building their education with the purpose of forming a critical reflexive professional as well as identifying the differences perceived by the students with respect to the logic of the Pedagogical Political Plan. The subjects were students finishing the fourth year of the undergraduate program. Authors used the focal group and semi-structured interviews as research techniques. The empirical data were organized according to the technique of Collective Subject Discourse followed by thematic analysis. Authors evidenced that the students were able to elaborate a critique with respect to the Pedagogical Plan, discriminating and perceiving the problems, the changes that occurred and the conflicts generated in a Project of this nature. When they experience reality, students also have conflicts that permeate the relationships they build in their lives, questioning nurses' role, reflecting about their ethical posture, the basis for the argumentation and support to their practice working as a team.

nursing education; curriculum; nursing


ARTIGO ORIGINAL

A formação do enfermeiro crítico-reflexivo no curso de enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília - FAMEMA

Critical reflexive education of nurses from the nursing undergraduate program offered by the School of Medicine of Marília - FAMEMA

La formación del enfermero crítico-reflexivo en el curso de enfermería de la Facultad de Medicina de Marília - FAMEMA

Mara Quaglio ChirelliI; Silvana Martins MishimaII

IEnfermeiro, Professor Assistente junto ao Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília, Doutoranda do Programa Interunidades de Enfermagem das Escolas de Enfermagem da Universidade de São Paulo, e-mail: chirelli@terra.com.br

IIEnfermeiro, Professor Doutor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: smishima@eerp.usp.br

RESUMO

Objetivou-se neste estudo, captar através dos alunos do Curso de Enfermagem da FAMEMA como está sendo construído seu processo de formação, visando a constituição de um profissional crítico-reflexivo, e identificar as marcas diferenciais deste processo percebidas pelos alunos a partir da lógica do Projeto Político-Pedagógico (PPP). Os sujeitos da pesquisa foram alunos do 4º ano do Curso de Enfermagem, sendo utilizados o grupo focal e a entrevista semi-estruturada como técnicas de pesquisa. O material empírico foi organizado segundo a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo, e procedeu-se em seguida à análise temática. Evidenciou-se que os alunos conseguiram elaborar uma crítica com relação ao PPP, discriminando e percebendo problemas apontados, mudanças que ocorreram, conflitos gerados num projeto dessa natureza. Ao vivenciarem a realidade concreta, os alunos também convivem com os conflitos que permeiam as relações construídas no cotidiano, questionando o papel do enfermeiro, refletindo sobre sua postura ética, a fundamentação para a argumentação e a sustentação de sua prática na equipe.

Descritores: educação em enfermagem; currículo; enfermagem

ABSTRACT

The study aimed at learning with the undergraduate students enrolled at the Nursing Undergraduate Program offered by FAMEMA about how they are building their education with the purpose of forming a critical reflexive professional as well as identifying the differences perceived by the students with respect to the logic of the Pedagogical Political Plan. The subjects were students finishing the fourth year of the undergraduate program. Authors used the focal group and semi-structured interviews as research techniques. The empirical data were organized according to the technique of Collective Subject Discourse followed by thematic analysis. Authors evidenced that the students were able to elaborate a critique with respect to the Pedagogical Plan, discriminating and perceiving the problems, the changes that occurred and the conflicts generated in a Project of this nature. When they experience reality, students also have conflicts that permeate the relationships they build in their lives, questioning nurses' role, reflecting about their ethical posture, the basis for the argumentation and support to their practice working as a team.

Descriptors: nursing education; curriculum; nursing

RESUMEN

Se pretendió en este estudio, identificar a través de los estudiantes del Curso de Enfermería de la FAMEMA como está siendo su proceso de formación en la construcción de un profesional crítico-reflexivo e identificar las marcas diferenciales de este proceso identificada por los estudiantes a partir de la lógica del Proyecto Político Pedagógico (PPP). El grupo de investigación fueron los estudiantes de 4 año del Curso de Enfermería, usándose el grupo focal y la entrevista semi-estructurada como técnicas de la investigación. El material empírico fue organizado según la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo y después se realizó el análisis temático. Se evidenció que los estudiantes consiguieron elaborar una crítica en relación con el PPP, percibiendo y diferenciando los problemas que notaron, los cambios que ocurrieron y los conflictos generados en un proyecto de esta naturaleza. Al vivir esta realidad concreta, los estudiantes también conviven con los conflictos que se desarrollan en las relaciones construidas en lo cotidiano, cuestionando el papel de la enfermera, reflexionando sobre su postura ética, los fundamentos para sustentar y argumentar su practica en equipo.

Descriptores: educación en enfermería; currículo; enfermería

INTRODUÇÃO

A formação dos enfermeiros numa perspectiva crítico-reflexiva e em defesa da vida tem sido, há algum tempo, uma das questões que vem mobilizando os docentes do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA). Desde 1998, está sendo implementado novo currículo, que tem como cenário o desenvolvimento do Projeto UNI (Uma Nova Iniciativa na formação dos profissionais da saúde) - Marília, financiado pela Fundação Kellogg, o qual propõe em seu ideário a reformulação do processo de formação dos profissionais da área da saúde em união com o serviço e comunidade.

Esse projeto organizou uma diversidade de frentes de trabalho à medida que se delinearam as estratégias para a mudança na formação de enfermeiros e médicos. A opção do Curso de Enfermagem foi a de implementar um Projeto Político-Pedagógico (PPP), centrado na formação de sujeitos por meio de currículo integrado e da Metodologia da Problematização, tendo como objetivo a formação das competências de um enfermeiro crítico-reflexivo com qualidade formal e política(1).

Ao formularmos um novo PPP, apostamos na possibilidade de construirmos um processo de formação articulado ao mundo do trabalho, rompendo com a separação entre teoria/prática, utilizando metodologia ativa de ensino-aprendizagem, proporcionando aprendizagem significativa. Isso determina a possibilidade de mudanças nos diversos sujeitos envolvidos no processo em questão, tendo como perspectiva a formação de profissional crítico, reflexivo, compromissado com seu papel social, sendo um sujeito ativo no seu próprio percurso de vida e de trabalho, contribuindo para a construção de um sistema de saúde pautado nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Na Enfermagem, essa reconstrução data desde o início da década de 80, quando começaram as discussões e a construção de um projeto político para a profissão, conduzido pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), o qual vem sendo implementado, enfrentando políticas econômicas, de ensino e de saúde nem sempre favoráveis aos processos de transformação.

Na perspectiva do ensino superior, o Fórum Nacional de Pró-Reitores das Universidades Brasileiras, na introdução do Plano Nacional de Graduação, frisa que estamos vivendo em uma sociedade globalizada, a qual tem priorizado a dimensão tecnológica do conhecimento, em estreita sintonia com as relações de mercado, no qual se destaca o aspecto econômico de competição incessante entre qualidade e lucro. Destaca ainda que vivemos em uma era de rápidas e profundas transformações, em que se impõe a informação, a comunicação, as novas formas de pensar e agir, sendo necessário, para o exercício de uma profissão, adotar novos processos de formação que possibilitem aos egressos a capacidade de investigação e a de aprender a aprender, estimulando assim a capacidade para entender como se produz o saber nas diversas áreas, criando condições para uma educação permanente(2).

Não se trata, portanto, somente da ampliação da criatividade, da relação do aluno com o conhecimento, enquanto dimensão crítica do saber. A questão está centrada em para que e para quem será utilizada essa capacidade de crítica e de construção do conhecimento, sendo que essa capacidade pode e deve ser posta a serviço dos interesses maiores da sociedade(3).

A educação e o sistema escolar, enquanto prática social, não têm neutralidade e nem independência, estando articulados aos valores e regras da sociedade. Os projetos são determinados pela lógica da produção vigente, pelo modelo de sociedade em que estão sendo construídos, onde a estratificação da sociedade em classes, com o domínio de uma dada classe, delimita o papel da escola e o que se deve ensinar.

A sociedade, no entanto, vive em constante movimento e tensão, tendo forças favoráveis e desfavoráveis a cada projeto implementado. Da mesma forma, a escola vive momentos nos quais seus projetos podem servir tanto para a reprodução dos homens na sociedade de forma acrítica como para desenvolver a formação crítica, reflexiva, comprometida e consciente para atuar a favor da igualdade social e da qualidade de vida, formando cidadãos no seu processo de humanização.

Dessa forma, o projeto pedagógico tem conotação política, pois reconhecemos que está inserido num determinado contexto dinâmico, construído historicamente pelos sujeitos que atuam no cotidiano da escola por meio de práticas pedagógicas com as mais diversas visões de mundo, permeadas por ideologias, culturas, subjetividades, criando tensão entre as mesmas, sendo uma arena de conflitos e interesses, estando essas práticas explícitas ou veladas nas contradições do processo em si.

Vários autores têm apontado que estamos no transcorrer da construção de um novo paradigma, no qual são necessários os valores da solidariedade, da preservação do meio em que vivemos, da compreensão do mundo, resgatando a totalidade do ser humano e a ética. Para tanto, os projetos pedagógicos dos cursos de graduação deveriam estar sintonizados com essa visão de mundo, caso queiram realizar formação comprometida com a construção da cidadania enquanto emancipação das pessoas na sociedade, garantindo formação mais global e crítica, ou seja, formar sujeitos para a transformação da realidade, buscando respostas para os problemas contemporâneos(4).

O movimento sanitário brasileiro, no contexto da construção do SUS, tem dado pouca importância ao processo de constituição de atores sociais capazes de alterar as correlações de forças, viabilizando transformações concretas no Sistema Público de Saúde. Para que isso ocorra temos que revigorar projetos que se constituam em processos de produção de sujeitos que tenham vontade política e que queiram construir um projeto de reformas(5).

Há várias possibilidades que podem se conformar, pois "todo projeto supõe 'rupturas' com o presente e 'promessas' para o futuro. Projetar significa tentar quebrar um estado confortável para arriscar-se, atravessar um período de instabilidade e buscar uma nova estabilidade em função da promessa que cada projeto contém de estado melhor do que o presente. Um projeto educativo pode ser tomado como promessa frente a determinadas rupturas. As promessas tornam visíveis os campos de ação possível, comprometendo seus atores e autores"(6).

Assim, considerando as questões até aqui colocadas, delimitamos como objetivos deste trabalho: - captar através dos alunos do Curso de Enfermagem da FAMEMA a construção do seu processo de formação, na direção da constituição de um profissional crítico-reflexivo; - identificar as marcas diferenciais do processo de formação percebidas pelos alunos do Curso de Enfermagem da FAMEMA a partir da lógica do Projeto Político-Pedagógico do curso.

METODOLOGIA

A busca da compreensão do objeto em foco deu-se através da pesquisa qualitativa por essa ser capaz de "incorporar a questão do Significado e da Intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas"(7). Assim, essa opção determinou a definição de técnicas para coleta de dados, bem como da análise proposta para o material empírico.

O campo de estudo

Constituiu-se campo de estudo dessa pesquisa o Curso de Enfermagem da FAMEMA, localizada no município de Marília, Estado de São Paulo - Brasil, onde um novo currículo de Enfermagem vem sendo construído num processo de transformação da instituição, tomando-se como marcos delimitadores: a estadualização da FAMEMA e o Projeto UNI - Marília. O Curso de Enfermagem é oferecido em quatro anos, numa configuração de currículo integrado, contando atualmente com 159 alunos.

Trabalho de campo: o processo, os sujeitos da pesqsuisa, as fontes, as técnicas e o instrumento para a coleta do material empírico

O presente trabalho apresenta-se como uma das possibilidades de aproximação à realidade do Curso de Enfermagem da FAMEMA, na tentativa de compreendê-lo na perspectiva da formação do enfermeiro crítico-reflexivo. Ao trabalharmos com a compreensão do processo de formação de enfermeiros, nesse espaço, buscamos a subjetividade dos sujeitos no processo. Ou seja, como esses sujeitos captaram e construíram esse projeto durante os quatro anos de formação em sua prática cotidiana, considerando sua cultura, crenças, valores, ideologia, sentimentos, desejos, temores, interesses, aspirações, seu modo de realizar sua prática e seus comportamentos frente a determinadas situações.

Os sujeitos da pesquisa foram os 41 alunos do último ano do curso de enfermagem, ingressantes no ano de 1998, ou seja, alunos que iniciaram o processo de implantação do currículo integrado. Entendemos que, por ser a primeira turma a se formar no novo currículo, e por já ter percorrido todas as unidades educacionais e, acumulado experiências ao longo dos quatro anos do curso, seria pertinente compreendermos como os alunos conseguiram construir sua percepção acerca do profissional enfermeiro numa visão crítico-reflexiva.

Para captarmos essa realidade foram utilizados dados de fonte primária, coletados através das técnicas de grupo focal e entrevista semi-estruturada, bem como de fonte secundária, obtidos em fontes documentais produzidas por outros grupos de trabalho como o próprio Projeto Político-Pedagógico do Curso de Enfermagem, o Projeto de Estadualização da FAMEMA, o Projeto de intenções para iniciarmos as atividades do Projeto UNI e os relatórios anuais da instituição em relação ao desenvolvimento das atividades do Projeto UNI, incluindo documentos do Projeto UNI-Marília.

Antes de iniciarmos a coleta em campo, seguindo as normatizações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisas - CONEP, presentes na resolução do CNS 196/96 e Capítulo IV da Resolução 251/97, o projeto de pesquisa passou por aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da FAMEMA, tendo sido aprovado sem ressalvas.

As técnicas de captação do material empírico: o grupo focal e a entrevista semi-estruturada

A coleta do material empírico pela técnica de grupo focal (GF)(8-10), que é uma determinada técnica de entrevista, foi escolhida por apresentar a possibilidade de expressar a subjetividade dos sujeitos da pesquisa, manifestando suas vivências e experiências no campo em estudo, através do relato verbal e discussões em coletivo. Consideramos também que a mesma possibilita, num curto intervalo de tempo, reunir um conjunto de pessoas que poderão gerar através da interação grupal um volume de material com profundidade de conteúdo.

A intenção foi a de proporcionar a captação da dinamicidade do processo de formação dos alunos enquanto sujeitos, evidenciando os significados dos meios, instrumentos, saberes e práticas que foram construídos durante a formação dos enfermeiros.

Os integrantes do grupo foram 8 alunos da 4ª série do Curso de Enfermagem da FAMEMA, o que gera homogeneidade quanto aos processos a que foram submetidos para que houvesse uma formação crítico-reflexiva durante os quatro anos do curso. O critério de seleção e de inclusão dos sujeitos da pesquisa foi a adesão voluntária dos alunos, sendo que o grupo de alunos participou de 3 sessões onde as temáticas disparadoras foram discutidas. No 1º encontro discutiu-se a entrada no curso e o processo de adaptação em um projeto pedagógico novo; no 2º encontro sobre como se deu a formação, estando num currículo integrado e com a metodologia da problematização, destacando as marcas e competências/desempenhos construídas ao longo do PPP e no 3º encontro a conclusão do processo de formação e o futuro como profissional.

Realizamos também a entrevista semi-estruturada com 4 alunos que não puderam participar do GF, sendo que essa técnica "combina perguntas fechadas e abertas, onde o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto, sem respostas ou condições pré-fixadas pelo pesquisador"(7). Utilizamos a mesma seqüência de questões para a coleta do material empírico através da entrevista.

Análise do material empírico

Iniciamos a organização do material empírico utilizando a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)(11). O método consiste em utilizarmos algumas figuras metodológicas para que possamos construir os discursos dos sujeitos da pesquisa. A primeira figura é a ancoragem, que diz respeito à teoria, ideologia, crença que está fundamentando o discurso apresentado pelo sujeito. A segunda figura é composta de expressões-chave que são as partes ou fragmentos das falas das entrevistas, contínuos ou descontínuos, os quais vão expressar a essência do discurso ou a teoria subjacente. Na seleção do material estamos buscando depurar o que é irrelevante, inessencial e secundário, para ficarmos com aquilo que seja essencial nos discursos analisados, além de facilitar a construção dos mesmos. Através desse recurso metodológico estamos tornando a fala genérica e abstrata uma fala do social, pois conforme o autor frisa, um discurso social só pode ser construído pela abstração, pela forma de um mesmo discurso compartilhado.

A terceira figura é a idéia central, que descreve de maneira mais sintética e precisa possível o sentido e o tema das expressões-chave de cada um dos discursos analisados. O tema diz respeito ao assunto em pauta (sobre o quê se está falando) e a idéia central é a expressão do que se quis dizer.

Finalmente o Discurso do Sujeito Coletivo trata da reunião das expressões-chave que têm a mesma idéia central ou ancoragem em um discurso-síntese. Os autores destacam ainda que DSC "é a reunião de todas as possibilidades imaginárias (discursos uno, diferente e antagônico) oferecidas por uma dada cultura, num dado momento, para pensar um dado tema, e que a separação deste DSC global em vários DSCs tem uma finalidade didática de tornar a exposição mais compreensível"(12).

Iniciamos o processamento do material do grupo focal a partir do registro de cada encontro. Começamos pela leitura das falas emitidas após cada pergunta disparadora, separando qual a idéia central (IC) na mesma. A seguir agrupamos as falas que se assemelhavam com relação às ICs e suas expressões-chave (ECH) correspondentes. Nesse momento, processamos também a desparticularização das falas, para que pudéssemos formar as ECHs.

Processamos as entrevistas com a mesma técnica, sendo que encontramos maior facilidade para delimitarmos as ECHs e ICs a partir das perguntas disparadoras e das respostas emitidas. Nos grupos focais, como temos várias pessoas participando e interagindo, durante a coleta dos dados há uma série de idéias que surgem de uma pergunta disparadora e que, posteriormente, voltavam a ser abordadas quando estávamos tratando de questões ligadas a outra pergunta disparadora. A mesma pergunta por vezes provoca uma discussão sobre temas que estão entrelaçados, voltando o participante do grupo a citar situações, rever ou articular idéias que havia falado em outro momento da discussão. Com isso, muitas vezes havia uma série de ICs num mesmo disparador e que as mesmas também estavam presente em outro conjunto de respostas de outro disparador.

Num segundo momento, agrupamos as ICs das quatro entrevistas e do GF por semelhança da idéia contida na frase, para que houvesse maior agrupamento das ICs. Nesse movimento, percebemos que muitas das ICs, tanto nas entrevistas como no GF, se repetiam.

Outra opção feita foi a de processarmos a construção dos DSC, separadamente, por termos duas técnicas de coleta de dados diferentes e não encontrarmos na literatura respaldo para que realizássemos o agrupamento das falas provenientes das duas técnicas.

Ao concluirmos a construção dos DSCs, encontramos 15 discursos, sendo 7 das entrevistas e 8 do GF.

Após a ordenação do material empírico, aplicamos a análise temática(7), que é sustentada pelo referencial de Bardin(13).

Analisando os DSCs - qual o enfermeiro que encontramos? Qual o enfermeiro que desejamos? Qual o caminho para a transformação da Enfermagem?

Ao dar início ao PPP, no Curso de Enfermagem de Marília, havia um desafio proposto pelo Projeto UNI para que (re)elaborássemos o processo de educação de enfermeiros e de médicos, tendo como inovação a articulação da universidade/serviço/comunidade, considerando que nos três componentes pudessem ocorrer mudanças mobilizadas pelos sujeitos envolvidos, através do estabelecimento de parcerias. Para a Enfermagem, em particular, havia a possibilidade de se constituir um projeto na busca de novas práticas, que tivesse como base a valorização da profissão, promovendo visibilidade política e compromisso social para com o usuário.

A inovação do UNI estava na ampliação dos sujeitos e das estratégias, tendo oportunidades de se avançar para além do ideário na medida que as instituições que desenvolviam as atividades pudessem ampliar as suas possibilidades de articulação político-estratégicas, através das parcerias, e poder implementar experiências inovadoras, avaliando-as através de um processo crítico e potencialmente modificar as práticas instituídas. Essas questões, aliadas ao contexto político-sanitário, levaram o Curso de Enfermagem da FAMEMA a aceitar o desafio de elaborar um novo PPP tendo como perfil o enfermeiro a ser formado, um profissional crítico-reflexivo, que pudesse "trabalhar em equipe multiprofissional com enfoque interdisciplinar; prestar cuidados de Enfermagem; ter visão crítica da estrutura social; pautar suas ações pela ética profissional; gerenciar a assistência de Enfermagem e os serviços de saúde; buscar sua constante capacitação e atualização; ser capaz de realizar pesquisas"(14).

Existe uma intencionalidade presente no PPP, uma expectativa de ampliação do fazer do enfermeiro, qualificando sua prática para além da competência técnica formal, ampliando-a para uma competência política, apoiada por valores éticos, na busca da transformação da prática através de uma visão crítico-reflexiva, consciente, que favoreça a autonomia e a emancipação.

Tendo essas questões sustentando a perspectiva aqui colocada, identificamos que os alunos, ao ingressarem no curso, tinham uma visão sobre o enfermeiro, a qual espelha uma das visões do papel do profissional para a sociedade. Percebemos que os alunos no início do curso reconheciam o exercício de trabalho do enfermeiro voltado a uma prática que não se diferenciava daquela exercida pelo auxiliar de enfermagem. Na percepção dos alunos, os enfermeiros são comparados aos auxiliares e considerados como aqueles que estão prestando o cuidado simples e direto ao doente, como ato mecânico, burocrático, descontínuo, desumanizado, submisso ao poder médico, centrado na doença e na técnica, sem fundamentação nos conhecimentos científicos, sem compromisso político com o usuário, não aparecendo o gerenciamento como sua atribuição.

Ao apresentar suas percepções nessa direção, o aluno aponta uma expectativa em relação à profissão e prática exercida pelo enfermeiro que, se de um lado, podem indicar uma visão negativa da Enfermagem por não corresponder ao idealizado, ao mesmo tempo, apontam para a possibilidade de se estabelecer visão mais crítica do trabalho que vai se apresentando àqueles que se iniciam no desenvolvimento desta prática. A aproximação progressiva aos conteúdos trabalhados no curso, de certa forma, vai proporcionando ao aluno gradativamente uma ampliação/transformação em sua forma de considerar a Enfermagem e o trabalho do enfermeiro.

Esse movimento, certamente, importante no sentido do aluno ter ampliada sua capacidade de aprendizado nas quatro dimensões, ou seja: "aprender a aprender, aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conviver"(15) não supera a contradição existente ao se olhar para o mundo do trabalho onde os profissionais da Enfermagem vêm desenvolvendo sua prática no contexto do modelo hegemônico de produzir saúde, que se caracteriza pela interpretação do fenômeno saúde-doença, principalmente através de sua dimensão biológica, centrado no indivíduo como um conjunto de sistemas em busca de uma harmonia, com a conformação de uma prática fragmentada e centrada no ato médico, tendo o enfermeiro e a Enfermagem como auxiliares desse fazer, assim como os demais profissionais que compõem a prática em saúde. O modelo para organizar as ações está centrado na queixa-conduta e pautado em uma clínica empobrecida.

A Enfermagem, ao seguir o modelo médico, tem reproduzido suas práticas, desarticulando a saúde e a doença do contexto social, comparando o corpo humano com uma máquina, podendo ser analisado por partes, como as peças dessa máquina. A doença é vista através da biologia celular e molecular, considerando o mau funcionamento dos mecanismos biológicos. Por outro lado, a Medicina, ao considerar que os problemas de saúde estão localizados em partes cada vez menores do corpo, "perde freqüentemente de vista o paciente como ser humano e, ao reduzir a saúde a um funcionamento mecânico, não pode mais ocupar-se com o fenômeno da cura"(16).

No entanto, assim como há esforços para que possamos transformar o modo de se produzir saúde, numa ampliação do conceito do fenômeno saúde-doença, enquanto processo determinado pelas condições de vida e trabalho na relação dos homens em sua vida em sociedade, também há vários esforços na busca da transformação do processo de trabalho dos profissionais do campo da saúde. O PPP do Curso de Enfermagem da FAMEMA apresenta-se como uma das possibilidades de começar a intervir na educação de enfermeiros e, numa perspectiva de futuro, ampliar o leque de opções para que esses futuros profissionais possam desenvolver a crítica e a capacidade de intervir nas situações presentes no seu fazer/viver cotidiano.

Através das estratégias que foram sendo desenvolvidas nas unidades educacionais (UE) do Curso, os alunos tiveram a oportunidade de vivenciar e refletir sobre a prática do enfermeiro, repensando essa prática na medida que os conteúdos intencionalmente selecionados pelo conjunto dos docentes a partir do que se delimitou como desempenhos/ações a serem desenvolvidos ao longo das UEs, gerando conseqüentemente os recortes de conhecimentos necessários para subsidiar a ampliação desse fazer, qualificando e reestruturando as competências formal e política.

Na medida que buscamos construir a crítica através da reflexão sobre a prática em saúde e de Enfermagem em um determinado cenário de ensino-aprendizagem, temos como finalidade a formação de um profissional crítico-reflexivo com possibilidades de construir a mudança dessas práticas (ação/reflexão/ação), vivenciando, discutindo e elaborando junto com os docentes, os profissionais dos serviços e a comunidade as propostas de mudanças que possam levar em conta os princípios ético-morais e políticos presentes no SUS.

Com o desenvolvimento de atividades nos cenários de ensino-aprendizagem, porém, os alunos têm como percepção que o enfermeiro é um profissional que está desmotivado, desmobilizado e conformado com sua condição de trabalho, e que isso pode ser em decorrência de uma forma de capacitar os enfermeiros na graduação. Os alunos são muito enfáticos na crítica à postura do enfermeiro e da importância do processo de formação no redirecionamento da ação desse profissional frente à situação que o mesmo encontra nos serviços de saúde. Mais uma vez aparece certa idealização por parte do aluno em relação a esse processo todo (de intervenção mais contundente do profissional e do papel fundamental do processo de formação), uma vez que não são tomadas as determinações outras presentes no processo de relações que se estabelecem na produção desse sujeito/ator social - o enfermeiro, ou seja, as relações que o mesmo, enquanto sujeito social, se depara/constrói para levar adiante um certo projeto, quer seja em defesa de um sistema de saúde mais justo e equânime, quer seja de valorização da profissão.

É importante assinalar que o PPP é um instrumento potente para oferecer ferramentas ao futuro profissional para que o mesmo tenha opções em seu fazer/viver cotidiano, mas não determina unilateralmente essas mesmas opções.

Retomando essas questões, é possível identificar que um dos caminhos que os alunos apresentam para mudanças na prática em Enfermagem diz respeito à postura do profissional como enfermeiro crítico, que tem conhecimento que sustenta o seu fazer, apresenta uma atitude de enfrentamento dos problemas identificados e assume postura de igualdade de condição de atuação frente aos profissionais que atuam na equipe de saúde.

Para que fosse sendo desenvolvida a reflexão a favor de uma crítica sobre a realidade em que os alunos estavam vivendo, foi necessário todo um caminhar no qual há uma série de determinantes da constituição do sujeito como a subjetividade, os desejos, os interesses, as necessidades, que se constituem num processo social de negociação-e-luta, que interferem para que isso ocorra(17).

O desafio que está sendo colocado no PPP diz respeito à constituição de um sujeito que seja portador do projeto de mudança das práticas em saúde e de Enfermagem, com vistas à defesa da vida, proporcionando melhorias na qualidade de vida das pessoas e que, para tanto, há necessidade de atuar enquanto profissional que possa questionar a prática instituída, através da reelaboração constante da competência formal e política, ou seja, um profissional que busque olhar para o seu fazer e sempre questionar na perspectiva de mudanças.

Parece ser esse o movimento que vem se dando no Curso de Enfermagem da FAMEMA, uma vez que é possível identificar, ao lado das questões até aqui tratadas, que isso foi sendo construído gradativamente com os alunos, com os mais diferentes níveis de construção pessoal, cada um com seu tempo de reflexão e adesão ou não à proposta.

Há, portanto, a mudança a favor da defesa de um projeto, onde se modifica a forma de pensar e fazer no cotidiano através da reflexão, por sucessivas aproximações, sobre a realidade, com tomada de consciência do papel a ser desempenhado, ou seja, a práxis tendo impacto na estrutura interna do indivíduo enquanto sujeito.

Realizamos a práxis à medida que o sujeito supera a compreensão intuitiva e ingênua da atividade, unindo pensamento e ação, ou seja, teoria e prática de forma crítica e consciente. Como a consciência se nutre de valores, preconceitos, idéias e juízos, formar e ser um enfermeiro numa perspectiva crítico-reflexiva significa formar-se com consciência profissional reflexiva, crítica, informada e com potencial criativo.

Convivemos atualmente com uma separação entre teoria e prática, proporcionada pela visão reducionista da razão cientificista, caracterizada no complexo científico-tecnológico, principalmente a partir do século XIX, o qual acarretou transformação científica do conhecimento. Essa lógica trouxe como conseqüência um caráter ideologizado à ciência e à técnica e, sob o rótulo da neutralidade do saber, visa a eficácia de um sistema social que não permite atos reflexivos. Os cidadãos, que passam então a depender da organização de bens de consumo dessa sociedade, não são capazes de refletir sobre ela. Alterar tal situação significa mudar o estado de consciência, mediante uma teoria prática que não manipule coisas e processos coisificados, ou seja, desapropriados de significados para os sujeitos, mas que "conduza a consciência a um estágio de autonomia, por meio de representações críticas e claras. Tal desprendimento tutelar é que verificamos ter, como finalidade, a condução do agir e à libertação frente ao pensamento dogmático"(18).

Os alunos, contudo, assinalam que não há uniformidade entre os pares, de forma a garantir que, uma vez tendo passado pelo processo de reflexão, o mesmo proporciona adesão ao projeto proposto. Apontam ainda que o processo pode gerar nos alunos o posicionamento de não querer ser crítico, considerando as dificuldades que os mesmos podem não ter conseguido superar, ou que também pode ser um posicionamento consciente, crítico, que visa defender um outro projeto.

No processo de formação, num currículo integrado e com metodologia ativa de ensino, buscamos a integralidade no processo de trabalho, na medida em que o estudante e o docente podem ter consciência de todo o processo que está sendo realizado, desde o seu planejamento até a finalização do produto. Ambos deverão ser ativos quando estiverem realizando suas atividades, ou seja, terem consciência do que estão construindo, sendo sujeitos no processo, incorporando o pensar e o fazer de forma articulada. Nesse sentido, reconhecem-se, enquanto sujeitos, próximos do processo em que estão inseridos e do produto que será obtido. Quando refletem sobre sua prática estarão buscando possibilidades de superação de uma determinada situação, buscando a satisfação de uma necessidade de forma consciente.

Em sendo processo, também, está presente a idéia de movimento, de transformação dos sujeitos presentes na formação de enfermeiros, sendo que o seu produto é resultado da superação do objeto após diversas intervenções em que são utilizados diversos meios e instrumentos, buscando a reflexão crítica e consciente dos trabalhos/práticas concretizados anteriormente. Nessa perspectiva, a atividade dos seres humanos é considerada enquanto práxis, enquanto uma atividade transformadora, consciente e intencionalmente realizada.

"O saber que a prática (...) espontânea ou quase espontânea, desarmada, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. O pensar sistematizado, consciente, produz-se pelo próprio aprendiz, em comunhão com o professor formador. A curiosidade é a matriz do pensar ingênuo como do crítico, o que se precisa é possibilitar que, voltando-se para si mesmo, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica"(19).

É a aposta que se busca cumprir, e nesse trajeto, durante o processo de formação, há algumas competências que são apontadas pelos alunos como marcas de um profissional crítico-reflexivo. Dentre essas, está o desenvolvimento da competência para a argumentação, enquanto ferramenta do processo de comunicação entre as pessoas no trabalho em grupo/equipe, no desenvolvimento das atividades nos cenários de ensino-aprendizagem, onde ocorre a interação entre os profissionais com discussão dos problemas a serem resolvidos.

A intervenção fundamentada no saber científico e com crítica ganha destaque na atuação dos enfermeiros, na visão dos alunos, uma vez que esses buscam uma prática em enfermagem com qualidade, visando o compromisso com o usuário, com a aposta de romper com a divisão entre o objeto pensado e a finalidade no processo de trabalho. Dessa forma, há a expectativa de construir um trabalho consciente, crítico, realizado por profissional que assume um posicionamento frente ao trabalho na equipe de saúde.

Na visão dos alunos, o enfermeiro deve desenvolver posicionamento crítico no sentido da defesa de projetos, de forma consciente e não aceitando relação de poder de subordinação, a qual tem sido tão utilizada no campo da Enfermagem enquanto mantenedora de uma ordem e controle no fazer da profissão, além de relação de poder na própria equipe de saúde.

Os alunos destacam que o modelo hierárquico, presente na enfermagem e na equipe de saúde, deve ser rompido, devendo ser adotada postura mais democrática entre os profissionais. No processo de trabalho abordam que o enfermeiro deve desenvolver sua atividade partilhando suas opiniões com os demais membros da equipe, promovendo a discussão das propostas, considerando que o que é sua opinião necessariamente não deve ser a de todos, revelando postura democrática frente às decisões a serem tomadas.

Além dos alunos apontarem que o enfermeiro deva ter uma atitude crítica frente aos problemas que encontra na prática, tendo iniciativa para a intervenção, também foi sendo construída uma ampliação do fazer desse enfermeiro. Junto com a ampliação do fazer, percebemos que o mesmo está fundamentado em uma interpretação do fenômeno saúde-doença também ampliado, sendo considerado um fenômeno não somente biológico, individual, mas há também, determinações das condições onde as pessoas vivem, da família, seu contexto. Além disso, também estão presentes nesse fazer as tecnologias leves como o vínculo, a escuta, os direitos dos usuários enquanto reconhecimento do respeito ao cidadão, contribuindo para um cuidado mais humanizado, contínuo, integral, com compromisso e responsabilidade com quem está sendo cuidado.

No entanto, esse foi um caminho arduamente percorrido, segundo os alunos, considerando a fundamentação de determinadas práticas, em áreas de conhecimento como a antropologia, a sociologia e a epidemiologia. Os alunos, após apresentarem resistência para considerar esses conteúdos como fazendo parte da formação do enfermeiro, a partir do momento que começam a entrar em contato com os cenários de ensino-aprendizagem e com as intervenções aí realizadas, começam a reconhecer e incorporar em sua prática o conceito ampliado de saúde-doença.

No processo de construção da crítica os alunos também encontraram resistências por parte de docentes que, ao adotarem uma postura repressiva com relação à opinião do aluno, não permitindo a ação reflexiva para que a crítica pudesse ser construída, demonstram os limites da relação professor-aluno, que aparece como autoritária e, às vezes, com pouco incentivo para o desenvolvimento da capacidade de autonomia e pensamento reflexivo sobre a realidade. Essa atitude pode reforçar a postura dos enfermeiros com relação à impossibilidade ou resistência de promover mudanças na prática em Enfermagem, considerando que as atividades de ensino-aprendizagem sejam somente para reproduzir um modelo instituído.

Outro limite que ocorre na construção da crítica tem relação com a postura adotada pelo aluno. No discurso percebemos que surgem os mais diversos níveis de elaboração da crítica se considerarmos que, de acordo com os interesses e desejos de cada um, bem como os limites potenciais de cada indivíduo para a elaboração crítica, como o acúmulo do conhecimento com uma sustentação teórica para o enfrentamento dos problemas, pode-se somar, ainda, o medo de assumir um posicionamento e sustentar as conseqüências que podem decorrer da atitude assumida.

Os alunos alertam que muitas vezes essa crítica construída no período de formação inicial pode estar sendo elaborada somente para satisfazer uma atividade acadêmica, ou podendo estar sendo sustentada pelo professor que estimula o aluno na elaboração dessa crítica. Com isso, a elaboração pessoal será melhor percebida a partir do momento que não tiver a presença e a sustentação do professor para estar instigando essa elaboração.

A crítica, na visão dos alunos, começou a ser construída na escola, mas será desenvolvida ao longo da vida, visto ser esse um processo permanente de construção. Afirmam, dessa forma, que a competência é uma capacidade que não se esgota no período de formação profissional ligada ao sistema universitário, mas deverá ser revista ao longo da vida profissional.

A essência da competência está no dinamismo, na capacidade de saber pensar e aprender a aprender, não sendo mais pertinente à noção de ciência como estoque de conhecimentos disponíveis, acessíveis pela via da simples transmissão. O perfil da competência profissional busca a recuperação permanente da própria competência; o profissional não é aquele que apenas executa sua profissão, mas é aquele que sabe pensar e refazer sua profissão; é aquele que pratica o questionamento reconstrutivo. O questionamento consiste na capacidade dos sujeitos serem competentes ao terem consciência crítica, questionando sobre o que fazem, elaborando os próprios projetos de vida, num determinado contexto histórico. A crítica sobre o que fazem cria nos sujeitos a possibilidade de superarem sua condição de massa de manobra, construindo alternativas por meio de sua intervenção e dos seus projetos. Dessa forma, o papel da educação estaria no processo de constituição de sujeitos para que atuem com competência e não, necessariamente ou apenas, pela competitividade(1).

O processo de construção das mudanças nos serviços de saúde, na visão dos alunos, será lento e gradativo, devendo ser cumulativo, considerando que as pessoas que estão nos serviços de saúde desenvolvem determinada prática há muitos. Nesse processo de mudança acreditam que o início possa ocorrer pela atitude tomada frente aos problemas que poderão surgir. Essa atitude tem por finalidade demonstrar como eles podem trabalhar, quais as práticas que podem realizar, tendo sempre fundamentação para esse fazer. Deverá haver aproximação com o campo de forma que os membros da equipe possam se reconhecer e criar vínculo profissional, estabelecer a confiança através da atitude tomada. Isso tudo poderá gerar conflitos na equipe, pois reconhecem que as pessoas pensam diferentemente umas das outras.

Destacam que mesmo que os conflitos e as resistências às mudanças ocorram, devem ter persistência, pois consideram que vai ser trabalho de formiguinha e que as pessoas que estão lá fora não são obrigadas a pensar como nós e aceitar tudo o que a gente quer (Discurso 4).

Evidenciamos, portanto, que serão necessários competências como a capacidade de se comunicar para estabelecer um diálogo com a equipe aonde irá se inserir, com estabelecimento de vínculo, com confiança, para um processo de negociação e possibilidades de mudança das práticas.

Apesar das dificuldades identificadas, do desejo de ser um profissional crítico que reflete sobre a realidade em que estarão inseridos, os alunos reconhecem que sentem medo de como o mercado de trabalho exerce pressão sobre essas atitudes que podem gerar mudanças nas pessoas e nas práticas em saúde. Há o receio de perderem a capacidade de reflexão na medida que encontrarem as mais diversas resistências. Acabam tendo medo de assumirem a mesma postura passiva que os enfermeiros que encontraram nos cenários de ensino-aprendizagem, como forma de garantir o emprego e a sobrevivência num mundo capitalista.

Na sociedade não podemos esquecer que esses alunos, assim como grande parte de nós mesmos, passamos por um processo educativo para a reprodução da ordem hegemônica e não para o questionamento das normas e regras. A sociedade brasileira tem passado por processo de democratização, no qual esta geração, assim como as demais, estão aprendendo ou reaprendendo a exercer seu papel de cidadãos, onde o medo e o receio das ações opressoras estão presentes nas atitudes a serem enfrentadas nos momentos de decisão.

O que este PPP vem tentando construir está justamente na contramão do modelo hegemônico de escola, ou seja, um processo educativo que tem como objetivos a autonomia e a emancipação dos sujeitos, sendo que, neste movimento de construção, acabamos expondo as contradições e conflitos existentes nas relações tanto entre os alunos, como entre os mesmos e os docentes, além dos conflitos que encontramos nas relações construídas junto ao serviço e nas práticas em saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidenciamos nos discursos dos alunos que participaram da pesquisa que os mesmos conseguiram elaborar uma crítica com relação ao PPP, discriminando e percebendo os problemas apontados, as mudanças que ocorreram, os conflitos gerados num projeto dessa natureza, o que em geral se vive, mas pouco se ensina a lidar nas escolas de enfermagem.

As mudanças têm possibilidade de ocorrer na medida que os profissionais puderem atuar enquanto sujeitos do processo de atenção à saúde, construindo um contexto onde as relações interpessoais realizam-se numa relação mais democrática, com possibilidade de crescimento dos sujeitos portadores de um projeto solidário, na direção de ações cuidadoras para a emancipação do usuário e da comunidade. Isso se torna possível ao realizarmos movimentos de construção de projetos coletivos, o qual seja operado com co-gestão, provocando compromisso e responsabilização dos sujeitos envolvidos.

Nessa direção, ao formarmos enfermeiros críticos-reflexivos, percebemos a potencialidade do PPP o qual tem adesão à proposta político-estratégica que vem sendo defendida e construída pela ABEn, assim como pela Rede UNIDA, enquanto atores sociais, uma vez que têm sido provocadores de diversas discussões com universidades e cursos de graduação, além de órgãos públicos do governo federal, promovendo a aproximação entre instituições, como também proporcionando trocas de experiências entre vários projetos em andamento, tanto na academia, como no serviço e na comunidade. Há setores da sociedade articulados que podem interferir nas políticas de saúde e educação.

Isso tudo possibilita visibilidade política às novas experiências, impulsionando os próprios projetos em andamento, como também a criação de novos projetos em outras escolas e serviços de saúde. Dessa forma, o trabalho em rede seria uma estratégia a ser estimulada entre os cursos de graduação em Enfermagem, podendo ser conduzido pelos atores sociais que já vêm atuando nesse campo, tendo como objetivo a ampliação da proposta em outros espaços acadêmicos e de serviços de saúde.

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18. Sampaio TMM. A reversão política do conhecimento: uma nova práxis educacional. Ensaio: Avaliação de Políticas Públicas Educacionais. Rio de Janeiro 1996; 4(13):365-70. 19. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 13ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 1999.

Recebido em: 21.5.2002

Aprovado em: 23.1.2003

  • 1. Demo P. Educar pela pesquisa. 3ª ed. Campinas (SP): Editores Associados; 1998.
  • 2
    Forum de Pró-reitores de Graduação das Universidades Brasileiras. Plano Nacional de Graduação: um projeto em construção. Campinas, 33p. [on line] 1999. [citado em 15 dez. 2001]. Disponível em: URL: http://www.unicamp.br/prg/forgrad
  • 3. De Sordi MRL, Bagnato MHS. Subsídios para uma formação profissional crítico-reflexiva na área da saúde: o desafio da virada do século. Rev Latino-am Enfermagem 1998; 6(2):83-8.
  • 4. Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; 2000.
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  • 6. Gadotti M. Pressupostos do projeto pedagógico. In: O projeto pedagógico da escola. Cadernos Educação Básica, Atualidades Pedagógicas. Brasília: MEC/FNUAP; 1994.
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  • 8. Krueger RA. Focus Groups: a pratical guide for applied research. 2ª ed. Thousand Oaks (EUA): SAGE; 1994.
  • 9. Chianca TCM, Antunes MJM, organizadoras. Pesquisa qualitativa: referencial teórico. In: A classificação Internacional das práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva (CIPESC). Brasília (DF): ABEn; 1999. p.305-24.
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  • 14. FAMEMA. Faculdade de Medicina de Marília. Currículo do Curso de Enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília. Marília (SP): Faculdade de Medicina de Marília, Departamento de Enfermagem; 1997.
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  • 19. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 13ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Out 2003

Histórico

  • Aceito
    23 Jan 2003
  • Recebido
    21 Maio 2002
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