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La fabrique du patrimoine: de la cathédrale à la petite cuillère

RESENHAS

Bruno Brulon Soares

Doutorando em Antropologia, PPGA/UFF

HEINICH, Nathalie. 2009. La fabrique du patrimoine. De la cathédrale à la petite cuillère. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme. 286 pp.

La fabrique du patrimoine, etnografia reveladora do campo patrimonial, é construída por Nathalie Heinich a partir de sua análise do serviço do Inventário do Patrimônio ligado ao Ministério da Cultura, na França. Representando, na "cadeia patrimonial", o polo mais especializado, mais distante do profano, em que a dimensão emocional e a dimensão estética da patrimonialização são as menos manifestas, o Inventário se situa no início da cadeia, onde a proteção pela descrição não tem ainda força de lei. Ao buscar decifrar o valor patrimonial nas obras analisadas pelos pesquisadores do Inventário, a autora realiza uma sociologia dos valores, tendo como um de seus suportes teóricos o trabalho de Luc Boltanski e Laurent Thévenot sobre as operações da justificação (1991).

O que leva um bem, seja ele qual for, a fazer parte do patrimônio? Ao oferecer ao leitor uma microanálise da experiência patrimonial, a autora se propõe a desconstruir os valores do atemporal e do universal, geralmente reconhecidos no patrimônio. Empenhando-se para apreender o fenômeno recente da "inflação patrimonial", Heinich busca distinguir as diferentes categorias de valores implicadas no patrimônio e, por conseguinte, as diferentes categorias de objetos patrimoniais. Primeiramente, a articulação dos valores se dá em um campo onde se interligam saberes sobre o patrimônio. Ao discutir a configuração de uma expertise patrimonial, bastante específica e inacessível ao profano, a autora enfatiza o papel da datação, do conhecimento dos materiais e de um vocabulário especializado.

Na vertente da expertise, os inventários geralmente adotam um vocabulário altamente especializado, em que não há espaço para a subjetividade, para as impressões pessoais, e menos ainda para a emoção. Por outro lado, o olhar profano demonstra ser a emoção uma parte indissociável da expertise patrimonial. Não se pode negar, como atesta a autora, que a "prova" do patrimônio, a sua autenticidade, também se vê na emoção "das pessoas comuns". Com efeito, não é raro que a emoção dos profanos diante de uma construção ameaçada de destruição seja o princípio de sua entrada na cadeia patrimonial. É, então, a partir do reconhecimento de certas "categorias da emoção", tais como a autenticidade, a presença e a beleza, que os critérios que levam um bem a entrar para a cadeia patrimonial se tornam evidentes.

No ato do encontro entre os diferentes critérios e universos de valores, Heinich enumera alguns dos atores que se fazem presentes nas situações em que "emoções patrimoniais" são evocadas: a vítima (um elemento do patrimônio), o acusador (associações, jornalistas, políticos, cidadãos), o acusado (os poderes públicos, um proprietário privado), e o juiz (a opinião pública, os magistrados). Logo, no "julgamento" patrimonial, a emoção e a expertise atuam juntas na avaliação dos bens. Entretanto, ainda é a objetividade que vai figurar como o eixo principal (ou ideal), conduzindo a elaboração dos critérios através dos quais se irá "julgar" o patrimônio. A primeira obrigação a se observar para garantir a objetividade de uma escolha é a estabilidade no tempo. Se um critério perdura como o mesmo ao longo de alguns anos, se os objetos que ele seleciona foram todos sempre pertencentes a uma categoria homogênea, logo se pode supor que o critério em questão não está pautado em preferências individuais e subjetivas, ou seja, instáveis e sujeitas à modificação, mas sim nas propriedades inscritas no próprio objeto, isto é, objetivas, ou "objetais".

Tendo em vista a natureza da análise, a relevância da pesquisa desenvolvida por Heinich é inegável do ponto de vista do atual campo do patrimônio, mas também, de forma mais ampla, para a "sociologia da percepção". A análise dos critérios, a qual a autora estabelece como o objetivo central da obra, toma forma opondo-se notadamente a uma "sociologia da dominação", de inspiração bourdieusiana. Heinich propõe uma perspectiva mais descritiva, compreensiva e pragmática, sensível diante do fato de que estes critérios assim postos são todos utilizados (sejam eles prescritos ou proscritos), ainda que com estatutos e frequências desiguais.

É necessário, portanto, que se opere uma conversão radical no olhar do sociólogo sobre os objetos. Trata-se da passagem de uma perspectiva "realista", no sentido de que considera os conceitos e as categorias correspondendo a realidades efetivas, a uma perspectiva "nominalista" ou, nos termos da sociologia contemporânea, "construtivista", que leva em conta que conceitos e categorias não são realidades, mas conceitos, produtos da atividade humana. Trata-se da ideia de que aquilo que é "socialmente construído" é o olhar, que faz com que a coisa observada passe do estatuto de prédios ou objetos, mais ou menos utilitários, ao estatuto de elementos do patrimônio, dignos de serem não apenas utilizados, mas observados, localizados, datados, fotografados e até mesmo admirados.

Assim, a atividade patrimonial não equivale em nenhuma medida a uma posição "artificialista", que denunciaria implicitamente o caráter não natural – logo, desnecessário – dos processos de descrição e de valorização que desta forma são produzidos. Ao contrário – assegura Heinich – é precisamente o fato de que o patrimônio é "fabricado" pela administração, através de procedimentos complexos, que ele tem garantida as suas constância, durabilidade, visibilidade e proteção material. Sendo assim, é porque o olhar é socialmente construído – e não apesar deste fato – que ele conta com aqueles que lhe têm acesso, que ele ganha sentido, que ele é encarnado em textos e imagens e acaba por impregnar a visão sempre em grande escala. Isto significa que a criação do patrimônio está muito mais ligada a uma necessidade da vida em sociedade do que a uma "natureza".

É preciso aceitar um deslocamento duplo e paradoxal que se define, por um lado, pelo movimento do objeto olhado para o sujeito que olha; por outro, da lógica patrimonial da descoberta, da "missão impossível", para a lógica sociológica da invenção, missão já cumprida. Aquilo que se inventa na medida em que se inventariam as coisas, é um olhar que se materializa nos elementos do patrimônio. Este olhar sobre o patrimônio, que se constrói coletivamente e a partir do contato com o próprio objeto percebido, a autora define como duplamente marcado pela existência de instrumentos de percepção e de inscrição do percebido, considerando que estes instrumentos são transmissíveis no espaço e no tempo, o que permite que um número indeterminado de pessoas desenvolva, diante de um objeto qualquer, uma relação visual similar, logo, coletiva. Assim, a visão parece ter origem no objeto, que "capta o olhar", e não no próprio ato de olhar.

O confronto do pesquisador, no campo, com o objeto – o ato de olhar – é apenas um momento pontual e individual, intermediário entre a fase de aquisição dos recursos comuns e a fase de restituição das conclusões; este é o instante do "reconhecimento", no qual aquilo que é visto atualiza o que é sabido. Isto significa que o olhar está longe de se limitar, como deseja a perspectiva interacionista, à presença de um indivíduo com o objeto. De forma ampla, o olhar se faz no conjunto de momentos diversos, estendendo-se no tempo e no espaço, considerando o antes e o depois do encontro (observador-observado) e mesmo no instante da comunhão do pesquisador/observador com seus pares.

Para alcançar o objetivo proposto, a observação no trabalho de campo se dá concomitantemente com as entrevistas realizadas, no contexto em que ocorrem as aproximações, levando em conta o "estar diante do objeto" a ser considerado para fazer parte da cadeia patrimonial. Esta metodologia permite à autora marcar a distinção fundamental entre o discurso descritivo (científico) e o discurso prescritivo e avaliativo (patrimonial).

Ao definir critérios unívocos – como a datação, a ancestralidade, o estado de conservação, a autenticidade, a beleza etc. – e critérios ambivalentes – como a decoração ou a não decoração, a raridade ou a multiplicidade, a originalidade ou a banalidade – Heinich explora em profundidade a axiologia do patrimônio. Tornando visível aquilo que em outras análises permanece obscuro, ela demonstra que estes valores, que são plurais, não são de fato independentes uns dos outros, e podem se combinar entre si e se reforçar uns aos outros.

Em síntese, a axiologia do patrimônio se constrói na tomada (prise) que pode ser definida como o ponto de encontro entre as propriedades objetais dos elementos submetidos ao julgamento e os recursos dos atores destinados a julgar. Esta perspectiva permite que se escape da alternativa improdutiva, e muito ideológica, entre, de um lado, a concepção puramente objetivista – da história da arte tradicional, da filosofia essencialista e do senso comum – segundo a qual o valor está inteiramente nos objetos submetidos ao julgamento; e, de outro, a concepção radicalmente construtivista – própria das correntes pós-modernas da antropologia – segundo a qual o valor estaria inteiramente nas representações dos sujeitos, eminentemente culturais e, portanto, relativos. É colocando a ênfase no ato do encontro, no instante em que se dá a aproximação entre as partes (ator e objeto), que Heinich estabelece um "caminho do meio" para o estudo dos processos de patrimonialização, oferecendo à sociologia uma nova abordagem da relação entre sujeito e objeto.

Finalmente – e sem que aqui se encerre o assunto – não é o objeto que faz o patrimônio, é a "função patrimonial" que faz de um objeto qualquer um bem patrimonial. A função patrimonial pode ser aplicada a alguns objetos que são transformados em "obras", formando o corpus aberto do patrimônio. Esta função se dá através da administração da autenticidade destes objetos. "A fábrica do patrimônio" é, então, desvendada em ação, e seus critérios e valores são desvelados para o leitor, sendo ele um especialista ou não no campo do patrimônio, através de uma vertente epistemológica que se pode dizer inédita para se pensar a cadeia patrimonial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2011
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