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Revista Observatório 30 | A cena das artes: dimensões econômicas das artes cênicas no Brasil e a institucionalização dos incentivos públicos e privados

Revista Observatório 30 | A cena das artes: dimensões econômicas das artes cênicas no Brasil e a institucionalização dos incentivos públicos e privados

Larissa Couto da Silva analisa o setor das artes cênicas brasileiro com base em dados do Painel de Dados do Observatório

Publicado em 06/12/2021

Atualizado às 17:39 de 15/08/2022

[acesse o índice da Revista Observatório 30]

por Larissa Couto da Silva - https://orcid.org/0000-0002-6042-4329

As artes cênicas (ou artes performáticas) constituem um dos segmentos mais tradicionais da economia criativa e estão inclusas no núcleo das principais definições sobre o tema (DCMS, 2014; THROSBY, 2008; UNCTAD, 2010). No Brasil, esse segmento ainda possui resultados econômicos limitados, abarcando cerca de 0,4%[1] da receita bruta auferida pelos setores criativos em 2018. Nesse sentido, suas potencialidades se vinculam à própria institucionalização dos setores criativos, que dependem de financiamento público e privado para promover impacto econômico.

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As artes cênicas, de maneira geral, estão fortemente relacionadas com os setores sem fins lucrativos, dependendo de subsídios e fontes externas de financiamento para a manutenção de suas atividades (BROOKS, 2006). No caso dos países em desenvolvimento, esses recursos costumam ser bastante limitados, havendo poucos mecanismos de incentivo disponíveis para subsidiar e financiar suas despesas. Essa questão se estende também sobre as relações de trabalho, com condições precárias que comprometem a estabilidade e os rendimentos dos trabalhadores das artes cênicas (UNCTAD, 2010).

As especificidades das artes cênicas e a importância dos incentivos privados

O setor de artes cênicas possui importantes especificidades que o diferenciam em relação aos outros setores criativos. Nele, o trabalho não é um insumo para a produção de bens finais, e sim o bem final em si mesmo (HEILBRUN, 2003). Essa característica possui importantes desdobramentos sobre o aumento de produtividade, o que foi sistematizado como “doença dos custos” a partir do trabalho de Baumol & Bowen (1966).

Nesse segmento, o progresso tecnológico costuma ter impacto nas atividades periféricas (melhorias no espaço físico, custos de administração etc.) e não no produto final (ou seja, o trabalho criativo). Dessa forma, a possibilidade de incrementos de produtividade[2] é menor e a tendência, ao longo do tempo, é haver uma pressão sobre os custos, dado que os aumentos salariais não são acompanhados de aumentos na produtividade do trabalho e existe uma relutância em se reajustar o preço dos ingressos[3] (NUNES, 2012).

Par de antebraços com as mãos colocadas em posição contrária, repousam num chão com areia claro, ao redor fundo escuro.
"Exílio" (2015), Daniela Paoliello (imagem Daniela Paoliello) (imagem: Daniela Paoliello)

De acordo com o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, entre 2015 e 2018, a receita bruta e o lucro total do segmento Artes cênicas e artes visuais sofreram uma redução anual de 6%. Em contrapartida, a massa salarial dos trabalhadores desse segmento criativo[4] obteve um crescimento anual de 2% no mesmo período. Concomitantemente a esse fenômeno de aumento relativo dos custos salariais, houve uma tendência de aumento da participação das fontes de financiamento público e privado na composição das receitas das artes cênicas ao longo das últimas duas décadas.[5]

Entre 2007 e 2018, as receitas próprias do setor de artes cênicas e artes visuais obtiveram um crescimento anual de 1,4%, enquanto os recursos federais para o segmento de artes cênicas, incluindo mecenato e o Fundo Nacional da Cultura (FNC), cresceram 3,5% ao ano.

No mesmo período, a participação de Moda e Tecnologia da informação na receita bruta dos setores criativos foi, em média, de 31% e 34%, respectivamente. Esses dois segmentos, que absorvem mais o progresso técnico, incorporando maiores ganhos de produtividade, não estão inclusos nos mecanismos de incentivo federal à cultura.

O perfil do financiamento público e privado recai sobre as atividades em que os incentivos ao investimento privado tendem a sofrer deterioração. Essa é uma característica de setores sem fins lucrativos, em que os recursos próprios são complementados com subsídios governamentais e doações privadas – e aqui as artes cênicas estão amplamente inseridas (BROOKS, 2006).

No Brasil, desconsiderando-se os incentivos setoriais ao audiovisual,[6] o segmento de artes cênicas é o que mais recebe recursos de incentivo à cultura.[7] O Gráfico 1 analisa esse montante concedido ao segmento e sua participação no financiamento total do setor criativo. Tanto em termos absolutos quanto em relativos, houve uma tendência de grande expansão dos incentivos às atividades cênicas ao longo da série histórica. Em 1995, o montante correspondia a 1,5 milhão de reais, enquanto em 2014 foi superior a 644 milhões de reais.[8] Mesmo com a recente perda de investimentos, acelerada em 2020 também em função da pandemia de covid-19, o aumento dos incentivos federais para esse segmento é notável ao longo do período analisado. Enquanto em 1995 o setor abarcava apenas 4% do total de incentivos, em 2020 a participação somava 27% (depois de ter atingido 38% em 2017).

Gráfico com informações do Financiamento federal para o segmento de artes cênicas e participação no financiamento total para a cultura (1995-2020)
Fonte: Elaboração própria a partir do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Valores monetários corrigidos pelo IPCA de junho de 2020. 

 

Analisando mais detidamente o perfil dos incentivos federais às artes cênicas, denotam-se dois componentes essenciais: a concentração geográfica e o papel fundamental do financiamento privado. Em relação ao primeiro aspecto, em 2000, cerca de 81% da captação dos incentivos eram destinados à Região Sudeste do país, enquanto em 2020 essa relação caiu para 70%. Todavia, a perda de participação do Sudeste foi motivada pelo aumento da participação da Região Sul, que passou de 11% para 20%. As regiões onde os recursos eram mais escassos no começo do século permaneceram com pouca participação no cenário nacional após duas décadas.[9]

O FNC, mecanismo público de financiamento por meio de editais, é responsável por apenas 2% dos incentivos destinados ao segmento ao longo do período de análise. O restante dos recursos provém do mecenato, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, popularmente conhecida como Lei Rouanet, que se baseia na renúncia fiscal do governo. Isso significa que as pessoas físicas e jurídicas (estatais ou privadas) que fizerem doações e patrocinarem projetos culturais por meio desse mecanismo podem deduzir parte do valor de seu imposto devido.[10] Vale ressaltar que as empresas jurídicas privadas foram responsáveis por 79% da captação de recursos desde 1993, enquanto estatais tiveram participação de 19% e pessoas físicas de apenas 2% nesse mesmo período.

Dessa forma, destaca-se o importante papel da Lei Rouanet na institucionalização dos incentivos às artes cênicas e a importância desses mecanismos para a manutenção dessas atividades culturais.

Cabe, então, ressaltar a dimensão dos mecanismos de incentivo para as artes cênicas. Enquanto os incentivos públicos e privados[11] para atividades da música e do audiovisual[12] equivalem a 2% da receita bruta desses segmentos, nas artes cênicas, eles são responsáveis por 24%.[13] Esse é um contraste importante entre setores de baixa e alta incorporação de progresso técnico. Música e audiovisual, com maior incorporação tecnológica e maior participação na receita bruta dos setores criativos (responsáveis por cerca de 12% em 2018), têm menos dependência de incentivos federais.

Gráfico com informações da Composição do mecenato no setor de artes cênicas (1995-2020)
Fonte: Elaboração própria a partir do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. 

 

A caracterização do mercado de trabalho nas artes cênicas

As especificidades setoriais do segmento cênico também carregam importantes implicações sobre as características do mercado de trabalho nessas atividades. Baumol & Bowen (1966), ainda na discussão sobre a “doença dos custos”, indicam que os rendimentos salariais nesse segmento (de baixa produtividade) podem crescer ao longo do tempo, porém a uma taxa menor do que os rendimentos nos setores de alta produtividade (NUNES, 2012).

De fato, analisando o rendimento salarial médio no segmento Artes cênicas e artes visuais, houve uma redução anual de 2,2% entre 2012 e 2021. Em contrapartida, no segmento Tecnologia da informação, intensivo em progresso técnico, ocorreu um crescimento de 1,7% ao ano no mesmo período. Além disso, o rendimento mensal neste último segmento é maior: 4.979 reais no primeiro trimestre de 2021, contra 2.333 reais nas artes cênicas.[14]

Todavia, houve notável melhoria das condições de trabalho no segmento cênico nos últimos anos no Brasil. Apesar das dificuldades históricas, conforme explicitado no Relatório de economia criativa 2010 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), houve um crescimento da formalidade no mercado de trabalho dessas atividades. Em 2015, apenas 36% dos trabalhadores do setor de Artes cênicas e artes visuais tinham relações formais de trabalho. Em 2020, esse número alcançou 44%.[15]

Em relação à composição do mercado de trabalho nos setores criativos no Brasil,[16] destaca-se a relativa importância do segmento Artes cênicas e artes visuais. Mesmo abarcando apenas 0,4% da receita bruta criativa em 2018, concentrou 6% das ocupações dos trabalhadores dos setores criativos no mesmo ano. De maneira contrária, as atividades de tecnologia da informação, que tiveram 43% da receita bruta em 2018, foram responsáveis por apenas 16% das ocupações. Em comparação com países desenvolvidos, como o Reino Unido, a economia criativa brasileira concentra, ainda, um grande nível de ocupações em atividades menos intensivas em tecnologia (CAUZZI, 2019).

Considerações finais

O segmento de artes cênicas possui diversas particularidades que diferenciam sua dinâmica econômica daquela de outros setores da economia – inclusive os criativos. A institucionalização da cultura por meio do estabelecimento de diretrizes e da adequação de mecanismos de incentivo parece estar relacionada com a expansão das potencialidades dessas atividades. As políticas de valorização e difusão cultural, além de direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988, são centrais para o desenvolvimento do segmento de artes cênicas. Assim, a análise dos incentivos federais e da caracterização desse mercado de trabalho permitiu contemplar os avanços que o setor conduziu nos últimos anos na economia brasileira – e suas principais restrições. 

 

Expediente da Revista Observatório 30

 

Como citar este artigo

SILVA, Larissa Couto da. A cena das artes: dimensões econômicas das artes cênicas no Brasil e a institucionalização dos incentivos públicos e privados. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. Disponível em: [https://www.itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/revista-observatorio/a-cena-das-artes-dimens%C3%B5es-economicas-das-artes-cenicas-no-Brasil]. Acesso em: [data_atual]. DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.30.08

 

Larissa Couto da Silva é mestranda em economia do desenvolvimento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e assistente de pesquisa no Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult) da mesma instituição.

 

Referências

BAUMOL, W. J.; BOWEN, W. G. Performing arts: the economic dilemma. 3. ed. Boston: Princeton & Oxford MIT Press, 1966.

BROOKS, A. C. Nonprofit firms in the performing arts. In: GINSBURGH, V. A.; THROSBY, D. (ed.). Handbook of the economics of art and culture. North Holland: Elsevier, 2006. p. 473-506.

CAUZZI, C. L. Determinando os setores criativos brasileiros: aplicação do modelo de intensidade criativa. 2019. 158 f. Dissertação (mestrado em economia) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/197195. Acesso em: 21 jul. 2021.

CUNHA, André Moreira et al. (org.). Artes cênicas: estudos setoriais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2020.

DEPARTMENT FOR CULTURE, MEDIA & SPORT (DCMS). Creative industries economic estimates january 2014: statistical release. Londres: DCMS, 2014. Disponível em: https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/271008/Creative_Industries_Economic_Estimates_-_January_2014.pdf. Acesso em: 21 jul. 2021.

HEILBRUN, J. Baumol’s cost disease. In: TOWSE, R. (ed.). A handbook of cultural economics. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2003. p. 91-101.

NUNES, B. F. A inovação na economia da cultura: analisando o papel da inovação na atividade teatral. 2012. Dissertação (mestrado em economia) – Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PPGE/disserta%C3%A7%C3%B5es/2012/BERNARDO%20FURTADO%20NUNES.pdf. Acesso em: 6 set. 2021.

OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL. Painel de Dados. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/observatorio/paineldedados/pesquisa. Acesso em: 21 jul. 2021.

THROSBY, D. The concentric circles model of the cultural industries. Cultural trends, v. 17, n. 3, p. 147-164, 2008.

UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT (Unctad). Creative economy report 2010. New York: Unctad, 2010. Disponível em: https://unctad.org/en/Docs/ditctab20103_en.pdf. Acesso em: 21 jul. 2021.

 

 

Notas:

[1] Informação retirada do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, referente ao segmento Artes cênicas e artes visuais.

[2] Os incrementos de produtividade são dados com a diminuição dos insumos necessários para a produção de determinado bem.

[3] Baumol & Bowen (1966) explicitam três fatores para a restrição do reajuste do preço dos ingressos: relutância individual das organizações por motivações morais; posição dos produtos de artes cênicas na cesta de consumo dos indivíduos; e forças competitivas (NUNES, 2012).

[4] Incluindo trabalhadores criativos e não criativos empregados no segmento Artes cênicas e artes visuais.

[5] Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

[6] Recursos próprios da Lei do Audiovisual e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

[7] Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural para a série histórica entre 1993 e 2020.

[8] Valores corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de jun. 2020.

[9] A Região Norte alterou sua participação de 0,2% para 1,8%; a Região Nordeste foi de 3,8% para 4,4%; e a Região Centro-Oeste diminuiu sua participação de 4,6% para 3,1%.

[10] Observado o limite de 6% para pessoas físicas e de 4% para pessoas jurídicas.

[11] Incluindo FNC, mecenato, FSA e Lei do Audiovisual.

[12] Para o cálculo da receita bruta, o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural considera o segmento Cinema, música, fotografia, rádio e TV. Para fins de equivalência com os dados de financiamento federal, foram considerados os valores de incentivos para música e audiovisual.

[13] Essa pode ser uma estimativa subestimada. Para o cálculo da receita bruta, agregam-se atividades de artes cênicas e de artes visuais em um mesmo segmento. Caso se considerem também os incentivos federais destinados às artes visuais, esses equivalem a 35% da receita bruta desse segmento, em média.

[14] Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Valores corrigidos pelo IPCA de jun. 2020.

[15] Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

[16] Idem.

 

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