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O indivíduo, o sujeito e a epidemiologia

Individual, subject and epidemiology

Resumos

Este artigo visa demonstrar a necessidade de inclusão do construto teórico do sujeito de desejo no âmbito da epidemiologia atual, o que deve operar nesta uma transformação radical em seu modelo metodológico e ampliação de seu objetivo para além de instrumento estatístico coadjuvante da saúde pública e da prática clínica. Afirma a psicanálise como instrumento teórico privilegiado, capaz de oferecer contribuições significativas a esse processo. Nesse sentido, contextualiza social, epistemológica e ideologicamente o percurso do indivíduo e do sujeito que vai da filosofia cartesiana ao nascimento da epidemiologia e da psicanálise, no século XIX. Propõe que a epidemiologia deve, ainda, incorporar ao seu objeto seres-em-grupo-em-comunidade - as novas formas de viver na contemporaneidade, ultrapassando assim os conceitos de "populações humanas específicas", "doente" e "não-doente".

Sujeito; Epidemiologia; Saúde pública; Psicanálise


Individual, subject and epidemiology tries to maintain the thesis about the necessity of including the subject as a category of thought in the field of the actual epidemiology and signs psychoanalysis as a science able to offer meaningful contributions for this enterprise. Contextualizes social, epistemological and ideologically the course of individual and subject since Descartes`Philosophy till the birth of epidemiology and psychoanalysis, in the 19th century. Affirms that epidemiology must operate a radical transformation in its theoretical and methodological model and cease to be a statistical and assistant instrument for public health and for medical practice. It must, also, incorporate to its object of attention - human beings in-group - the new ways of living contemporaneously, exceeding the "specific human populations", "sick" and "non-sick" concepts.

Subject; Epidemiology; Public health; Psychoanalysis


ARTIGO

ARTICLE

Luiz Carlos Brant 1

O indivíduo, o sujeito e a epidemiologia

Individual, subject and epidemiology

1 Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1.480. 21041-210 - Manguinhos - Rio de Janeiro. interfaz@interfaz.com.br

Abstract Individual, subject and epidemiology tries to maintain the thesis about the necessity of including the subject as a category of thought in the field of the actual epidemiology and signs psychoanalysis as a science able to offer meaningful contributions for this enterprise. Contextualizes social, epistemological and ideologically the course of individual and subject since Descartes`Philosophy till the birth of epidemiology and psychoanalysis, in the 19th century. Affirms that epidemiology must operate a radical transformation in its theoretical and methodological model and cease to be a statistical and assistant instrument for public health and for medical practice. It must, also, incorporate to its object of attention - human beings in-group - the new ways of living contemporaneously, exceeding the "specific human populations", "sick" and "non-sick" concepts.

Key words Subject, Epidemiology, Public health, Psychoanalysis

Resumo Este artigo visa demonstrar a necessidade de inclusão do construto teórico do sujeito de desejo no âmbito da epidemiologia atual, o que deve operar nesta uma transformação radical em seu modelo metodológico e ampliação de seu objetivo para além de instrumento estatístico coadjuvante da saúde pública e da prática clínica. Afirma a psicanálise como instrumento teórico privilegiado, capaz de oferecer contribuições significativas a esse processo. Nesse sentido, contextualiza social, epistemológica e ideologicamente o percurso do indivíduo e do sujeito que vai da filosofia cartesiana ao nascimento da epidemiologia e da psicanálise, no século XIX. Propõe que a epidemiologia deve, ainda, incorporar ao seu objeto seres-em-grupo-em-comunidade - as novas formas de viver na contemporaneidade, ultrapassando assim os conceitos de "populações humanas específicas", "doente" e "não-doente".

Palavras-chave Sujeito, Epidemiologia, Saúde pública, Psicanálise

Introdução

Indivíduo e sujeito, termos que deslizam pelo interior do discurso epidemiológico de forma indiscriminada, compõem uma tecitura onde, aparentemente, não há diferença um do outro. No entrelaçamento de linhas de pesquisa e desenhos de estudo, indivíduo e sujeito se mesclam dando um nó, ponto nevrálgico e desconhecido por algumas intervenções epidemiológicas. Assim, torna-se necessário perguntar, no âmbito da epidemiologia, pela diferença entre indivíduo e sujeito. A epidemiologia ao lidar com o seu objeto, está investigando um conjunto numérico de indivíduos. Quando Goldberg (1990) fala em "unidades estatísticas independentes" pode-se entender que ela considera indivíduos e não sujeitos. E por que a concepção de indivíduo é incorporada à epidemiologia e não a de sujeito? Como unidades iguais, intercambiáveis e receptáculos passivos de suas investigações, desde o início do século XIX, ou como seres de cultura, a partir da segunda metade do século XX com as contribuições das ciências sociais, a epidemiologia coloca em evidência seres identificados com a consciência e sob o domínio da razão. A partir de uma aproximação da epidemiologia com a teoria psicanalítica, conforme proposta deste texto, é possível estabelecer algumas diferenças entre indivíduo e sujeito.

Para que se possa pensar o indivíduo e o sujeito, é importante assinalar, primeiro, alguns marcos da longa e fascinante trajetória da subjetividade, na teoria do conhecimento, que vai da busca platônica da verdade à inversão cartesiana operada por Freud, com a sua pergunta pela verdade do inconsciente, que dificilmente poderá ser negada e, em seguida, torna-se necessário reconhecer a significação que essa questão assume para a epidemiologia atual.

Falar em subjetividade significa necessariamente falar em René Descartes, o que não significa dizer que essa questão tenha surgido com a filosofia moderna. Ao investigar os domínios da subjetividade, este pensador do século XVII transformou-a em referencial central e, às vezes exclusivo, segundo Garcia Roza (1991), para o conhecimento e a verdade. É na perspectiva do racionalismo que a filosofia moderna constrói uma subjetividade, no interior da qual mantém as mesmas exigências e os mesmos objetivos do discurso de Platão: a busca da objetividade pela razão. A subjetividade é uma das questões internas do platonismo, independentemente das diferentes soluções que ela tenha recebido dentro desse espaço. No entanto, ela aparece como problema filosófico em Descartes. Diante da incerteza quanto à realidade do mundo objetivo, Descartes afirma a certeza do cogito. É interessante verificar que Descartes coloca a tônica no pensamento, enquanto o eu fica praticamente fora de sua filosofia. Quando fala do eu, não se refere a um sujeito, mas a uma substância pensante. Por mais paradoxal que possa parecer, a máxima cartesiana, "cogito ergo sum", assinala a emergência da subjetividade, mas não a do sujeito. O homem presente em sua filosofia é espécie ou gênero. Esta perspectiva é de racionalização do indivíduo. Enfatizando este aspecto, Santos (1999) afirma Concebidos de modo abstracto, os indivíduos são fungíveis, recipientes indiferenciados de uma categoria universal. Para este autor, foi essa concepção que levou Hegel a afirmar que o "indivíduo é o geral".

Mesmo em Hegel (1997), é possível constatar algumas modificações em sua filosofia do conhecimento, pois no prefácio dos Princípios da filosofia do direito, afirma que "tudo que é real é racional, e tudo que é racional é real"; já no capítulo IV da Fenomenologia do espírito (Hegel, 1999), diz que não é pela razão que o indivíduo se torna humano, mas pelo desejo. É através do desejo que o homem se revela a si mesmo como um eu. É o desejo de outro desejo, que o indivíduo se constitui como ser, ainda consciente. Hegel afirma: ...para que a certeza subjetiva ultrapasse a sua dimensão individual, ela necessita do reconhecimento por parte de outra autoconsciência. O reconhecimento só pode acontecer através da fala, que não pode obedecer a um código individual, pois, neste caso, as subjetividades continuariam incomunicáveis. Assim, para Hegel é o desejo de desejo que leva à busca do reconhecimento.

A identificação da subjetividade com a consciência parece ser um ponto forte da filosofia moderna, como demonstra a fenomenologia de E. Husserl. Embora a fenomenologia, em sua pretensão de romper com o ideal platônico, coloque-se como ciência dos acontecimentos puros e não das idéias, ela não consegue romper com o cartesianismo porque busca a verdade implícita na consciência. Aproximadamente três séculos após Descartes, a consciência é o absoluto.

É somente nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do século XX que o império da consciência sofre uma ruptura com o surgimento do conceito freudiano do inconsciente, provocando assim uma clivagem na teoria cartesiana da subjetividade. A partir da psicanálise, a subjetividade deixa de ser entendida como um todo unitário, identificado com a consciência e sob o domínio da razão, para figurar como uma realidade dividida em dois grandes sistemas: o inconsciente e o consciente e dominada por uma luta interna em relação à qual a razão é apenas um efeito de superfície. Assim, a psicanálise opera um descentramento da consciência como lugar privilegiado do conhecimento e da verdade. A subjetividade, identificada com a consciência, segundo a concepção de Descartes, devia se fazer clara e distinta para que a razão fizesse seu aparecimento. Nesta pretensa transparência, nada do particular era permitido, pois seria visto como perturbação da ordem. Tal perturbação modificava o pensamento tornando-o inadequado à realidade objetiva que pretendia representar. A partir da psicanálise que sustenta a importância da relação do homem com o seu desejo, o cogito não é mais o lugar da verdade, mas o lugar de seu desconhecimento.

Reservados os limites de exploração deste artigo, procura-se aqui sustentar, em caráter preliminar, a importância da noção de sujeito no âmbito da epidemiologia, a partir de duas intenções básicas: 1) como uma tentativa de fazer avançar a teoria epidemiológica, pois de acordo com Laurell (1983), as formulações que existem referentes ao processo saúde-doença como processo social são fragmentárias e, até certo ponto, hipotéticas; 2) que a epidemiologia possa repensar seus aspectos metodológicos frente aos principais problemas de saúde relacionados com as transformações político-econômicas e subjetivas conforme as concepções de Harvey (1993), Guattari (2000) e Birman (2000).

É também no século XIX que se assiste ao surgimento da epidemiologia como disciplina científica tendo como objeto, segundo Almeida Filho (1999), "doentes em população". Para este autor, na epidemiologia ocorre um interesse explícito pela descrição dos padrões de distribuição da ocorrência em massa de doenças em populações; e de uma busca de "critérios universais devido à sua própria vocação histórica e epistemológica". Nesta perspectiva, pode-se pensar, que a epidemiologia é herdeira do cartesianismo e, em última instância, do platonismo, porque tem como objetivo a produção de um discurso universal, que deverá coincidir com a realização plena da razão e a revelação do ser doente em sua totalidade populacional. A decisão platônica da epidemiologia, ao fazer ciência, está marcada por duas atitudes básicas: 1) a de recusar ao acontecimento, ao fato, uma inteligibilidade própria; 2) a de impor uma referência matemática, mais precisamente, estatística, sobre o processo saúde-doença.

O indivíduo na epidemiologia: uma unidade estatística

Através da obra de Foucault é possível constatar a existência de uma medicina que critica seu passado e, para justificar sua originalidade, se apresenta como medicina científica. Essa ruptura no saber médico não se faz em nome de um rigor conceitual, nem devido à utilização de instrumentos técnicos mais refinados, mas em nome de uma transformação de seus objetos, conceitos e métodos. É no contexto da chamada medicina moderna com suas novas formas de conhecimento e novas práticas institucionais, que se torna possível situar a medicina social e a epidemiologia. Ambas nascem com a missão de superar pensamentos e ações de uma medicina voltada para o atendimento individual que a marcaram até o século XVII e XVIII. Assim, pensar e agir sobre a doença no âmbito da população surge como uma necessidade para superar os impasses de uma medicina que não conseguia responder aos desafios, impostos às sociedades, pelas doenças infecciosas (Perini, 1998).

Herzlich & Pierret (1987) contextualizam social e culturalmente o processo saúde-doença nos séculos XVIII e XIX, o que possibilita um excelente cenário para compreender o surgimento da epidemiologia e sua concepção de homem como "unidade estatística". Para essas autoras, nos fins do século XIX, em particular, assistiu-se ao desenvolvimento de um imenso discurso, não apenas sobre a tuberculose, mas também sobre a sífilis, o alcoolismo, as neuroses e a loucura, marcando o deslocamento do eixo da visão religiosa e moral da doença para o eixo da interpretação científica. Doença e corpo foram os principais objetos dessa ciência, tornando-se elementos centrais de significações para a sociedade como um todo. A hipótese levantada pelas citadas autoras, é que, no século XIX, e particularmente com o advento da tuberculose, a figura do doente cristalizou-se existencial e socialmente, assumindo a sua forma moderna. A figura do doente emergiu não apenas como um indivíduo em toda sua concretude, mas também como um fenômeno social. Desde então, a pessoa doente pode ser definida, também, pelo seu lugar na sociedade.

Para Foucault (1998), no final do século XVIII e início do século XIX, a doença é destacada de sua metafísica da maldade, da qual tinha sido parte durante séculos e passa a ocupar um estado corporal que permite a leitura da ciência. É este o momento em que a medicina clínica estabelece, definitivamente, o fim tanto da concepção religiosa quanto individual da doença. Assim, os sintomas assumem os significados de determinantes naturais das doenças, deixando de lado a expressão de uma indissolubilidade e de uma específica ligação entre o sofredor e sua doença. No momento em que o discurso clínico assumiu a sua forma como tal, o "homem doente" desapareceu da cosmologia médica dificultando a visibilidade da milenar articulação do saber com o sofrimento. É em um contexto onde o paciente só será fonte fidedigna de informação quando for completamente despersonalizado (Camargo Jr., 1992) que a epidemiologia afirma como objeto de sua atenção dados como idade, gênero, grupo étnico, medidas fisiológicas, status socioeconômico, nível educacional, ocupação, uso de drogas, dieta, exercícios físicos e jamais o sujeito que fala e que é falado pelo Outro.

Se Rosen (1994) oferece elementos para a visualização de uma Revolução Industrial marcada por condições insalubres tanto na Europa quanto nos Estados Unidos em meio a um rápido crescimento da população de trabalhadores urbanos que superava qualquer aumento na oferta de moradias, Herzlich & Pierret (1987) juntamente com Foucault (1998) oferecem possibilidades para que se possa considerar essa população, aos olhos da moderna medicina que surge no século XIX, como um conjunto de indivíduos totalmente destituídos de sua subjetividade. Esses autores revelam as condições sociais e culturais em estreita relação com a problemática socioeconômica, político-ideológica, através das quais pode-se analisar o contexto da época que possibilitou à epidemiologia abortar o sujeito e parir o indivíduo destituído de corpo, mas portador de um conjunto de órgãos capaz de estar doente ou não doente; de estar exposto ou não exposto a "fatores de risco" e constituir a expressão "populações humanas específicas".

Trabalhando o conceito de população na epidemiologia, Goldberg (1990) afirma que é uma construção estatística. Ou seja, no modelo estatístico da epidemiologia, a população é apenas o suporte das variáveis e cada pessoa é reduzida a uma bola numa gôndola - cuja cor depende de suas características -, segundo um esquema bem definido, onde as bolas são independentes. Essa esquematização planejada da população estudada pode ser inadequada quando há um interesse pelas condições sociais. Ao se considerarem os indivíduos como unidades estatísticas independentes, ignora-se completamente a existência das relações sociais dentro das quais as representações, os comportamentos, os saberes e os modos de vida são produzidos. Desta forma, pode-se afirmar que a análise estatística, na epidemiologia, opera um corte no tempo e apresenta uma imagem, em um dado momento, das situações de risco ou dos comportamentos de uma população. Em síntese, a epidemiologia considera a "matematização do real como critério de verdade" (Camargo Jr., 1992) sem apreender a historicidade do sujeito em todas as suas dimensões.

O conceito de indivíduo na epidemiologia deve ser reconhecido como capaz de proporcionar um contexto estatístico às investigações epidemiológicas. Conceito que atingiu o auge de sua importância no contexto das doenças infecto-contagiosas onde a densidade demográfica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais fortes que hoje (Guattari, 2000); e que, gradativamente, vem perdendo espaço para novos conceitos como de cultura, de grupo, de sujeito. Assim, a epidemiologia atual deverá construir suas investigações em cenários constituídos por "seres-em-grupo-em-comunidade" e fazer funcionar práticas efetivas de investigação, tanto nos níveis microssociais, quanto em escalas institucionais maiores.

O indivíduo como ser de cultura: as contribuições das ciências sociais

Observa-se que a epidemiologia em seu conceito de "população humana específica", inicialmente, investigou "unidades estatísticas independentes", parecendo desconhecer, também, o conceito de cultura como o universo de símbolos e significados que permite aos indivíduos de um grupo interpretar a experiência e guiar suas ações... e que fornece modelos "de" e modelos "para" a construção de realidades sociais e psicológicas (Geertz, 1989).

Analisando a constituição das ciências sociais e a saúde no Brasil, Nunes (1998) reconhece a existência de uma epidemiologia latino-americana contra-hegemônica e de rica tradição, que foi buscar nas categorias da sociologia e da economia política a sua fundamentação, procurando trabalhar os conceitos de classe social, reprodução social, trabalho ou geografia, como conceito de espaço social, ou enveredando pelos campos especificamente epistemológicos e mesmo filosóficos. Ferreira, citado por Nunes (1998), afirma, também, que a adoção pouco crítica do marxismo como modelo de grandes explicações totalizadoras, conduziu os estudiosos a não se dedicarem à utilização de marcos conceituais que pudessem dar conta de articular às categorias estruturais a subjetividade, a construção de identidades coletivas, as questões culturais. E lembra, ainda, que ante a problemática atual do campo das ciências sociais e saúde deve-se cuidar para não se passar compulsoriamente pela extração de classe ou pela exclusividade da análise das subjetividades.

Nesta mesma direção, Bodstein (1992) afirma que um dos principais desafios no estudo da questão do Estado e das políticas de saúde refere-se à articulação entre as dimensões macro e microssocial, aliada ao resgate do significado dos atores coletivos e de novas identidades. Além de exortar a urgência de se repensarem as interpretações reducionistas sobre a modernidade, o desenvolvimento capitalista e o processo de medicalização, Bodstein (1997) indica a necessidade de se ampliar o próprio sentido da modernidade e, portanto, das representações em torno das categorias de política, de cidadania e de direitos sociais e, para isto, aponta as categorias de sujeito, política, democracia, público, cidadania, direitos do homem, como centrais para o entendimento da própria modernidade como movimento em construção.

Assim também, Stotz, citado por Nunes (1998), chama a atenção para o fato de que a análise da política brasileira não tem refletido de forma suficiente, sobre a relevante questão da constituição dos sujeitos coletivos, intimando para uma abordagem das manifestações dos sujeitos políticos que se realizam através dos movimentos sociais. Em síntese, através de algumas contribuições das ciências sociais para o campo da saúde, como as de Uchoa & Vidal (1994) e Nunes (1998) torna-se possível visualizar alguns de seus limites e a necessidade de se buscarem abordagens transdisciplinares, para que se possa estudar alguns deles, como, por exemplo, a categoria sujeito.

O sujeito e a epidemiologia: as contribuições da psicanálise

Descartes pensava o indivíduo como lugar da verdade; Freud (1974 e 1976) o pensava como engendrado pela ordem da cultura, fruto de "Totem e tabu" e um eterno desamparado em seu "Mal-estar na civilização". Ou seja, um ser de franco conflito entre os registros da pulsão e do social. Enquanto Descartes fala de um objeto da ciência, Hegel fala de um ser de desejo. Freud avança em relação a Hegel falando de um ser de desejo inconsciente. Antes de Freud falava-se em consciência; a partir de Freud, torna-se necessário se perguntar pelo inconsciente em suas articulações. No entanto, é o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1980), que, ao fazer uma releitura radical da obra freudiana, introduz o termo sujeito na psicanálise, tornando possível operar com a hipótese do inconsciente sem aniquilar sua dimensão fundamental de não-sabido (insu, Unbewusste). Segundo Kaufmann (1996), o sujeito em Lacan não é nada de substancial, é ele momento de eclipse que se manifesta num equívoco de linguagem (bévue, Unbewusste), o que significa dizer que esse engano será feito por um ser falante, que se interroga no campo da linguagem sobre a existência de seu "eu". Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que, em sua lógica cartesiana, a pergunta pelo sujeito é uma pergunta que ainda não foi possível à epidemiologia formular. Observa-se, assim, que a partir da teoria psicanalítica do sujeito, a epidemiologia não pode mais identificar a história do indivíduo com a história do sujeito, uma vez que não são termos que se recobrem (Garcia Roza, 1991).

Com uma aproximação entre epidemiologia e psicanálise, o indivíduo, tanto na pesquisa como na prática epidemiológica; torna-se descentrado como referencial privilegiado a partir do qual a verdade apareceria. Em oposição à unidade do indivíduo defendida pelo racionalismo e claramente incorporado pela epidemiologia, conforme já assinalado neste trabalho, a psicanálise vai apontar um sujeito cindido: aquele que faz uso da palavra e que diz "eu penso", "eu sou", que é identificado por Lacan (1998) como sujeito do enunciado (ou sujeito do significado), e aquele outro, sujeito da enunciação (ou sujeito do significante) que se coloca como excêntrico em relação ao sujeito do enunciado. Em Lacan (1997), o sujeito tem de descobrir a que Outro ele se dirige verdadeiramente ainda que não saiba. Esse Outro é o sujeito do inconsciente em sua excentricidade de si para si mesmo.

Visto alguns aspectos teóricos da categoria sujeito, torna-se necessário investigar a importância e as conseqüências teórica e metodológica de uma aproximação entre epidemiologia e a teoria do sujeito na perspectiva psicanalítica, pois além do plano do conhecimento ou da teorização, deve-se levar em consideração o domínio da intervenção efetiva no campo da realidade social.

Incorporando a noção de sujeito ao seu referencial teórico, a epidemiologia deverá rever a sua clássica divisão de indivíduos em "doentes" e "não-doentes". A partir da noção de sujeito da enunciação ou sujeito do significante, ser "doente" ou "não-doente" não pode ser fruto de um diagnóstico conclusivo em relação à patologia investigada. Nesta perspectiva, a saúde não pode ser entendida no sentido etimológico de salus do latim que significa são, inteiro, salvo e que deriva palavras como saluus, solidus e soldus que significam solda e soldado; tampouco em sua origem grega em que significam inteiro, intacto, real, em síntese, íntegro. Os "sujeitos da saúde ou da doença" não são absolutos, inteiros ou intactos; pelo contrário, são divididos e, como tais, são atravessados por um outro sujeito que eles desconhecem (sujeito do inconsciente) e que lhes impõem uma fala que é vivida pelo sujeito consciente como estranha, lacunar e sem sentido. Sob esta ótica a epidemiologia deve considerar a doença como "um ponto de vista" sobre a saúde e vice-versa, o que iria ao encontro de Nietzsche. Para este filósofo nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e saúde são apenas "jogos de superfície", em suma, valores. Há uma continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença entre as duas é questão de posição do sujeito diante da vida, sendo a doença um desvio interior da própria vida; assim, não há fato patológico, afirma o filósofo alemão. Ou ainda, como apropriadamente diz Camargo Jr. (1992): a doença depende tanto de quem tem quanto de quem diagnostica, ou de onde se diagnostica. Em síntese, baseado na noção de sujeito, "doente" e "não-doente" devem ser considerados pela epidemiologia a partir de uma perspectiva nietzcheniana: doença pode ser saúde interior e vice e versa. A saúde é aquilo que pode ser útil a um homem ou a uma tarefa ainda que para outros signifique doença. Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior enfermidade (Nietzsche citado por Lebrun, 1978).

A saúde ou a doença não pode ser determinada apenas pela ausência ou pela presença de determinados agentes etiológicos e sintomas no organismo de um indivíduo. Minayo (1996) afirma que essas categorias trazem uma carga histórica, cultural, política e ideológica e não podem ser contidas apenas numa fórmula numérica ou num dado estatístico. Da mesma forma, o processo saúde-doença não pode ser reduzido a um conjunto de significados determinado pela ordem da cultura. Assim, torna-se necessário pensar nesta determinação, também, para além dos sujeitos do significado, aproximando-se do conceito de sujeito do significante, conforme a concepção lacaniana. Esta determinação deve ser pensada, também, como uma determinação da ordem da linguagem, entendida como "verdadeiros Outros". Como determinação lingüística, sujeito não fala, mas é falado pelo Outro, diante do qual está estruturado com um conjunto de respostas. Assim, a partir das contribuições da psicanálise, a epidemiologia deve reconhecer que tanto o "doente" quanto o "não doente" não existem em si, como um dado da "natureza" e da cultura, mas sujeitos que recebem a denominação de doente vinda de um Outro e que respondem a esse Outro como doentes ou como não-doentes. A partir desta lógica da linguagem é que alguém pode se apresentar como doente, ou não doente; que pode ser reconhecido como doente ou não, e ser tratado ou não como tal.

Para Lacan esse outro que impõe uma fala ao sujeito é o Outro - lugar onde se situa a cadeia de significante. Esse Outro é a ordem do inconsciente, ordem simbólica, que se distingue do outro que é o semelhante. É a partir do Outro, entendido como um lugar do simbólico, de certa maneira externo ao sujeito, que se pode entender a diferença entre o sujeito e o indivíduo. Esse Outro é a ordem simbólica constituída pela linguagem e composta de elementos significantes formadores do inconsciente. O Outro é ainda a lei do desejo, razão pela qual toda relação com um outro é relação ao Outro, o que significa dizer que ela é regulada pela ordem do inconsciente. Ao incorporar esta noção de sujeito ao seu objeto, a epidemiologia avançaria em relação às concepções de indivíduo como "unidades estatísticas independentes" e de indivíduo como ser de cultura (sujeito do significado), fazendo falar o seu objeto, agora como sujeito. O que possibilitaria à epidemiologia delinear em suas investigações "os destinos do desejo e os novos cenários de horror do sofrimento subjetivo" (Birman, 2000), que fazem parte da cena urbana contemporânea e oferecer subsídios, de forma adequada, para intervenções no processo saúde-doença.

A divisão instaurada pela psicanálise no sujeito produz uma fenda entre o dizer e o ser, entre o "eu falo" e o "eu sou". Daí a conhecida inversão lacaniana da máxima de Descartes: "Penso onde não sou, portanto sou onde não me penso". O que essa fórmula denuncia é a pretensa transparência do discurso cartesiano perseguido pela epidemiologia e a suposta unidade do indivíduo sobre a qual ela se apóia ao definir "doente e não-doente" por meios que não consideram o sujeito como sujeito de desejo. Uma das contribuições da psicanálise para com a epidemiologia é o esclarecimento de que o sujeito do enunciado não é aquele que nos revela o sujeito da enunciação, mas aquele que produz o desconhecimento deste último. Ou seja, o cogito tão perseguido pelo racionalismo científico não é o lugar da verdade do sujeito, mas o lugar do seu desconhecimento.

A inclusão do sujeito oferece à epidemiologia condições para romper a dicotomia entre o indivíduo e o coletivo e, assim, abrir possibilidades para uma articulação entre o social e individual. O sujeito em sua epistemologia psicanalítica oferece possibilidades para se compreender a articulação entre os aspectos sociais, culturais e biológicos com a subjetividade, sem que se priorize um ou outro, ou que se estabeleça uma relação de determinação. Que existe uma relação entre o processo social e o processo saúde-doença, em termos biológicos, é inquestionável. Resta entender a articulação desses processos com a questão do sujeito. O que faz com que alguns desses adoeçam e outros não? O que faz com que alguns cuidem da sua saúde e outros não?

Ao recusar a dicotomia cartesiana, a categoria sujeito possibilita ao objeto da epidemiologia características inteiramente desconhecidas até então; abrir novas perspetivas de investigação e alargar o seu conceito diante das "novas doenças", relacionadas com a transformação político-econômica do capitalismo e com a estrutura do sujeito, tais como DORT, fibromialgia, ansiedade, entre outras. Essas manifestações do sujeito, diante das novas experimentações do espaço e do tempo colocadas pela pós-modernidade, exigem, não apenas novos métodos de diagnóstico, mas também uma nova concepção de doença. Assim, a partir do sujeito como categoria, este trabalho procura sustentar a tese de que as formulações teóricas e metodológicas passadas e presentes da epidemiologia, da saúde pública e mais precisamente da saúde do trabalhador têm de ser modificadas à luz das radicais reorganizações e reestruturações que ocorrem nas forças produtivas e nas relações sociais, neste fim de século.

A "condição pós-moderna" e a exigência de uma nova epidemiologia

Se, num primeiro momento da história da epidemiologia, o conceito de população foi importante para a sistematização de sua prática e ofereceu uma resposta possível para alguns dos problemas de saúde pública da época, pergunta-se, a partir desse conceito com o qual a epidemiologia ainda vem trabalhando, quais as possibilidades e impossibilidades de sobrevivência da epidemiologia, uma vez superados os problemas colocados pelas doenças infecto-contagiosas? Este conceito de população é útil para trabalhar os enigmas colocados pelas doenças crônico-degenerativas? Qual a sua aplicabilidade diante das grandes transformações ocorridas a partir dos anos setenta, onde as sociedades de capitalismo avançado passaram a apresentar sistemas altamente desorganizados de poder social e autoridade política? Ou ainda, como enfrentar os desafios colocados pela pós-modernidade com sua "cultura do narcisismo" e com sua "sociedade do espetáculo"?

Rosen (1983 e 1994) historia de forma precisa as transformações ocorridas na medicina e o nascimento da moderna saúde pública como formas de atender aos problemas de saúde colocados pelas mudanças nos processos produtivos que marcaram a primeira revolução industrial na Europa e nos Estados Unidos, no início do século XIX. Na atualidade, embora seja difícil captar a natureza das mudanças no modo de funcionamento do capitalismo, bem como de suas conseqüências no processo saúde-doença-cuidado, estudiosos como Harvey (1993) e Offe (1995) concordam com que alguma coisa significativa mudou a partir de, mais ou menos, 1970, marcando o início de uma transição histórica da segunda para uma terceira revolução industrial. Espera-se que, da mesma forma que a epidemiologia e a saúde pública tiveram que se reorganizar naquele século, elas reestruturem suas práticas para enfrentar, simultaneamente, velhos problemas e novos desafios.

Velhos problemas, como, por exemplo, os que ocorrem na América Latina, onde se observam uma alta incidência de morbi-mortalidade, insólita emergência de doenças transmissíveis, deterioração da qualidade de vida, queda dos salários reais, dificuldade de acesso e atenção aos bens e serviços básicos, degradação do ambiente urbano e os limites e as impossibilidades de ações preventivas que, inconseqüentemente, são interrompidas ou até mesmo canceladas.

Novos desafios como a crise que vem acontecendo no capitalismo, desde 1973, considerada como uma das manifestações típicas da tendência de superacumulação de capital. Esta pode ser evidenciada pela capacidade produtiva ociosa; pelo excesso de mercadorias e de estoques; por um excedente de capital-dinheiro e grande desemprego; contratos precários de trabalho, empregos parciais e um exército de trabalhadores que sobrevivem do mercado informal (Harvey, 1993). Neste cenário, é possível constatar, de acordo com o citado autor, uma força de trabalho desvalorizada e até mesmo destruída (taxas crescentes de exploração, queda da renda real, aumento de acidentes e mortes no trabalho, suicídio, piora da saúde, menor expectativa de vida e eliminação de benefícios sociais, entre outras manifestações).

Harvey (1993) afirma que, na atualidade, os novos padrões tecnológicos e gerenciais proporcionam aos sujeitos a experimentação da dimensão espaço-tempo calcada na flexibilidade e em velocidades extraordinárias que desvalorizam o passado, estressam o ambiente de trabalho, pressionam o futuro e, conseqüentemente, não reconhecem as trajetórias de trabalho dos sujeitos e suas atuais formas de morar e trabalhar; de sofrer e desejar, de adoecer e cuidar e de viver e morrer.

Colocando, no momento, entre parênteses, a polêmica existência de uma pós-modernidade, torna-se necessário ainda evidenciarem-se os novos desafios colocados pelo "mal-estar na atualidade" segundo concepção de Birman (2000). As ilusórias aberturas para o novo da "cultura do narcisismo" ou da "sociedade do espetáculo" não implicam, necessariamente, "abertura para o estranho nem tolerância para o desassossego que isso mobiliza" (Rolnik, 1997). Pelo contrário, as novas formas de subjetivação que essas culturas exigem e estabelecem abrem espaço para o culto da violência, para as depressões e para a dependência química, entre outras manifestações tão comuns na clínica atual. Essas reconfigurações do sujeito, atravessadas pela falência da lei e pela preponderância do imaginário, estabelecem um império do gozo e um "tudo-já", que exigem novas abordagens no campo da saúde pública.

Assim, a epidemiologia precisa perceber que as situações assinaladas têm um alto preço político e graves conseqüências no processo saúde-doença-cuidado, atingindo amplos segmentos da classe capitalista, da classe trabalhadora e das várias outras classes sociais que formam a complexa sociedade pós-moderna, constituindo assim um problema de saúde pública. É preciso realçar ainda, que os sujeitos da superacumulação estão vivendo uma ruptura radical em todas as dimensões da vida que se concretizam em novas maneiras de viver e de morrer e que exige novos modos de pensar e de fazer. Assim novas formas de investigação precisam ser construídas não apenas pela epidemiologia, mas pelas ciências da saúde. Guattari (2000) afirma que os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração, que pode ser constatada nas doenças relacionadas ao trabalho, no desemprego, na marginalidade, no estresse, na solidão, ociosidade, angústia, depressão, dependência química ou síndrome de pânico, entre outras.

O sujeito como uma categoria epidemiológica

Para Breilh (1998), há que se fazer um esforço para a construção de uma epidemiologia dos "sem poder", através de uma "epidemiologia contra-hegemônica avançada", com um saber útil para a humanização do mundo. De acordo com esse autor, é necessária a contribuição de novos paradigmas e técnicas provenientes de outras ciências como a matemática, a biologia molecular e outras ciências de menor visibilidade que funcionariam como estratégia para vacilar a hegemonia do pensamento epidemiológico dominante. É nesta perspectiva que este trabalho defende uma aproximação entre a epidemiologia e a psicanálise, a partir do sujeito como categoria, mas reconhece também a afirmação de Guattari (2000), argumentando sobre a subjetividade:...ainda permanece difícil de ser entendida, sobretudo em contextos onde continua a reinar uma suspeita, e mesmo uma rejeição de princípio. Em nome do primado das estruturas ou dos sistemas, a subjetividade não está bem cotada...

A partir do sujeito como categoria, a epidemiologia deve reconhecer que estudos qualitativos são indispensáveis para possibilitar a compreensão dos processos que regem o universo do sujeito. Isto faz com que a reconstrução de estratégias de vida e de trabalho se torne essencial na prática epidemiológica. A investigação das estratégias, na acepção de Bourdieu (1989), para lidar com o processo saúde-doença poderá dar visibilidade aos mecanismos utilizados pelo conjunto dos sujeitos para enfrentar os desafios colocados pelo processo de "acumulação flexível" (Harvey, 1993), ou pelo "capitalismo mundial integrado" (Guattari, 2000); e assim, oferecer contribuição para que se possa compreender o complexo dilema entre sujeito e estrutura. A investigação epidemiológica nesta perspectiva poderá, ainda, por exemplo, possibilitar interpretações significativas sobre as "novas doenças" relacionadas ao trabalho, sobre o "mal-estar na atualidade" e suas articulações com a estrutura do sujeito; além de fornecer subsídios para a construção de políticas públicas de saúde para o cidadão como sujeito social e simbólico.

Ao assumir a categoria de sujeito como uma variável significativa em seu objeto de atenção, a epidemiologia deve reconhecer que a saúde ou a doença constituem diferentes pontos de vista; que a fisiologia e a patologia são uma única coisa; que não há fato patológico e que doente e não-doente não existem apenas como entidades biológicas e sociais. A partir do sujeito, a doença perde sua exclusiva racionalidade etiológica biologicista, adquirida no século XIX com o "nascimento da clínica", para constituir-se também como metáfora. "A doença como metáfora" exige que a epidemiologia faça falar o "doente" para que se possa fazer surgir o sujeito, pois nesta perspectiva a doença oculta o sujeito como sujeito de desejo. Uma vez escutado o sujeito, a epidemiologia poderá se dar conta de que a doença pode ser saúde e vice-versa e que ambas, saúde e doença, visam a garantir certa ordem ao sujeito, um bem muitas vezes precário, momentâneo, mas o único possível em determinados momentos da existência.

Considerações finais

Ao incorporar contribuições da psicanálise ao seu objeto, a epidemiologia deve reconhecer que indivíduo, sujeito e subjetividade são termos que possuem significações diferenciadas na teoria psicanalítica. Se o indivíduo é referido ao biológico, a subjetividade cartesiana (psicológica) é uma subjetividade unificada, identificada com a consciência, o sujeito psicanalítico é fundamental e essencialmente dividido, submetido a duas sintaxes distintas e marcado por uma falha essencial. O inconsciente não é um acidente incômodo, mas o que o constitui fundamentalmente.

Se no século XIX a conjunção de forças políticas, econômicas e tecnológicas possibilitou o desenvolvimento de uma economia de mercado, a expansão da fábrica e do ambiente urbano moderno, ela também criou condições favoráveis para uma série de doenças infecto-contagiosas e, consequentemente, exigiu a construção de uma nova saúde pública fruto dessa conjunção de forças somada à consciência social das condições de trabalho nas fábricas e das congestionadas moradias que condicionavam o florescimento e a difusão de doenças. Se, no limiar do século XXI, uma nova cartografia é desenhada pela reestruturação dos processos produtivos, onde os contratos de trabalho por tempo determinado vêm provocando grandes modificações na natureza da habitação social, gerando migrações aleatórias, incompatíveis com a fixação domiciliar, propiciando, portanto, uma verdadeira nomadização de trabalhadores de uma empresa para outra, de uma cidade para outra ou mesmo de países; uma cartografia marcada pela mundialização do conjunto dos mercados, pela interdependência dos centros urbanos; pela aceleração das velocidades de transporte e de comunicação, pelas revoluções da informática e da robótica médicas e pelos avanços da engenharia genética, em um contexto de "acumulação flexível ou do capitalismo desorganizado", sem uma política de Welfare State; exigirá um reposicionamento político das comunidades e uma nova demanda se configurará em torno do processo saúde-doença-cuidado e da educação.

Logo, todas essas transformações que vão da primeira à terceira revolução industrial, do capitalismo organizado ao desorganizado exigem da epidemiologia uma recomposição de seu objeto, dos métodos de investigação e dos seus objetivos na articulação com a clínica e com a saúde pública. Esse reenquadramento do objeto implica levar em consideração os elevados custos da assistência à saúde, a existência de métodos pedagógicos obsoletos nas instituições médicas de ensino, o grande volume e heterogeneidade da produção científica. No que se refere ao seu objeto, implica redesenhá-lo diferenciando-o daquele do início do século XIX e circunscrevê-lo não mais em termos de "populações humanas específicas", mas como seres-em-grupo-em-comunidade. Comunidade entendida como obrigação política horizontal entre indivíduos ou grupos sociais e a solidariedade que dela decorre...participativa e concreta, isto é, socialmente contextualizada (Santos, 1999). Levando em consideração os modos de produção da subjetividade, a epidemiologia atual estará se instrumentalizando para lidar com as dimensões de espaço e tempo da pós-modernidade que se manifestam em novas formas de trabalhar, de adoecer e de morrer e que necessitam, portanto, de novas abordagens no campo da saúde.

Nota

Este trabalho, bem como o seu título foram produzidos a partir de uma sugestão da professora Elizabeth Costa Dias, do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal de Minas Gerais, durante minha dissertação de mestrado, do qual era orientadora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    2001
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